Fanatismo.
MAURO E CELINA, CASADOS HÁ QUINZE ANOS, SÃO ADEPTOS DO ESPIRITISMO. APROVEITANDO MOMENTO PROPÍCIO, CELINA TOCA NUM ASSUNTO QUE A VINHA INCOMODANDO:
Fanatismo.
MAURO E CELINA, CASADOS HÁ QUINZE ANOS, SÃO ADEPTOS DO ESPIRITISMO. APROVEITANDO MOMENTO PROPÍCIO, CELINA TOCA NUM ASSUNTO QUE A VINHA INCOMODANDO:
– Mauro, atualmente, você só conversa sobre Espiritismo!
– Mas, Celina, conversar sobre Espiritismo não é importante?
– Claro que é, marido, porém no momento apropriado. E tem mais: você só tem lido obras espíritas!
– Há algum mal nisso, querida?
– É que esse seu comportamento está me parecendo sintoma de desequilíbrio.
– Que é isso, Celina!
– É isso mesmo. Você me parece um tanto fanatizado, e isso é desequilíbrio.
– Mas, querida, o Espiritismo é a Terceira Revelação e, por isso, muito importante para todos nós.
– Eu sei disso, meu bem!
– Entendo o Espiritismo como a doutrina redentora, que nos possibilita o progresso espiritual.
E Celina investe contra o comportamento de Mauro:
– Conheço a Doutrina Espírita, meu bem, desde muito cedo, pois, como você sabe, nasci em lar espírita.
– Estou certo, querida, de que você tem conhecimento espírita.
– Porém, Mauro, não restrinjo minha vida em somente falar de Espiritismo e ler obras espíritas.
– Pois saiba, Celina, que conversar sobre Espiritismo e ler obras espíritas me satisfazem sobremaneira. Aprendo muito, querida!
– Reflita seriamente no que lhe estou dizendo, Mauro!
– Ora, querida! Tenho feito o que me dá prazer.
– Mas, nem jornal, Mauro, você quer mais ler!
– Os jornais só trazem más notícias.
– Não se esqueça, Mauro, de que precisamos estar a par do que acontece na nossa cidade, no país e no mundo.
E Celina prossegue:
– Você, que gostava tanto dos escritores nacionais contemporâneos, está totalmente divorciado de nossa literatura, rica de boas obras.
– Atualmente, Celina, o Espiritismo me tem bastado.
– Mauro, querido! O Espiritismo nos fornece os referenciais que devemos utilizar na relação conosco mesmo e com a sociedade.
– Claro, querida!
– Mas, você não vem mais fazendo isso.
E ela complementa:
– A pretexto de aprender e praticar o Espiritismo, não acho válido se esquivar da vida, nos seus diversos aspectos.
– Não posso entender esse seu posicionamento, querida, pois você também lê obras espíritas.
– Não só as leio como também converso sobre Espiritismo.
– Então, por que a censura ao que venho fazendo?
– Só, meu caro, que procuro ser conveniente.
– Em que sentido?
– Venho buscando, constantemente, na Doutrina Espírita os balizadores para o meu caminho, ou seja, tenho procurado vivenciar os conceitos doutrinários.
Aí, Mauro se inquieta:
– E eu, você acha que não vivencio esses conceitos?
– É sempre, querido, aquela questão da fé sem obras.
– É assim mesmo que você me vê?
– É assim que você tem se mostrado, Mauro.
Celina continua:
– Você só lê livros espíritas, só conversa sobre Espiritismo, porém suas atitudes, no meu entender, estão deixando muito a desejar.
Você, que foi sempre muito atencioso com a família, ultimamente, está pisando na bola.
– Que é isso, Celina?
– É isso mesmo, Mauro. A religião está servindo de escudo para você se esconder das lutas humanas, que nos aferem o valor e nos ajudam a crescer.
Mauro, então, se agasta:
– Do jeito que você fala, parece que sou um irresponsável.
– Tá quase chegando lá, querido.
– Você, agora, me assustou, meu bem.
– Isso é ótimo!
– Como ótimo, Celina?
– Pior é se você não tivesse se tocado.
Mauro começa a entender a mensagem de sua esposa.
– Bem, Celina! E, agora, então, o que fazer?
– Só você poderá mudar essa situação, querido.
– É! Não há dúvida.
– Veja bem, Mauro, estamos perdendo nossos melhores amigos não espíritas, pois você só quer falar de Espiritismo.
– Preciso reverter isso.
– Temos ótimos amigos, adeptos de outras crenças, pessoas de bem, que muito acrescentaram em nossas experiências de vida. E eles nos estão evitando, justamente por essa sua postura fanática.
– É! Isso vem acontecendo. Quando não sou eu mesmo quem os evito.
– De tanto falar somente de Espiritismo e de conversar só com espíritas, daqui a pouco você estará falando o “espiritês”, e não mais o português.
– Não entendi!
– Ora, Mauro! O Espiritismo tem seu vocabulário próprio, que cabe muito bem na conversa entre espíritas. Porém, os não espíritas não têm obrigação de conhecer esse vocabulário.
– E, então, a conversa passa a se tornar enfadonha, não é mesmo?
– Justamente! E, aí, o pessoal foge.
– Preciso de sua ajuda, Celina, para me modificar, pois estou reconhecendo o fundamento de suas palavras.
– Estamos num mesmo barco, querido, em que um ajuda o outro a colocá-lo a navegar rumo ao norte do esclarecimento.
– Já consigo perceber que, contrariando os próprios ensinamentos doutrinários, criei um mundo especial, ilusório, só para mim.
– Que ótimo, marido!
– Infelizmente, parti para isolamento injustificável, deixando de participar da vida, de enriquecer-me com as experiências do cotidiano, da família, da sociedade.
– A pretexto de espiritualização, Mauro, não podemos deixar de participar da vida cultural de nossa cidade. Tantos lugares bonitos para visitar! Peças teatrais, inclusive espíritas, para se apreciar!
E Celina ainda comenta:
– Há filmes interessantes em cartaz, com denúncias e mensagens importantes para nossa reflexão. Aliás, no que diz respeito a cinema, a indústria nacional está sendo reverenciada, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa.
– Equivoquei-me, querida! Vinha distorcendo a finalidade. tanto do Espiritismo quanto do livro espírita.
– Ambos são importantíssimos em nossas vidas, marido, desde que os utilizemos para nos tornar seres humanos melhores, mais esclarecidos, mais participativos, mais responsáveis no caminhar.
– Estou entendendo agora, Celina, que o Espiritismo não é somente um processo cultural, mas, em especial, uma nova leitura da religião e, em conseqüência, da Vida.
E, assim, amigos, atentemos para o que diz a questão 766 de O Livro dos Espíritos: “Deus fez o homem para viver em sociedade. Deus não deu inutilmente ao homem a palavra e todas as outras faculdades necessárias à vida de relação”. E, da questão 768 consta o seguinte: “O homem deve progredir, mas sozinho não o pode fazer porque não possui todas as faculdades: precisa do contato dos outros homens. No isolamento, ele se embrutece e se estiola.”
Antonio Carlos Piesigilli.