AO QUE SE DEIXA ALIENAR*, SEGUNDO CALDERARO**,
É UM DISSIMULADO SUICIDA PELA AUTOELIMINAÇÃO DE SUAS HARMONIAS MENTAIS.
Calderaro instou-me a fazer com ele rápida visita a grande instituto consagrado ao recolhimento de alienados mentais, na Esfera da Crosta.
— Compreenderás, então, mais exatamente explicou, generoso, dirigindo-se a mim com a delicadeza que lhe é peculiar — a tragédia dos homens desencarnados, em pleno desequilíbrio das sensações. Excetuados os casos puramente orgânicos, o louco é alguém que procurou forçar a libertação do aprendizado terrestre, por indisciplina ou ignorância. Temos neste domínio um gênero de suicídio habilmente dissimulado, a autoeliminação da harmonia mental, pela inconformação da alma nos quadros de luta que a existência humana apresenta. Diante da dor, do obstáculo ou da morte, milhares de pessoas capitulam, entregando-se, sem resistência, à perturbação destruidora, que lhes abre, por fim, as portas do túmulo. A princípio, são meros descontentes e desesperados, que passam despercebidos mesmo àqueles que os acompanham de mais perto. Pouco a pouco, no entanto, transformam-se em doentes mentais de variadas gradações, de cura quase impossível, portadores que são de problemas inextricáveis e ingratos. Imperceptíveis frutos da desobediência começam por arruinar o patrimônio fisiológico que lhes foi confiado na Crosta da Terra, e acabam empobrecidos e infortunados. Aflitos e semimortos, são eles homens e mulheres que desde os Círculos terrenos padecem, encovados em precipícios infernais, por se haverem rebelado aos desígnios divinos, preterindo-os, na escola benéfica da luta aperfeiçoadora, pelos caprichos insensatos.Guardando carinhosamente a observação, acompanhei-o na excursão matinal ao grande estabelecimento, onde os mentecaptos eram em grande número.
No primeiro pátio que topamos, compacta era a quantidade de mulheres desequilibradas que palestravam.
Uma velha de cabelos nevados, mostrando acerba ferocidade no olhar, envergava o uniforme da casa, como quem arrastasse um vestido real, e dizia a duas companheiras apáticas:
— Na minha qualidade de marquesa, não tolero a intromissão de médicos inconscientes. Creio estar presa por motivos secretos de família, que averiguarei na primeira oportunidade. Tenho poderosos inimigos na Corte; contudo, as minhas amizades são mais prestigiosas e fiéis.
Baixou a voz, como receando espias ocultos, e falou ao ouvido de uma das irmãs de sofrimento:
— O Imperador está interessado em meu caso e punirá os culpados. Segregaram-me por miseráveis questões de dinheiro.
Elevando o diapasão, inesperadamente, bradou:
— Todos pagarão! Todos pagarão!
E continuava explicando-se com gestos de grande senhora.
Compungia-me observar a promiscuidade entre as enfermas encarnadas e as entidades infelizes, que ali se acotovelavam. Preso ainda ao meu antigo vezo de curiosidade, tentei estacar, a fim de ouvir a demente até ao fim, mas o Assistente deu-se pressa em considerar:
— Não nos detenhamos. Infelizmente, atravessamos vasta galeria de padecimento expiatório, onde nossos recursos socorristas não ofereceriam vantagens imediatas. Aqui, quase todos os alienados são criaturas que abdicaram a realidade, atendo-se a circunstâncias do passado sem mais razão de ser. Essa desventurada irmã já possuiu títulos de nobreza em existência anterior; perpetrou clamorosas faltas, dando expansão às energias cegas do orgulho e da vaidade. Renascendo em aprendizado humilde para o reajustamento imprescindível, alarmou-se ante as primeiras provações mais rudes da correção benfeitora, reagiu contra os resultados da própria sementeira, entregou o invólucro físico ao curso de ocorrências nefastas, e, por fim, situou-se mentalmente em zonas mais baixas da personalidade, passando a residir, em pensamento, no pretérito de mentiras brilhantes. Agarrou-se, desesperada, às recordações da marquesa vaidosa de salões que já desapareceram, e perambula nos vales da demência em lastimáveis condições.
Não déramos muitos passos, encontramos novo ajuntamento, em que sobressaía curiosa dama, extremamente nervosa.
— Deus me livre de todos, Deus me livre de todos! — gritava, inquieta. — Não voltarei! nunca, nunca!…
Aproxima-se, cordata, a enfermeira, e pede:
— Senhora, mais calma! É seu marido que vem à visita. Vamos ao guarda-roupa.
E sorrindo:
— Não se sente feliz?
— Jamais! — bradava a demente com espantoso semblante de angústia. — Não quero vê-lo! odeio-o, odeio, com tudo o que lhe pertence!
Repetindo expressões de desprezo, inteiriçou-se, caindo em lamentável crise de nervos, pelo que a auxiliar da enfermagem houve que requisitar socorro urgente.
Desejei reter-me, a fim de estudar a situação, mas o Assistente impediu-mo, esclarecendo:
— Não percas tempo. Não remediarias o mal. Nossa passagem aqui é rápida. Recomendo apenas anotes o refúgio de todos os que se esquecem dos deveres presentes, pretendendo escapar aos imperativos da realidade educadora.
Modificou a inflexão da voz e prosseguiu:
— Não asseguramos que todos os casos do hospício se relacionem exclusivamente com esse fator. Muita gente atravessa este pavoroso túnel, premida por exigências da prova retificadora; é, no entanto, forçoso reconhecer que a maioria encetou o pungitivo drama em si mesma. São irmãos nossos, revoltados ante os desígnios superiores que os conduziram a recapitular ensinamentos difíceis, qual o de se reaproximarem de velhos inimigos por intermédio de laços consanguíneos, ou o de enfrentarem obstáculos aparentemente insuperáveis.
Para que se efetue a jornada iluminativa do Espírito é indispensável deslocar a mente, revolver as ideias, renovar as concepções e modificar, invariavelmente, para o bem maior o modo íntimo de ser, tal qual procedemos com o solo na revivificação da lavoura produtiva ou com qualquer instituto humano em reestruturação para o progresso geral. Negando-se, porém, a alma a receber o auxílio divino, através dos processos de transformação incessante que lhe são oferecidos, em seu benefício próprio, pelas diferentes situações de que os dias se compõem no aprendizado carnal, recolhe-se à margem da estrada, criando paisagens perturbadoras com desejos injustificáveis.
2. Quase podemos afirmar que noventa em cem dos casos de loucura, excetuados aqueles que se originam da incursão microbiana sobre a matéria cinzenta, começam nas consequências das faltas graves que praticamos, com a impaciência ou com a tristeza, isto é, por intermédio de atitudes mentais que imprimem deploráveis reflexos ao caminho daqueles que as acolhem e alimentam. Instaladas essas forças desequilibrantes no campo íntimo, inicia-se a desintegração da harmonia mental; esta por vezes perdura, não só numa existência, mas em várias delas, até que o interessado se disponha, com fidelidade, a valer-se das bênçãos divinas que o aljofram, para restabelecer a tranquilidade e a capacidade de renovação que lhe são inerentes à individualidade, em abençoado serviço evolutivo. Pela rebeldia, a alma responsável pode encaminhar-se para muitos crimes, a cujos resultados nefastos se cativa indefinidamente; e, pelo desânimo, é propensa a cair nos despenhadeiros da inércia, com fatal atraso nas edificações que lhe cabe providenciar.
(Excerto do livro ''No Mundo Maior", de André Luiz, pela psicografia de Francisco Cândido Xavier. FEB)
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Alienar - Enlouquecer; ficar louco; perder a noção da realidade: a desgraça alienou sua mente; alienou-se diante do medo.
Calderaro - Um dos instrutores de André Luiz em Nosso Lar, Colonia espiritual.
Por Amilcar Amílcar Sobreira Lobo