Alice no país das maravilhas é um livro que rende muitas reflexões. Sua pergunta central “quem és tu?” (menina tola) ecoa em toda a publicação, nas animações e filmes que vieram mais tarde.
Alice no país das maravilhas é um livro que rende muitas reflexões. Sua pergunta central “quem és tu?” (menina tola) ecoa em toda a publicação, nas animações e filmes que vieram mais tarde.
A questão “Quem sou eu” permanece sem resposta e precisa manter-se assim. A natureza do “eu” é a mutação. Cada passo que damos em direção à vida nos faz rever a resposta que demos anteriormente. Em “Alice além do espelho” o tema é como manter a identidade frente às mudanças que a realidade nos traz.
O devir
O existencialismo compreende que o “eu” não é estático, mas sim um “vir a ser”. A impermanência se torna a única marca possível de “constância” (um termo que aqui parece paradoxal) no conceito de identidade. O eu é fugaz pelo fato de manter em sua essência presente, passado e futuro ao mesmo tempo.
O passado são as memórias e os projetos de eu concebidos antes do momento presente. As memórias, no entanto, são passíveis de modificação à medida que nossa compreensão do mundo muda. Podemos recordar de um evento com raiva e, mais tarde, sentir gratidão por ele. Essa impermanência de nossa percepção do passado afeta nosso “eu”. Dependendo do que vemos e de como vemos nosso passado a história que contamos de nós é diferente.O presente é o momento das experiências. No presente evidenciam-se sensações e ações. Estas mostram resultados rápidos que nem sempre terão as consequências que desejamos. Porém, neste momento, é impossível ter consciência disso. No presente buscamos realizar os planos que fizemos no passado. Atentamos, com isso, ao futuro tentando antever se nossas ações nos conduzirão para onde desejamos.
O futuro é apenas uma ideia. Um depositário de nossos desejos, expectativas e partes que ainda não existem. Ele pode motivar o comportamento ou despertar medo. Neste tempo colocamos tanto a esperança, quanto a ansiedade. Ele difere dos outros pelo fato de não termos nenhum dado concreto possível sobre o futuro. O passado pode ter cartas e filmes, o presente tem evidências o tempo todo. O futuro é apenas possibilidade.No eu, todos estes tempos interagem. O eu de nosso passado aparece lado a lado do eu que desejamos ser enquanto avaliamos se o eu que somos agora detém algo de ambos. A percepção que temos de nosso passado, presente e futuro afeta todas essas auto imagens.
O espelho de Alice
O último filme sobre a história de Alice tem o título de “Alice além do espelho”. A aventura se localiza na tentativa de Alice em percorrer o oceano do tempo em busca da família do Chapeleiro Maluco. O desejo da heroína é salvar a família do amigo de um triste destino. A história começa com uma tema comum às pessoas: o desejo de alterar o tempo passado, afim de modificar o presente e salvaguardar o futuro. O tempo se mostra personificado no filme e alerta Alice dizendo-lhe que ela não poderá alterar o passado, mas poderá aprender muito com ele.
Alice viaja ao passado e tenta várias vezes alterar o rumo da história. Suas tentativas frustradas a conduzem à percepção de que o passado não poderá ser modificado. No mesmo momento em que abandona essa ilusão, ela percebe a fonte de aprendizado que existe no passado do Chapeleiro Maluco. Sua nova busca, então é retornar para o presente e realizar lá as mudanças possíveis.
A mudança de percepção não leva a heroína à salvar apenas seu amigo. Ao desistir de mudar o passado, ela também altera a sua auto percepção. A personagem tem um mote sobre a palavra “impossível”. Alice se constrói sobre a ideia de tornar o impossível, possível. Ela associa à esta ideia a onipotência em realizar tudo o que deseja. Este é um nível maturacional pequeno. A aventura a choca com a realidade da impossibilidade. A partir desse ponto, ela precisa entender que apenas o que é possível é possível, mas que, dentro disso, existem muitas possibilidades para a satisfação do desejo.Alice vai “além do espelho”, ou seja, ela vai além de sua auto imagem. A aventura confronta sua definição de eu. A heroína é consegue a resolução de sua situação com o sacrifício de sua auto imagem. Para continuar sendo quem ela é, sacrifica uma parte de si. Essa atitude é que a faz manter sua identidade. O entendimento é que não é possível manter tudo da mesma maneira sempre e que para evoluir e manter quem somos, precisamos abrir mão de partes de nós.
Eu, Identidade e sacrifício
Ser maduro para abrir mão de parte de quem somos requer compreender a natureza do sacrifício. Quando Alice dá parte de si, ela está, na verdade construindo a si mesma. A identidade não é composta apenas daquilo que somos, mas, também, daquilo que deixamos de ser e do que não somos.
As pessoas apegadas demais à sua auto imagem não conseguem ir além do espelho. Param ali e tornam-se narcisistas que não conseguem evoluir sua identidade. Este destino nos faz vítimas de nós mesmos. Este destino é compartilhado por quem entende que o “eu” é estático, ao invés de uma ideia em desenvolvimento. Alice compreende isso ao longo da trama e percebe que ao invés de mudar o passado para manter o presente, é sábio abrir mão do presente para construir o futuro.
O sentido mais antigo de sacrifício é compartilhar algo do real com os deuses. O sacrifício nunca é “por si só”, ele sempre visa a construção do futuro. Seja para expurgar uma praga, para apaziguar ou deuses ou pedir por chuva, o ato sacrificial tem sempre o intuito de conversar com os deuses.No caso da identidade, a conversa não é com os deuses, mas sim com a própria identidade. Assim, quando sacrificamos uma parte, salvamos o todo. Esta é a compreensão profunda que a personagem cria ao longo da trama. A manutenção do eu de Alice, apenas foi possível ao abrir mão daquilo que ela imaginava ser. A nova Alice, manteve algo da antiga e se transformou. O devir deu mais um giro.