quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

História de senzala Lição de vida, coragem, determinação e fé em Deus. Preta velha conta sua trajetória e de seus semelhantes no tempo da escravidão no Brasil..

História de senzala Lição de vida, coragem, determinação e fé em Deus. Preta velha conta sua trajetória e de seus semelhantes no tempo da escravidão no Brasil..


Passeio ao espiritual


Minha mãe quando eu nasci já não tinha muito tempo de vida na Terra. Naquele tempo morriamos cedo, pois não era nos dado nenhuma assistência, ao contrário, vivíamos como animais ou muitas vezes pior.
Nasci muito fraca e a parteira assegurou à minha mãe que eu não viveria até o nascer do sol.
Era madrugada e chovia muito dentro e fora do barracão. Fazia muito frio e minha mãe tirou suas vestes para me aquecer. Lembro-me disso claramente, do seu cheiro, seu calor e a suavidade de seu seio a me alimentar.
Ao contrário do que foi previsto cresci e aos seis anos de vida minha mãe desencarnou.
Aí começa a minha vida de provações.
Fui obrigada a trabalhar na colheita junto com os outros escravos debaixo de sol, chuva e frio que cortavam meus ossos.
Certo dia depois de um dia de trabalho pesado desmaiei e fui carregada até o barracão onde durante seis luas a febre me xonsumia e me deixava inconsciente.
Foi a minha primeira experiência de comunicação espiritual.

Reencontro

Assim que desmaiei senti meu corpo flutuar e ao olhar para baixo pude ver meu corpo físico estendido no meio da plantação.
Acompanhei tudo com naturalidade,  como se já tivesse conhecimento do plano espiritual.
De repente senti um leve toque em meus ombros e quando me virei e olhei para aquele rosto senti um amor tão grande que me enchia a alma de luz.  Era minha mãe terrena!
Corri para abraça-la e ela me envolveu em seus braços e me disse: chegou a hora de você começar a sua missão na terra!
Seus lábios não se movimentavam e mesmo assim eu compreedia perfeitamente.
Acenei com a cabeça e disse: estou pronta.
Naqueles dias caminhamos por diversos mundos e ela em sua sabedoria me explicava o porque de certas coisas que não compreendia.
Me contou sobre minha missão e me alertou sobre perigos que eu iria enfrentar.
Meu espírito parecia estar pleno de coragem e cheio de vontade de iniciar minha missão.
Embora soubesse dos perigos e incertezas que eu iria enfrentar minha alma se encheu de uma alegria que não compreendia mas o fato de ter aquela que me deu a vida como guia me fazia forte o suficiente para voltar ao meu corpo e seguir minha missão...

Minha primeira missão

Ela olhando em meus olhos fazia com que eu me visse refletida em suas pupilas,  então me disse :
Sua primeira missão é se fazer ouvir,  sua sabedoria e sua busca por um tempo de justiça se estenderá por séculos.  Não se iluda com sua grandeza.  Será uma gota de água no oceano, uma nascente que apesar de ser apenas poucas gotas jamais deixará de fluir.
Serás a mão que acalentará, o vento que soprará nos rostos suados pelo sol, a sombra que abrigará o povo exausto do calor do dia, a lua que iluminará o caminho de nossa aldeia.
Junto de você estará um grande guerreiro que conduzirá o nosso povo fará as muralhas e te protegerá! 
Talvez fique marcado na história apenas o nome dele,  talvez você não seja lembrada,  lembre-se da doação, pois,  o dia de contar sua história chegará e ele virá confirmar e prestará reverência a sua dedicação,  mesmo que já não queira!
E realmente,  hoje não quero tal "honraria"!
Saberão quem é ao longo desta história!

Quando acordei

Como disse minha febre durou seis dias, todos desacordada.
Assim que minha mãe deixou este plano um negro escravo que sempre amou minha mãe e que apesar de eu ser um fruto "forçado" me assumiu como filha e enfrentou à capataz e senhores quando adoeci para que não me sacrificassem. E no leito de morte de minha de sangue jurou me ensinar os princípios da fé e me doutrinar fisicamente (capoeira), psicologicamente (religião) e moralmente (abnegação)
Seu nome: ZAMBI DE XAXARÁ.

Pai Zâmbi

Negro como a noite no pastoreio,  olhos tão reluzentes que refletem a imagem de quem o encara.
Voz macia, lenta e sábia. Forte e imponente, mas, nunca arrogante.  Sábio sempre prestes a falar,  ensinar e acima de tudo ouvir (pois como me ensinou esta é a melhor forma de aprender).
Doce como o mel, porém defensor de sua colméia como uma abelha operária e patrão exigente e perfeccionista sobre aqueles que estão dispostos a lhe servir.
Escravo dedicado, mestre aplicado

Cara à cara

Desde que minha mãe deixou este plano me senti muito só.  Percebi que muitas vezes fui poupada de certas coisas que senti que estava por acontecer.
Sempre que dormia e tinha pesadelo acordava com a sensação de que alguém estava ao meu lado dizendo que era só um sonho ruim e que seguraria minha mão até que eu me acalmasse.
Ao voltar ao meu corpo definitivamente senti uma mão entrelaçada a minha.
Sim era a mão que havia me conduzido ao meu corpo.  A mão de quem minha mãe havia chamado para me conduzir de volta a terra e a mão que eu jamais poderia soltar.
Lembrei-me daquele cheiro,  foi o segundo calor que senti,  logo após o calor do corpo desgastado de quem me pois no mundo se esgotar e desfalecer senti uma mão muito grande e áspera envolvendo meu pequeno corpo trêmulo e um colo quente que me ninava com cânticos de nagô

Sobre a missão

Para não ser detalhista demais,  resumo a conversa que tivemos.
Foi nessa ocasião que ela me falou sobre meu nascimento e como fui gerada e me disse uma frase que guardo em meu coração:
"Apenas do bom carvão conseguimos um bom diamante. lembre- se sempre que do negro nasce as maiores riquezas: do carvão,  o diamante, da lama negra,  o ouro, a pérola mais valiosa é a negra e a terra mais fértil também é a mais escura.  Por que seria diferente com os seres humanos? "
A partir daí comecei a entender o porquê da escravidão,  não é porque somos fracos e sim porque somos valiosos e os brancos temem nossa luz.
Compreendi, mas, nunca aceitei tal situação.
Ela também me disse que para que eu fosse ouvida teria que aprender a falar a língua dos brancos, saber ler e escrever e dominar toda a sabedoria que pudesse adquirir e para isso me deu a localização de um bau enterrado na mata onde disse que estaria a minha maior riqueza,  riqueza esta que após ser adquirida nenhum tronco,  senhor de engenho, capataz ou capitão haveria de me tirar.
Livros,  num baú imenso que me recordava as caixas onde eram colocados os mortos brancos,  madeira de lei, talhado com flores, desenhos abstratos e em cima de uma pedra lisa,  muito bem polida, azul como o céu havia meu nome escrito (que só depois pude ler), a madeira por dentro e por fora foi toda untada com óleo de urucum que lhe dava uma cor única de vermelho sangue,  como o derramado por nós ao toque da chibata e um cheiro único que apelidei de cheiro de sabedoria.
Dentro havia quase uma centena de livros enumerados que ela me instruiu a seguir em ordem, os primeiros não continham exatamente números,  era riscos que se alinhavam como números romanos até o quinto,  após seguiam enumerados, pois, ao chegar à este volume já dominava números e letras.
Ela me disse que esta seria a minha primeira missão,  conhecimento..

O despertar

Quando quase todos haviam perdido a esperança de que eu sobreviveria (digo quase porque meu protetor e uma negra velha muito espiritualizada ainda rezavam e sabiam que era apenas um retiro espiritual para aprendizado) abri meus olhos e fitei o teto do barracão,  palhas e troncos faziam um v de ponta cabeça,  olhei para o lado e vi um largo sorriso e olhos lacrimejantes a me fitar a alma e uma voz forte, porém doce, me dizendo: - seja bem vinda de volta!  Está pronta?
Senti-me tão protegida como quando nasci,  mas confusa de se havia voltado pra casa ou se havia saído dela.  Até hoje tenho esta dúvida!
As vezes tomamos como lar o lugar onde temos missões difíceis para cumprir e as vezes o nosso lar é onde descansamos o espírito e ainda as vezes temos dois lares que é quando estamos em um mas em contato com o outro.
Fiquei com os olhos imóveis por muito tempo,  um misto de apreensão, dor, felicidade, tristeza e paz que precisava digerir dentro de mim, então uma mão tocou um lado da minha face suavemente e outra mão tocou o outro lado, uma forte, grande e áspera, a outra pequena, doce e enrugada e uma só voz chegou ao meu coração: - Não tenha medo, volte e tenha coragem, nós a protegeremos para que cumpra a sua missão, precisamos de você!
Como uma pancada em meu peito senti o ar entrar com força total, senti o cheiro da palha que me protegia do chão frio e o cheiro de eucalipto e hortelã que foram besuntados em meu corpo.
Cheiro de vida nova!  Cheiro de esperança e fé! 
Consegui abrir meus olhos, mas, meu corpo físico doía a cada movimento por ter ficado dias imóvel,  mesmo assim juntei minhas forças e me sentei sobre a dicissa.
Tinha fome e sede,  logo que pedi prontamente me foi estendido um prato de sopa e água fresca.
Saciei minha fome e já me sentia revigorada,  queria me levantar e seguir o mapa que havia em minha mente,  mesmo sendo noite.
Ansiava por meu tesouro!  Mas fui impedida de sair pois já haviam passado as trancas no portão, tive que esperar o dia raiar.
A noite mais longa da minha vida,  não preguei os olhos,  minha mente borbulhava em lembranças de outro mundo.

O raiar do dia

Ao sinal do primeiro raio de sol ouvi o barulho da tranca e uma voz imponente e amedrontadora uivava: - levantem seus porcos;  chega de moleza bando de imprestáveis!
Então a negra velha ao meu lado me disse : - feche os olhos e finja que não acordou e assim que todos sairmos para a lida terá a cobertura para correr atrás do seu tesouro.
Como ela haveria de saber?  Não havia pronunciado sequer uma palavra sobre o acontecido; Será que falei enquanto meu corpo dormia? Não perguntei, mas,  uma voz me disse : -ela sabe de tudo confie nela,  ela lhe mostrará o caminho e lhe passará as mensagens de superiores lhe alertando sobre perigos e traçando o seu caminhar por algum tempo.
Aquela voz me tranquilizava, acalmava a minha alma e meu coração que estavam sedentos por evolução.
-Calma tudo em seu tempo!  Tenha paciência!
E assim o fiz,  fechei os olhos e imediatamente entrei em torpor novamente.  Acordei com um leve toque em meu braço.
-Vá, corra o mais rápido que puder!  Quando sentir o perigo diga estas palavras (ensinou-me uma reza, isto te fará invisível aos olhos do mal, mas, nunca as use sem real necessidade,  somente para sua missão ou será penalizada por mal uso da magia.
Corri com toda a força dos meus músculos, não sei quanto tempo, mas, atravessei o capoeirão, entrei na mata, passei por riachos e cachoeiras e tudo me pareceu familiar , já tinha estado ali, só não sabia quando.
Cheguei ao pé de uma jaboticabeira imensa, seus ramos alcançavam as nuvens,  seus troncos carregados de frutos,  negros e imensos com suas cascas grossas e escuras como nossa pele e seu interior transparente e doce como a alma de uma criança.
Pra mim este é o fruto que mais transmite o valor do nosso povo.
Negros de pele forte mas interior frágil,  presos à um tronco imponente submissos à satisfação de quem fere sua casca para saciar seus desejos.

meu tesouro

tente a removedor a terra entre as duas raízes maiores da árvore, cavei com minhas mãos cada centímetro daquele chão, minhas unhas cravaram aquilo de uma forma brusca, como um animal imobilizando sua presa ante predadores à espreita.


Quando finalmente alcancei o baú, meus dedos estavam em carne viva e escorria de suas extremidades sangue em abundância.


Valeu a pena! Toda a riqueza que ali jazia era mais do que recompensador.

Minha vida, tudo o que eu poderia adquirir e tudo o que ninguém jamais poderia me roubar! Nunca!


Este tesouro foi, é e sempre será a maior riqueza que possuí em todas as minhas vidas! Conhecimento nos leva a qualquer lugar do mundo!

família

sou um espírito muito pouco evoluído para ter o Brasil discernimento de definir o que é uma família!


Laços de sangue, laços de amizade, laços de convivência, pessoas que passam como flash em nossas caminhadas, pessoas que vão e vem apenas por um segundo mas renovam nosso ser?


Quem é realmente tão importante que se une a nossa alma e nos faz querer proteger e amar incondicionalmente um outro ser humano e este sentimento puro e sublime damos o nome de "FAMÍLIA" .


EM minha trajetória passada tive a oportunidade de honrar, honrar e praticar essa qualidade de doação! "Quantas vidas poderão habitar um coração em evolução, e quantas moradas existirão nos desígnios de Deus pai, o nosso senhor absoluto"


Só nossa evolução nos esclarecerá!