Sua avó está morta. Graças a intolerância de sua madrasta para com as religiosidades afro-brasileiras, Débora perdeu todas as chances de crescer ao lado da avó e agora, só lhe resta o funeral.
I
Não via minha avó desde meus dezessete anos de idade, quando Narcisa, minha madrasta recém casada com meu pai, na época, sob preconceitos de sua fé e criação tradicionalista, talvez também por anseio de apagar da vida de papai a família de minha finada mãe, me proibiu de ver vovó.
Ao certo, se sinto raiva ou tristeza por esta separação, não sei. Vovó vivia tão longe que nunca fiquei mais do que uma gira de quimbanda, ou mais que um fim de semana ao seu lado, então, não tenho como medir algum tipo de sentimento em elevado nível de insatisfação pela atitude de Narcisa. Só uma certa falta, pois o pequeno convívio com vovó me deu base para jamais vestir o capuz do preconceito. Convivi com Narcisa que era protestante e se achava no direito de odiar umbandistas, muçulmanos, católicos e judeus. Convivi com algumas tias da parte de mamãe, todas do candomblé, amavam a todos, mas ainda sustentavam um preconceito com a quimbanda de sua própria mãe.
Mesmo imersa entre adultos com seus medos e exclusões, o pensamento iluminado de vovó me manteve em um estado neutro de religiões, estado de pura aceitação.
No fim acho que gostava de vovó, pois era uma mulher de personalidade carismática, personalidade de pensamento que ecoa em minha mente até hoje.
Meu pai não quis vir ao velório, mas me deu dinheiro para passar alguns dias aqui até o enterro.
Entro na casa de vovó, meus tios e tias estão aqui, são em cinco. Não sei se o rosto deles demonstra tristeza ou alegria, pois não lembro se morte para o candomblé é alegria ou tristeza e não tenho coragem para perguntar, embora melancolia seja a sugestão da atmosfera. Cumprimento a todos, tia Sara está sentada numa poltrona ao lado de uma janela, ela amamenta seu bebê recém nascido, iluminada pela luz dourada do ocaso, seus dois filhos mais velhos repousam com a cabeça sobre suas coxas — sentados ao chão. Tia Rebeca tem duas crianças, desmamadas, mas ainda pequeninas, Rebeca está assentada no chão, sobre um tapete — é costume dela —, seus filhos se apoiam em suas costas. Rute está em pé, de frente para Sara, a observar pela janela, Rute nunca quis engravidar e foi a única a se converter ao Cristianismo. Isaque e Ismael estão perto da porta da casa, a única entrada, eles parecem discutir, embora sussurrem, foram os primeiros a quem falei na chegada.
Em nostalgia dirijo-me ao corredor que leva às escadas. Minha memória da casa de vovó é nebulosa, de certo uma bruma, pois não há o medo da tempestade iminente, apenas uma cegueira que se dissipa ao caminhar o olhar por cada detalhe. Parece que a cada passo dado uma frase de vovó vem dos cantos mais profundos de minha mente, como se sua consciência soprasse aos meus ouvidos. Deslizo meus dedos pelas paredes de madeira dessa casa velha, suas pontas sentem as gretas, sentem a farpas, os arranhões e os buracos. É como se essas pequenas falhas na madeira transcrevessem numa escrita tátil as lembranças de vovó, essas lembranças são pensamentos e teorias, um medo cresce em mim e é como um receio me presenteado pelo inconsciente. Sinto como se fosse advertida de não andar por ali, mas subo as escadas. No andar de cima, passando por todas as portas, chego ao fim do corredor e a vejo, uma porta negra, cujo tom da tinta a faz parecer um buraco na parede.
— Débora —, uma voz familiar me chama enquanto toca meu ombro.
— Tio Isaque! Pois não.
— O advogado chegou com o testamento. Disse que minha mãe pediu para ser lido no velório, quando todos estivessem reunidos.
Fomos para a sala, a única que tinha na casa. O advogado era um rapaz jovem de olheiras profundas, uma marcação de cada minuto de trabalho: foi breve nas explicações, logo estava lendo o documento:
"Bem sei das necessidades de cada filho que tenho, meus filhos, consequentemente, bem sabem que de posses tenho pouco. Serei clara e direta! Minhas filhas Sara e Rebeca, as únicas que têm filhos, deixo a casa e a pequena propriedade ao lado para que dividam, se vão vender ou morar, cabe as duas decidir. Minha filha Rute, como deixou para trás nossa religião e nos amaldiçoou, creio que não iria querer conviver neste palco de bruxarias que deixei para suas irmãs, portanto, deixo-lhe uma quantia em dinheiro correspondente à trinta e três por cento das economias que fiz ao longo da vida, o mesmo deixo para cada um dos meus dois meninos, Isaque e Ismael. O restante deixo para que seja doado para instituições de caridade, pois em vida fui caridosa, não será diferente em minha morte. Para minha neta Débora, concedo meu maior bem: a chave da pequena sala."
II
Continuo em linha reta. Encontro uma velha virada de costas.
— Vovó? — Corro até ela — é você mesmo?
Ela me dá um tapa no ombro, como uma advertência.
— Mas que pergunta antiquada, garota. Você não sabe que deste lado "ser" não significa nada?
— Me desculpe. Fiquei emocionada de poder vê-la mais esta vez — meus olhos estão marejados.
— Você atravessou a porta, escalou um antigo tesouro oculto da humanidade, mas o que lhe mareja os olhos é uma velha insignificante.
— Perdão, eu não tive intenção de. — Ela me interrompe.
— Ser e ter não têm significado deste lado, guarde suas desculpas. O que veio fazer aqui, afinal?
— Vim para descobrir o segredo que você guarda, o significado de tanto tempo escondida neste lugar.
Vovó assente com a cabeça e aponta para frente, vejo degraus esculpidos em pedra levando a um palco. Vou até os degraus e os subo, à frente não há nada além de outro precipício. Na beirada da queda vejo entalhado na pedra:
"(...) porque eu sei de onde venho e para onde vou. Mas vós não sabeis de onde venho, nem para onde eu vou." João 8:14.
Coloco minhas mãos frias sobre a escritura, nada parece claro.
— Não entendo, vovó.
— Como pode não entender o que está logo em frente? Aí está a chave, a verdadeira, dessa vez.
Lágrimas caem pelo meu rosto.
— Você é muito boba, vó. Veio tão longe por algo tão simples.
— Às vezes não nos damos conta do que é tão simples. Se somos criação divina, nosso estado é indigno de conhecimento. Se somos mero acaso, porventura, claramente não existirá nada além dessa cegueira existencial. Meu vazio doía, queria curar a dor, mas estava com medo das consequências, por isso me joguei nesta busca sem fim. Em determinado momento me lembrei das palavras de Jesus, E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará! Pois nenhuma vida deve continuar se descobrir o fim, porque é o mistério do fim inevitável, que transforma a vida nesta corrida cambaleante entre erro e acerto, é o que de fato nos faz vivos. Mas nem todos têm força para suportar o revezamento de alto e baixo.
Me inclino, encaro o abismo, parece calmo.
— A dúvida me assusta e entristece quando vem a margem do pensamento. Me sinto ansiosa com tudo isso, tanto quanto você se sentia, vó. Mas não acho que esta seja a melhor maneira, vim até aqui determinada a fazê-lo, mas agora com essa lâmina fria tocando meu pulso vejo que não é assim que vamos resolver tudo.
O olhar de vovó é vazio.
Meu olhar é úmido e salgado.
— Não tive a oportunidade de me despedir, vovó.
Dou as costas para aquela avó e corro para o outro precipício. Desço pelo mesmo meio que subi.
A porta ainda está aqui embaixo, aberta para mim. Volto pela escuridão até sair no corredor do primeiro andar, desço as escadas.
— Esse não foi o combinado, Sara! A gente tinha dito pra pôr o outro vestido nela! — gritava Rebeca.
Ignorando a todos, vou direto ao caixão de vovó. O rosto dela está com a palidez inutilmente disfarçada com maquiagem, além de inchado. Não é o rosto que conheci na infância, porém é a mesma avó carinhosa que guardei no coração.
Abaixo a cabeça até a testa de vovó e lhe dou um beijo, não tenho pressa em terminá-lo.
Enfim, tenho o que lhe falar;
— O anseio estava te consumindo, não? Anseio e a tristeza de simplesmente estar triste, por ser a tristeza o estado natural de alguns de nós e logo mais da maioria, nos fazem questionar cada passo dado, cada pensamento e até o soprar do vento, pois nos sentimos culpados por simplesmente existir. Nosso estado autossabotagem, quando atinge o ponto de fazer-lhe desculpar-se à luz solar, por impedi-la de tocar o chão, ao ver a própria sombra no solo, é o que te empurra para o abismo dos deuses, é o que dá vontade de fazer descobrir os segredos da galeria oculta, quanto tantos outros, ateus e religiosos, já se satisfazem com respostas aceitáveis dentro da lógica de suas crenças e estudos. Você não teve companheiros para te fazer voltar pelas agarras e perceber a grandeza desse lado, mas, uma vez tendo saltado, pegou-me pela mão e fez repensar a atitude que estava para cometer ainda esta noite... esteja em paz.