terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Quando se está no fundo do poço não há outro caminho, a não ser para cima. E mesmo que não se possa ver, sempre haverá alguém cuidando de você. Uma menina de forte temperamento, se vê perdida ao perceber o ponto em que sua vida tinha chegado. Sem endereço, emprego ou rumo, ela parte em uma jornada para redescobrir o sentido da vida.

 Quando se está no fundo do poço não há outro caminho, a não ser para cima. E mesmo que não se possa ver, sempre haverá alguém cuidando de você.
Uma menina de forte temperamento, se vê perdida ao perceber o ponto em que sua vida tinha chegado. Sem endereço, emprego ou rumo, ela parte em uma jornada para redescobrir o sentido da vida.


De onde eu vim

Aquela cena percorreu minha cabeça por dias. A imagem daquele homem rodava meus sonhos como se eu devesse prestar mais atenção ao que houve, mas nada me ocorria.
Por via das dúvidas, nunca mais passei naquela rua e comecei a prestar mais atenção em tudo que ocorria em minha volta....

Os dias se passaram e minha vida aos poucos voltava ao normal. A eminência da loucura consumia pouco a pouco a minha existência.
Se havia algum Deus, talvez fosse a hora certa de falar com ele.

Acendi uma vela antes de me deitar naquela noite. Tentei me concentrar em alguma força maior e demonstrei toda a insatisfação que tomava meu coração a respeito do rumo que minha vida tomara. Roguei por uma ajuda, uma resposta, uma paz que a muito não sabia o que era.

Dormi uma noite turbulenta, como se houvesse uma briga em meu subconsciente.  Luz e trevas saiam do equilíbrio necessário e eu era o alvo.
Acordei assustada. O despertador já cansara de tocar e desligou sozinho.

Após uma manhã dedicada a atividades domésticas,  segui meu caminho para a praça da cidade, pra ver se conhecia gente nova.

Eu adoro meus amigos, me divirto muito com eles, mas com o tempo as máscaras caem e me vi perdida em um mar de falsidade. Queria mudar meu círculo social, mas não sabia por onde começar. 

Parei na banca de jornal, para comprar cigarros. No final de uma pequena fila, ao meu lado, um garoto rodava as prateleiras de incenso sem prestar muita atenção.

Ele tinha cabelos e olhos castanhos, com um rosto delicado, usava óculos e parecia mais magro do que deveria.
Mas, mesmo nunca tendo-o visto na vida, achei-o tão familiar, que minha atenção se prendeu de tal forma, que esbarrei na lateral da bancada e derrubei as revistas em cima do garoto. A vergonha foi tamanha, que tive vontade de me esconder, mas não encontrei um lugar. 

Nós dois abaixamos juntos para pegar as revistas e ele pareceu muito intrigado quando me viu.

- Eu te conheço de algum lugar! Se eu conseguisse lembrar de onde...
Você estudou no Franciscano? Aquele colégio no fim da rua...

Terminamos de arrumar as revistas, pagamos nossas compras e fomos sentar em um dos bancos da praça.
E de lá saíram uma procissão de perguntas que um fazia para o outro; para entender de onde vinha tamanha familiaridade.

Sem obter uma resposta plausível, desistimos da busca e nos afundamos em uma conversa sobre a vida, o mundo, músicas e filmes favoritos.

Nos assustamos ao perceber que a luz vinda do sol fora substituída por iluminação artificial quando a noite chegou.  Nos despedimos com a promessa de nos encontrar de novo, no mesmo lugar, no fim de semana.

Eu devia mesmo ter ido?

Sexta-feira à noite. Estava de pijama e decidida a passar a noite vendo qualquer filme, que fosse o mínimo decente, apenas para ocupar minha mente. Minha avó estava na cidade vizinha para visitar seus irmãos e só voltaria no dia seguinte.

Munida de um balde de pipoca, uma garrafa de refrigerante e a roupa mais confortável do guarda roupa; me enrolei na coberta disposta a só levantar pela manhã. Pena que não pude trazer o banheiro para lateral da cama, do contrário ficaria não levantaria até que parasse de sentir minhas pernas.
Escolhi uma série de comédia americana mas, antes que pudesse acabar o primeiro episódio, fui interrompida pelo som da campainha. Estranhei o fato pois não esperava visitas.

Não precisei usar o olho magico para ver quem me visitava. Ao me aproximar da porta pude ouvir o som estridente das risadas vindas do outro lado. Pensei em fingir que não estava em casa, mas era possível ouvir minha sitcom rolando ao fundo.

- Nós sabemos que está aí! Abra essa porta, por que já estamos atrasadas.

Carla e Sophia costumavam me acompanhar nas noitadas por aí. Quando as conheci, eram pessoas incríveis. Me admirava o fato de elas terem tanta presença e serem idolatradas aonde chegassem. Com o tempo, porém, fui percebendo o alto preço dessa falsidade e hoje e dia me apegava a elas pura e simplesmente por medo da solidão. A todo custo elas tentavam me convencer a acompanha-las; mas estava decidida a ficar em casa. Após longos e torturantes minutos, elas desistiram; não ates de me fazer prometer que não faltaria a próxima nem em caso de doença.

A conta do tempo que eu levei para fechar a porta atrás delas foi a conta das lágrimas começarem a escorrer pelo meu rosto descontroladamente. A que ponto minha vida havia chegado e como eu poderia corrigi-la a fim de me tornar um ser humano de novo. Assisti uma série sem muito sentido até apagar na cama, abraçada com um balde de pipoca engordurada.

Sábado de manhã.
Acordei cansada como se não tivesse dormido, minha mente me consumia independente do fato de eu estar consciente ou não. O cheiro de café que enchia o ambiente indicava que minha vó estava de volta em casa e minha cara inchada indicava o fato de que acordei cedo em pleno sábado e não estava sabendo lidar com isso.

Na cama acordei e na cama continuei, nada me motivava a perder essa conforto e arcar com minhas responsabilidades as quais já me acostumara a não cumprir.

Acho que chega um momento em nossa vida em que a bola de neve dos problemas já se encontra tão grande que a vontade de resolve-los já não existe mais. Tentei espantar esses pensamentos da cabeça e liguei a televisão para tomar meu café da manhã.

Nada parecia interessante o suficiente para impedir minha mente de divagar por acontecimentos aleatórios. Lembrei-me daquele homem do cemitério, revivendo toda cena daquela noite, e imediatamente lembrei do menino que conheci na praça da cidade. Não era hoje que eu deveria encontra-lo? Fiquei na dúvida se deveria ir. Afinal, não marcamos horário certo, nem trocamos telefones para confirmar ao longo da semana... Mas ele parecia um menino legal, e de qualquer forma, eu não faria nada melhor ficando em casa. Poderia fingir para mim mesma que estava indo comprar o jornal que não leio, ou qualquer coisa que me ajudasse a me sentir menos idiota se ele não aparecesse. Decidi me dirigir a praça depois do almoço, o que não tardaria a acontecer.

- Minha filha, você vai comer de novo? Demorou tanto para você emagrecer, que você deveria tomar mais cuidado. - Aparentemente, segundo a minha vó, agora eu tinha o limite de refeição. Engoli em seco quando peguei o segundo sanduíche para completar meu café da manhã - Ainda mais com refrigerante! Você não tem jeito mesmo! Já já estará rolando por aí.

Passado algum tempo, me dirigi ao meu espacinho no armário e resolvi arrumar um pouco, aproveitando para escolher uma roupa para hoje. Escolhi um short jeans e uma blusa preta, da minha série de televisão favorita, bem simples já que não sabia o que seria do meu dia.

Foi o tempo certo para o almoço ficar pronto. Comi ao som da briga dos meus avós, que variavam os xingamentos de "bêbado" até "eu não devia ter casado com você".
Meus avós sempre brigaram muito mas, não sei se por costume ou comodidade, nunca se separaram. Levei muito tempo para entender, ou acreditar, que eles eram felizes nesse pé de guerra. Tem coisas que só o amor é capaz de explicar.

Estava seguindo para a praça da cidade quando pensei em desistir. Parecia surreal insistir em algo que, de tantas formas, estava fadado ao fracasso. O sol escaldante, diário na minha cidade, me fazia suar por todos os poros, transformando minha maquiagem em uma gosma nojenta escorrendo pelo meu rosto. Segui para mesma banca de jornal na qual estive na semana anterior. Comprei um jornal, uma água e sentei em um dos inúmeros bancos espalhados ao redor. A violência tomava as páginas do noticiário impresso.

Eu não sei como meu país chegou a essa situação. Não sei se foi o desemprego que gerou a violência, ou a falta de uma educação de qualidade, mas tudo está interligado.
Hoje, meu país é temido pelo resto do mundo e o armamento usado pelos bandidos é considerado armamento de guerra no restante do mundo. A maior parte da população não tem emprego e luta para sobreviver como pode, mesmo sendo fortemente reprimidos pelo governo. Comerciantes ambulantes tem suas mercadorias tomadas por guardas, os impostos estão nas alturas apenas para encher o bolso dos governantes que estão frequentemente nos noticiários, acusados de lavagem de dinheiro. A saúde e a educação pública, largada as traças. Os comentários, pelas ruas da cidade, era de que uma guerra civil se aproxima.
Mesmo assim, tenho muito orgulho de minhas raízes.
Apesar da violência, somos considerados os mais simpáticos e receptivos do mundo, e somos conhecidos por tirar alegria mesmo de momentos difíceis. Somos felizes com o pouco que temos.

Me distrai com o jornal, em meio a meus devaneios, e quando percebi já estava a quase uma hora esperando. Decidi que esperaria mais vinte minutos, caso ele não chegasse, iria embora.

- Você sempre chega cedo para seus compromissos? - Ele riu se aproximando

- Cedo? Estou esperando a horas!

- Mas esse foi o horário em que nos encontramos da última vez, não foi o que combinamos?

Fiz cara de brava enquanto ele me lembrava de que havíamos sim marcado um horário, o mesmo que nos encontramos da ultima vez. Acabei deixando pra lá depois dele rir de mim por alguns momentos e eu ameaça-lo de que poderíamos não ter nos vistos. Pelo menos havíamos nos encontrado, e vê-lo imediatamente me trouxe uma estranha sensação de paz.

Mais uma tarde de sábado que passamos conversando naquela praça. Falamos de piercings, tatuagens, empregos, sonhos, viagens... o assunto fluía fácil. Ele tinha um sorriso bobo, desses encantadores que só criança tem; e pela primeira vez, em algum tempo, eu conseguia rir tranquila, sem me preocupar com o mundo.

A conversa estava tão gostosa que mais uma vez nos surpreendemos ao ver que a luz já começava a baixar, e os postes de iluminação das ruas se ligavam um a um. Mães com suas crianças começavam a voltar para suas casas, para dar lugar a casais apaixonados que aproveitavam os últimos raios de sol para passear agarradinhos.

A primeira noite

- O que você fará essa noite? Podíamos visitar esse novo barzinho que abriu no centro.

O convite era tentador. Ao mesmo tempo que não me animava gastar o final das minhas economias, o convite para continuar conversando com aquele garoto era motivador. Pensei na ideia de voltar para casa e vivenciar toda aquela atmosfera de briga... Quando eu finalmente consegui aceitar o convite, pareceu mais uma súplica.

Fomos caminhando pelas ruas da cidade de maneira despreocupada e me surpreendia o fato de, com ele, o assunto nunca acabar.
Não gostávamos das mesmas bandas, não víamos os mesmos filmes, não tínhamos os mesmos passatempos.
Eu gostava de futebol, ele detestava. Ele era louco por música e eu tão desafinada que faria inveja em um gralha.
Éramos como água e óleo.
E ainda assim, conversávamos por horas, sem nos dar conta do tempo. A cada resposta de um, aumentava o brilho nos olhos do outro. Como se sempre tivéssemos esperado aquele momento de nos encontrar. Nossos pensamentos se encontravam e a cada momento entendíamos ainda mais um ao outro.

O lugar era novo na cidade e estava fazendo bastante sucesso. Tinha ótimas críticas de preço e atendimento, que o fariam cada vez mais famoso. Felizmente era domingo, e conseguimos uma mesa sem precisar esperar na fila. Sentamos em uma mesa na parte externa e cada um de nós pediu uma bebida.

O lugar tinha uma decoração alternativa, com os móveis em madeira e uma iluminação escura. Era fácil imaginar que lá ocorriam shows de rock de bandas pequenas ou reuniões grunge. As garçonetes, tatuadas e de cabelo colorido, completavam o lugar.

O relógio já passava das 23h quando dei por mim. Era tão fácil perder a noção do tempo quando ele estava por perto que acabava sempre atrasada.

- Como está tarde! Precisamos ir, amanhã é segunda feira.

- Mas você não trabalha, nem eu... – ele tentou me convencer a ficar.

- Não trabalho, mas precisamos procurar emprego. Não tem como viver nesse mundo sem dinheiro.

Dado por vencido, com cara de contrariado, ele aceitou partir. Pagamos a conta e começamos a caminhar. Ele, como um cavalheiro, decidiu me acompanhar até em casa.

Quem olhasse de longe, julgaria sermos duas crianças. Corríamos rindo pelas ruas, implicando um com o outro, fazendo barulho. Prestava atenção no caminho, apenas para não me perder. Quando chegamos na rua da minha casa começamos a dançar mesmo sem música e eu estava encantada com a situação. Ria leve e tranquila.

Em um giro, ele me puxou pela cintura e parou com nossos rostos a centímetros de distância. Nossos corpos estavam colados e era possível sentir sua respiração descompassada, combinando perfeitamente com a minha.

A luz da lua era refletida nas poças de água do chão, dando um aspecto prateado para as ruas. A única luz provinha dos postes, que conferia a paisagem os tons amarelados de uma pintura.

O silêncio, que a essa altura não chegava a 5 segundos, parecia sepulcral. Não tinha nenhuma reação plausível para expressar o que sentia naquele momento. Não sabia se ficava feliz ou preocupada com tanta pressa... Afinal, eu acabara de conhece-lo.

Ele segurou uma mecha do meu cabelo e colocou atrás da minha orelha em um gesto clichê mas, ainda assim, lindo. Me perdi em seus olhos castanhos como um mar de chocolate e o tempo e o espaço já não importavam.