terça-feira, 27 de dezembro de 2022

A maneira mais fácil de se perder é tentando se encontrar. Madalena sempre se viu como uma menina doce e educada, mas após anos de comentários maldosos e ofensas gratuitas ela parte em uma jornada para descobrir sua verdadeira essência.

 A maneira mais fácil de se perder é tentando se encontrar.
Madalena sempre se viu como uma menina doce e educada, mas após anos de comentários maldosos e ofensas gratuitas ela parte em uma jornada para descobrir sua verdadeira essência.


Senhor, Senhor, deixa Negro trabalhar

Não preciso esperar o despertador tocar naquela manhã. O sol lançava seus primeiros raios quando o amor de minha avó pelos afazeres domésticos me despertaram.


Tampas de panela batendo no fogão, a TV ligada sempre no canal 4, meu avô com seu rádio ouvindo a missa... Era tudo uma confusão caótica que indicava que mais um dia começou, exatamente como todos os outros.

- Bom dia, vó.

- Bom dia, minha filha. Dormiu bem?

- Dormi sim, e a senhora? - respondendo pegando as coisas para o café da manhã.

- Vai sair pra procurar emprego hoje?

Eu estou desempregada. Fui demitida algumas semanas do meu último emprego por "corte de gastos", o que na linguagem do meu ex-patrão significa "eu não quero mais que sejamos obrigados a dividir o mesmo cômodo".


Meu país acelerou a pior crise econômica em muitos anos, só não superamos a crise de 1993/1994, onde a margem chegouva a 5.000% ao ano.


Atualmente somos 27,7 milhões de cidadãos desempregados, e os empregados são de dar pena... rotinas ocupadas de 12 horas, péssimo meio de transporte, trabalhando todos os dias por um salário mínimo.


Na verdade, a escravidão só acabou no papel.

- Vou, vo. Claro. - responda com um tom abatido. Odiava a sensação de não poder fazer nada a respeito dos sentimentos que me afligem.

- Pois vá logo, minha filha. Emprego se procura de manhã bem cedo!

Como caminhou, Santo Antônio de Pemba

O meu café da manhã desceu pela garganta quase sem perceber. Empurrava o pão fresquinho com largos goles de suco enquanto tentava domar a zona que estava meu cabelo. Me vesti as pressas sem ao menos prestar atenção... Já tinha minhas roupas de procurar emprego separadas, virando quase um uniforme diário. 

Passei horas seguindo a pé pelas ruas de asfalto precário que compunham minha cidade.  Os vendedores me olhavam com cara de dó, quando se davam ao trabalho de olhar meu rosto. Parei de andar apenas quando chegou a hora do almoço e todos os currículos impressos já haviam sido distribuídos. Continuaria minha busca a tarde, enviando currículos pela internet. 

O sol já castigava minha pele clara, então achei que o melhor seria parar e comer alguma coisa. Próximo de onde estava havia uma pequena praça onde eu poderia me sentar e descansar um pouco.... Sentei em um dos bancos que se encontravam abrigados do sol pela copa das árvores e tentei sentir alguma brisa, mesmo que leve, refrescar o meu rosto. Foi inútil. O tempo estava abafado e quente, fazendo eu me perguntar como uma cidade tão litorânea podia ser tão abafada? Onde estava a maresia? Cadê aquele ventinho gostoso com cheiro de mar?

Antes que eu pudesse identificar de onde veio o movimento, senti meu corpo sendo jogado para trás, o que exigiu certa força para que eu pudesse me manter no lugar. Um cachorro marrom pulava animadamente tentando alcançar o meu colo, desviando do meu braço que tentava afasta-la. Nunca fui próxima a animais, e um desconhecido, de rua, no meu colo, sujando minha roupa clara era o mais desconfortável que poderia chegar minha relação com animais.

- Nicole! Senta! - Ouvi um menino ao longe, com voz desesperada. - Me desculpe, ela costuma ser bastante educada, não sei o que houve. - Disse quando se aproximou, prendendo a cadela de volta na guia. 

- Não se preocupe, não há muito que se possa fazer agora. - Disse tentando esconder a raiva do meu tom de voz, enquanto dava leves tapas em minha roupa tentando me livrar dos pelos do animal que ficaram grudados.

- Eu nunca te vi por aqui... Se mudou tem pouco tempo?

- Na verdade eu moro do outro lado da cidade, estou aqui por acaso. - Peguei um cigarro em minha bolsa e o menino prontamente me ofereceu um isqueiro.

Não sei definir ao certo o que motivou nossa conversa mas, quando percebi, estávamos a horas naquela praça, falando sobre os mais variados assuntos, desde música até o sabor favorito de sorvete de cada um.
Trocamos telefones, e combinamos de não perder contato. Nos despedimos com um abraço meio sem jeito e cada um de nós seguiu seu caminho. 

Quem é aquele homem de branco?

Não sei se foi o fato de eu não ter comido nada desde o café da manhã, o sol forte ao longo do dia ou a velocidade absurda com a qual meu cérebro tentava processar as informações adquiridas no dia, mas minha mente já dava sinais de cansaço. Uma forte dor de cabeça atingia minhas têmporas e minha nuca, desviando minha atenção do caminho.
O fato é que decidi não pensar em nada por um momento. Fechei os olhos e deixei que a brisa gélida e acolhedora me guiasse pelas ruas similares, apenas aproveitando a tranquilidade daquele momento.

Estava, então, em uma área da cidade que nunca visitei. O ambiente periférico deixava um clima melancólico naquela noite de outubro. As casas aqui pareciam mais simples, a iluminação pública era falha e o ambiente parecia desconexo com a cidade agitada em seu entorno. Porém, nada nessa cena, que seria um ótimo início para um filme de terror me causava medo. A tranquilidade era o único sentimento que me preenchia.

Ao olhar para o final da rua, essa tranquilidade se desfez como em um sopro, dando lugar a um arrepio que tomou conta de toda minha coluna e uma apreensão instantânea.

A rua dava em um cemitério.

Nunca fui uma pessoa medrosa, enfrento ruas desertas, brigas, alturas, palhaços... qualquer coisa. Mas não me deixei nem cogitar a possibilidade de haverem fantasmas por perto. Tenho pavor. Minhas pernas se moviam com esforço, me levando passo após passo para mais perto daquele espaço, onde já se viam cruzes por cima dos muros.

Rezava todas as orações decoradas quando criança, quase uma hipocrisia se levado em consideração o fato de eu não ser nem um pouco religiosa.

- Tá rezando por que, moça? Grande desse jeito e com medo da rua?

O susto foi tanto que meu coração foi na boca. Poucos metros a frente havia um homem encostado em um poste.
Trajava um terno branco, que parecia brilhar em contraste com o muro cinza que estava as suas costas, tinha sapatos bicolores e um copo de cerveja em uma de suas mãos. Em sua outra mão, se apoiava em uma bengala, que mais parecia estilo do que propriamente por uma dificuldade de locomoção. Olhei para seu rosto, mas ele estava coberto por um chapéu Panamá de fita preta, deixando visível apenas um largo sorriso de dentes perfeitos.

Era, visualmente, um homem completamente normal. Talvez pudesse ser considerado um pouco excêntrico, pela forma de se vestir, mas nada assustador e mesmo assim continuava ressabiada. Algo dentro de mim me dizia que havia algum a coisa errada.

- Tenho muito respeito por cemitérios e por isso não fico confortável com tanta proximidade.

- E quando a moça morrer ela vai pra onde? - uma gargalhada tomou o som ambiente criando eco.

Não tive resposta para aquela pergunta. Apesar da situação macabra, não me senti ameaçada em nenhum momento. Não conseguindo me acalmar por completo, tratei de apertar o passo querendo fugir da situação.

- Não precisa correr, moça... Nós nos veremos de novo.