Mesmo não se lembrando do porquê ter ido embora, o passado fez com que Chico retornasse para as areias da praia de Santa Tereza que por algum motivo de lá fugiu, deixando Catarina, o grande amor de sua vida.
Devoto do mar e de seus mistérios, muitos o condenavam ao sofrimento eterno. De uma família tradicional apegada ao poder e religião, vinte e cinco anos depois retorna à Ilhabela e acaba por se esbarrar no seu passado e no futuro de uma nação entregue nas mãos de assassinos e religiosos.

O retorno

O que somos além de uma colcha de retalhos de saudades, experiências tristes e felizes e sonhos que não se realizaram? Eu acredito que nada. Estamos sempre nos descobrindo mais humanos e isso nos afasta do divino. Ou será que no fundo, isso nos aproxima? Como sempre digo, meus personagens são fragmentos de minha história. Estamos vivendo tempos difíceis, onde o ter parece ser mais importante do que o ser. Isso eu nunca entendi e pretendo não entender jamais. Perante minha miopia para compreender o mundo, somos muitas vezes obrigados a voltar para o lugar de onde juramos que jamais regressaríamos. Seria isso algo vergonhoso? Não, digo e acredito. Aliás, preciso acreditar. Algumas coisas precisam ser resolvidas, precisam ser descobertas e entendidas. Nada melhor do que o tempo e o destino para nos levar mais uma vez para os conflitos que enterramos nas areias da praia.

As ondas estavam agitadas e avisavam que uma nova tempestade surgiria a qualquer momento. Ouviu-se falar na televisão que seria uma ressaca, assim como também se viam pessoas vestidas de verde e amarelo, comemorando a eleição de ditador. Iemanjá com certeza não devia estar feliz, pensava Chico. Andando pelo cais com o cigarro entre os dedos, sua pele cansada, barba por fazer, roupas molhadas e sujas, conseguia admirar a força do mar. As ondas se chocavam com a areia da praia e a tempestade se aproximava rapidamente.

"Quem dera já estivesse por lá."

Quantas saudades! Quantas lembranças! Lembrava-se das ruas e avenida, das praias e das cachoeiras. Apesar de tudo, estava apreensivo e prestes a voltar de onde mais sentia medo: o passado. Ele era uma adaga que havia perfurado seu peito não tão velho e o machucava, mas que ainda o mantinha vivo. No fundo, ainda sentia esperança. Um raio cortou o céu escuro daquela tarde cinzenta. Era Iansã que se aproximava com seu erukerê, espada e roupas vermelhas. Ventos fortes e poderosos.

- Por que os Orixás estão tão revoltados? Será que não deveria voltar ou será que estão nos avisando dos tempos sombrios que começarão?

Chico já não era tão jovem assim para não saber sobre sua cultura. Dotado de grande esperteza e malandragem, gostava de ler e entender o mundo, mas pelo visto, o mundo não o entendia. Todos tão presos em seus pensamentos, tristezas, angústias e ódio, não conseguiam perceber o quanto estavam sendo iludidos por seus pensamentos.

"Quanta perda de tempo! Olha o mar avisando que nada está do jeito certo!"

Começou a chover pingos de navalha de tão doídos. Chico se escondeu em um bar de pouco movimento de onde ainda conseguia ver a tempestade. Pediu uma dose de conhaque e sentou. Pegou uma folha de papel velha que estava sobre a mesa e pediu uma caneta para que pudesse escrever.

"Aqui estou eu de alma e coração. Naufragado no mar de minhas lembranças. Uns me chama de morto. Morto? Só se for de saudades! De ouvir o canto dos pássaros, do grito das maritacas, da balsa que vai navegando e de andar naquele cais. Essas ondas tão espumadas devem ter sido feitas para admirar. A sereia canta anunciando a chegada da Rainha dos Mares. Quem diria que de seu solo gerasse o sentimento mais próximo de Deus que possuo."  

Capítulo - 2 - O Velho Marinheiro

  A chuva havia aumentado. Trovões e relâmpagos cortavam o céu escuro. O barulho da balsa estava ensurdecedor. Aquele monstro sobre o mar, fazia sons que perturbavam seres humanos e os animais do oceano. O motor urrava enquanto ele chegava do outro lado. Era enorme. Um peso sobre as ondas que cortava o canal de São Sebastião. Uma estrutura enferrujada e velha.

Chico o esperava calmamente. Sua roupa estava encharcada e suja. Sorte que havia trazido outra em sua trouxa. Olhou em direção ao horizonte. Ainda continuava linda como sempre. Aquele lugar lhe trazia uma sensação de felicidade indescritível assim como um lasco de tristeza também. Naquele lugar, onde havia crescido e foi feliz, era também o lugar onde guardava mágoas que ainda carregava dentro de seu peito. Junto ao seu peito, trazia uma pedra esverdeada pendurada por uma linha de pesca. Ele a apertou segurando seus sentimentos.

Quando ela chegou do outro lado, ele subiu na balsa. Carros, motos e outros passageiros também. Muitos o olhavam admirados. Quem seria aquele andarilho que por ali caminhava? O que estava buscando, aliás? Alguns ainda se arriscavam e falavam: "Mais um mendigo andando pelo cais? Não precisamos mais disso!"

"Logo o presidente vai dar cabo de gente como essa! O pastor Santiago vai nos purificar!"

Como eram hipócritas! Não enxergavam mais nos olhos das pessoas, perdiam seu tempo julgando somente o exterior. Xingavam, falavam baixinho e uns se revoltavam com sua presença por ali.

Chico não se importava com esse julgamento. Era melhor assim. Ele não queria que lembrassem dele. Ele tinha receio de retornar. Afinal, foram anos longe dali. Fugindo de si mesmo.

"Onde estão as autoridades que não enxotam esses favelados da ilha?"

O cigarro nos dedos queimava e o acalmava do medo. Olhando para o mar sentiu-se pequeno. Quantos pensamentos antigos se faziam presentes naquele momento? Eram ondas de saudades, de desespero e solidão. Sabia dos seus caminhos e que eles seriam difíceis, mas tinha a fé que Ogum não o deixaria sozinho.

Ogum. Ele era a sua força e a sua fé. Aliás, assim como todos os Orixás e suas lendas. Algo o puxava de volta para lá. Parecia que todo o divino, fantasia e Encantados moravam em Ilhabela.

A balsa voltou a urrar seu grito ensurdecedor e a sirene tocou mais uma vez. Era o momento de retornar. Com o coração aos saltos, Chico pensava:

"Me espera, eu estou voltando."

O céu parecia chorar lágrimas de saudade. Nada mais podia explicar aquela chuva forte. Ele foi para a ponta da balsa e olhava para as ondas que cortava. Era lindo. Nada podia descrever aquele sentimento que tinha e que tomava conta de todo o seu corpo. Ele estava ansioso por voltar. Tanto que quase não conseguia admirar os quase vinte minutos que levaria para chegar. A travessia parecia interminável.

Quando atracou do outro lado, ele desceu e olhou. Como as coisas haviam mudado! Tinha algo de diferente, entretanto, tudo parecia do mesmo jeito: as ruas de ladrilhos, a velha banca de jornal, os pássaros e o cheiro das folhas. Seus chinelos velhos e gastos, ele tratou de tirar para pisar mais uma vez naquele chão. Que paz que sentia! Que amor! Segurou para não chorar enquanto os outros passageiros desciam.

Parecia que no fundo, ele se via ali mais de vinte anos atrás. Feliz, contente e amado. Ele tinha uma prometida para ele. Queria revê-la. Como será que ela estaria? Será que ainda morava na mesma casa, no mesmo povo? Será que ela o estava esperando como um dia havia prometido?

Ficou tão perdido em seus pensamentos que ao menos percebeu que já estava começando a escurecer e ele não tinha lugar para ficar. Aliás, até tinha. Mas não sabia se deveria estar por lá. Já havia sido uma luta interior voltar para aquele lugar. Sabia como era se sentir indesejável em um lugar. Já bastava estar ali.

- Onde devo ir? – pensava. – Meu coração deve me guiar.

As folhas das arvores balançavam com o vento que soprava e muitos se escondiam da chuva. Outros, já nem estavam mais por ali.

Chico decidiu ir para onde sentia o coração mais próximo de Deus e arrastando os pés pelas poças de água das ruas, ele foi em direção à Praia de Santa Tereza. Era um pouco longe, mas isso não seria algo ruim. Poderia continuar lembrando de outros tempos. Os tempos que ficaram em sua memória. Passou pela vila, pelo velho cais e seus sentimentos saltavam dos olhos.

Chegando a Santa Tereza, pôde admirar toda a beleza daquele lugar. Barcos atracados na beira do mar, arvores espalhadas pela costa, as ondas que beijavam a areia. Fechou os olhos e sentiu o cheiro do mar. Como aquilo era bom! Nenhum lugar do mundo tinha tamanha beleza e paz para ele do que ali. Muito chovia e tratou de se esconder embaixo de uma palmeira. Tirou a camisa molhada e a estendeu sobre um galho de arvore e sentou na areia. Olhava para aquela imensidão.

O que era a tempestade para ele se não Iemanjá que resolvia dançar sobre as águas? Em meio aos trovões e relâmpagos, ela bailava e fazia dormir os marinheiros desastrados no fundo do mar. Ela que era mãe e esposa, cantava sua música. Muitos tinham medo. E ele? Somente admirava. Julgavam seus passos mas nenhum deles queria calçar os seus chinelos. Eram tempos de mudança mas por que o passado insistia em lhe atormentar? E em pensamento, perguntava:

"Quando será o dia em que Iemanjá me levará para conhecer seu Reino submerso?"

Era tarde quando resolveu caminhar. Estava com fome e precisava comer. Procurou por entre a areia algum caranguejo ou alevino. Agradeceu em seu coração e pensamento pela chuva ter acabado. Entretanto, estava sem sorte. A noite parecia mais escura que o normal e a lua iluminava seus passos, assim como o farol e alguns barcos ao longe. De frente ao mar de Santa Tereza, seus pés cansados pisaram na areia molhada e admirou. O que podia fazer? Ali era o seu lugar. Sentia o rosto quente e seus cabelos grudavam. Seu olhar se perdia ao longe. De repente, ouviu um barulho que vinha de lá. Algo não estava certo. Chico se assustou. Seu coração estava disparado quando viu o que era. Um grande buraco se fez no meio do mar negro e as ondas se agitavam. A luz do farol ao longe permitia que ele enxergasse a tudo que acontecia. Um navio negro, velho e feito de madeira assomou-se sobre as águas e um marinheiro com rosto de caveira gargalhava. O navio balançava de um lado para o outro e se aproximava da praia. Aquele era o navio que mudaria a vida de Chico para sempre.

Capítulo - 3 - Encontro

"Dizem que Exu não é Marinheiro para arrancar um tronco do mar.

                                        Corre chuva, cai sereno. E o tronco no fundo do mar."

   Chico assustou-se. Não podia acreditar que seus olhos estavam vendo. Aquele navio, de onde havia surgido? Ele assomou por cima das ondas, algo que não poderia se explicar. Cheio de trincos e rachaduras, alevinos e alguns caranguejos e algas marinhas presas por todo convés, ele se aproximava da Praia de Santa Tereza.

   Ele olhou para aquele marinheiro que gargalhava alto. Aquilo não podia ser real. Um rosto de caveira? Ele só poderia estar delirando. Quanto mais se aproximava, mais Chico sentia medo.

   Ao atracar, o marinheiro com grande esforço, desceu do convés. Ele tinha as roupas rasgadas, carregava um lampião na mão direita e uma garrafa de bebida na esquerda. Entre os seus dedos de esqueleto, tinha um cigarro aceso quase no fim. Ele não havia saído de dentro da água? Como poderia estar aceso?

   Ao ver Chico, gargalhou mais uma vez e se aproximou dele. Mancava com sua perna de pau. Chico sentiu o coração gelado e o medo dominar todo o seu corpo. Tentou correr, mas tropeçou nos buracos da areia. Tentou se levantar, mas algo havia deixado seu corpo mais pesado. Tentou gritar, mas a voz não lhe saiu da garganta. Suas mãos tremiam e a espinha arrepiada. O marinheiro caminhava sem pressa ao seu encontro. Tinha um atleta ofegante e parecia estar com muito sono. Em seu pescoço, tinha um colar feito de contas pretas, azuis, conchas e ossos de peixes que quando balançavam, dava a sensação de maresia.

   Chico o olhou com os olhos arregalados. O que era aquilo?

   O marinheiro gargalhou mais uma vez. Trazia uma energia junto dele e uma força que não se duvidava.

- Quem é você? – perguntou Chico. – Você é um demônio?

   O marinheiro tomou um trago de sua bebida antes de responder. Tinha uma voz de espectro.

    - Muitos me chamam assim. Mas não sou.

    - Então, é um anjo?

Ele gargalhou.

    - Ninguém me chama assim. Mas não sou.

   - Então, o que você é?

   - Talvez demônio e anjo.

   - E o que você quer?

   - O que eu quero? Você quem veio ao meu encontro. Já se esqueceu?

   - UE? Ao menos te conhecer. Aliás, você é real ou é algo da minha cabeça?

Chico não estava entendendo nada. O que ele queria dizer sobre ir ao seu encontro? Demônio e anjo? Quem ele era?

   - Que memória fraca. E depois digo que minha bebida que me deixa assim.

   - Não estou entendendo. O que está conectado?

   - Nada está transitório. Apenas na sua cabeça. É mais fácil achar que seja isso, não é? Já fugiu uma vez daqui. Por que não fugir de novo, não é? Quer provar algo para você mesmo.

   - Qual é o seu nome?

   - Isso não importa. Me chame de Marinheiro só.

Chico sentiu cheiro forte de álcool. Chegou a pensar que poderia estar bêbado em algum lugar e aquele encontro fosse somente parte de seus delírios. Era algo tão normal sua imaginação leva-lo para lugares desconhecidos que já não se importava.

   - E o que você quer?

   - O que eu quero? Isso também não importa agora. O que importa é que eu tenho aquilo que você quer.

Chico sentiu o coração acelerar.

   - E o que é?

O Gargalhou Marinheiro.

   - Respostas!

   - Então você sabe de tudo?

   - Não tudo. Mas sei mais que você.

   - E você vai me ajudar?

   - Depende.

   - Faça o quê?

   - Será que você está pronto para voltar para lá?

   - Para onde?

   - Pará o passado. Lá que estão todas as respostas. E hoje, você pode continuar escrevendo suas memórias. Mas depois vai esquecer. Já te adianto isso.

   - Você fala e eu não entendo. Onde você quer chegar?

   - UE? Em lugar nenhum. Mas eu sei onde você quer chegar.

   - Onde?

   -Em Catarina.

Chico arregalou os olhos. Como aquilo poderia saber sobre os segredos de seu coração? Não podia ser verdade. Ele na verdade, nem existia! O Marinheiro gargalhou mais uma vez.

   - Não vou te contar como eu sei disso. Mas você pediu ajuda e eu vim.

   - Então, os Encantados enviaram você para me ajudar?

   - Acho que eu sou um dos Encantados, sabe? Não me lembro direito. Acho que é muita bebida.

O Marinheiro bocejava. Chico ainda não conseguia entender, mas estava curioso em saber mais sobre aquele ser de outro mundo que ali havia aparecido.

   - Eu na verdade, estava te esperando. Não aguentava mais ficar em baixo das ondas. Bom que agora eu vou navegar por um tempo antes de voltar para lá.

   - Você me esperava?

   - Fazem o que? Vinte e poucos anos? Ainda bem que voltou.

- Como você sabe disso?

O Marinheiro fez um gesto de silêncio antes de responder.

   - É segredo.

E gargalhou.

   - Você sabe o que pensa. E pensa que sabe.

   - E não sei?

Tomou mais um trago.

   - Não. Mas eu vou te contar.

   - Então, posso te chamar de amigo?

   - Acho que é muito cedo para me chamar assim. Pode me chamar de conhecido.

   - E você vai me ajudar?

   - No tempo certo, você terá suas respostas, saberá onde buscar e como agir. Estarei observando seus passos. Sempre que precisar, venha até aqui de madrugada para conversar. Ah, e traga na próxima vez, uma garrafa de cachaça e um maço de cigarros. O meu está acabando.

   - Espere! Para onde você vai?

   - Eu não devo inspirar para você. Mas eu mandei chamar alguém que você pode chamar de amigo. Ninguém mais pode me ver e nem saber de mim, compreendeu?

O Marinheiro com um aceno de mão, foi em direção à beira da praia e mais uma vez, subiu em seu navio. Ele virou a vela e partiu sem olhar para trás. Chico observava ele se afastar e desaparecer no horizonte.
Tudo ficou no mais completo silêncio como se nada tivesse experimentado. Apenas se ouvia o barulho das ondas que ainda quebravam na praia e surravam os barcos atracados. Parecia ter sido apenas um sonho ou um delírio como assim ele pensava ser.

   - Um Marinheiro? – pensava.

De repente, ele ouviu passos sobre a areia. Quem estaria por ali? Era tarde. Procurou em seus bolsos o seu canivete. Não daria chance ao azar. Tinha algo a ser apreciado naquela Ilha.

   -Chico? – ele ouviu alguém chamando-o.

Ao se virar, encarou o rosto envelhecido de Alberto.

   - Então, é você mesmo?

Capítulo - 4 - Velho Amigo

- Não quem gosta de você por ser quem é.

- Quem gosta de andarilhos? Veja só como nos tratam. Pessoas que nos são iguais por terem uma migalha a mais na mesa, acham que são os donos do poder e ao menos conseguem pensar que todos estamos muito unidos.

- Muitos o julgam como louco.

- Claro. Esse julgamento sempre fariam.

- Tinha tudo: casa, família, dinheiro e...

- Todos acabam por enxergar somente o óbvio. Não conseguem ir além de suas limitações nos olhos.

- E tinha Catarina.

Chico sentiu a espinha gelar. Talvez fosse pelo frio, talvez fosse pela sensação que o acompanhava sempre que bebia um trago de cachaça.

- E onde ela está?

- Isso não sabemos.

- Como assim? Ela disse que me esperaria!

- Por vinte anos? Por acaso, não pensa que seria egoísmo de sua parte pensar que ela estaria todo esse tempo aguardando o seu retorno, enquanto você calmamente procuraria seu próprio caminho? Você a abandonou.

Chico sentiu uma fisgada em seu peito. Não tinha como negar. Ele havia feito isso. Mas poucos entenderiam o real motivo de sua partida. Não adiantaria explicar em poucas palavras.

- Quero encontrá-la.

- Sabe que será uma tarefa difícil.

- Isso não importa. Que demore mais vinte anos, mas a quero comigo. Tenho quem me ajude.

- Quem?

- Os Encantados.

Alberto bufou e jogou o filtro do cigarro no chão de terra.

- Por acaso ainda acredita que Eles possam te ajudar? Já tentaram uma vez e você fugiu.

- Ora, o que quer por acaso? Que não tivesse voltado?

- Ao contrário. Que tivesse voltado antes. Senti saudades suas.

- Eu também senti.

- Quando me falaram que o tinham visto entrando pela balsa de São Sebastião, não acreditei. Achei que deveria ser uma mentira. Já haviam falado antes sobre isso mas nenhum sinal seu. Sempre me frustrava. Fico feliz que dessa vez tenha sido verdade.

- E me diga: o que estava fazendo andando pela praia essa hora da noite? É madrugada.

- Sim, eu sei. Já havia me deitado depois de ter tomado quase meia garrafa. Algo não me deixava dormir. Como disse, muitas vezes haviam dito que você havia voltado, mas eu nunca acreditei muito. Dessa vez foi diferente. Não conseguia descansar. Então, uma gargalhada vindo da praia me chamou para lá. Algo espectral. Você não ouviu?

Chico não podia acreditar. Aquele marinheiro havia chamado Alberto para que fosse ao seu encontro e também o ajudasse. Seu amigo de infância, aquele com quem havia crescido junto e descoberto os mistérios do mar. Quanta loucura, meu Deus! Então, ele era real! Lembrou-se de suas palavras: "Ninguém mais pode me ver e nem saber de mim, compreendeu?"

- Não, não ouvi nada.

- Bom, talvez tenha sido por conta da bebida. Algo me chamou para Santa Tereza. Andando por lá, eu vi alguém e um barco que desaparecia em mar aberto. Não sei como, sabia que se você realmente estivesse aqui, estaria naquele lugar.

- Pois agora aqui estou. Desde que cheguei não me deu um abraço.

Alberto gargalhou. Era realmente Chico aquele andarilho. Rapidamente o abraçou e lhe beijou.

- Pois é, meu irmão. Enfim, você voltou.

- E me conte: o que fez por esse tempo todo?

- Bom, eu continuei vivendo na beira de Santa Tereza, colhendo meu sustento e semeando minha vida. Meus pais já se foram desse lugar então fiquei na casa que é minha por direito. Não me casei. Não tenho tempo para viver esses amores infelizes que teimam em dizer que é para isso que nascemos. Então, aproveito o que de melhor tenho na vida: o mar, meu barco e os botequins.

Chico riu.

- Não pensou em se casar?

- Teve uma época que sim. Mas depois achei melhor não. As pessoas estão cada vez mais doentes, Chico. Veja o que tentam fazer com nossa ilha. Sem contar na quantidades de religiosos conservadores que nos atrapalham. Querem ser santos, mas de santos não tem nada. Eu mesmo desvirginei umas cinco da igreja.

- Vivemos em uma sociedade hipócrita. Isso sempre foi muito claro para os meus olhos.

- Seus olhos eram de Catarina. Mas aí olhou para o lado e o mundo te corrompeu. Te jogou na marginalidade assim como muitos de nós marinheiros de alma.

- E eu só queria viver em paz. Por que será que era tão difícil para todos entenderem isso?

- O mundo nos transforma em seres egoístas, Chico. O governo tira direitos e ao invés de se juntarem como um povo só, preferem se dividir em elite e falsa elite. Por isso, sempre preferi viver longe das pessoas.

- É um pouco triste dizer isso. Não se pode ser feliz sozinho.

- Não estou sozinho. Tenho comigo os Encantados. A espada de Ogum vence meus desafios, o Erukerê de Iansã venta para longe toda a maldade, Oxum me traz sua calmaria e Iemanjá me dá o sustento. Eles são minha força.

- São minhas também.

- Agora me diga: pretende ficar?

- Aqui foi o lugar onde nasci. Onde aprendi a pescar, navegar e amar. Se quero morrer feliz algum dia, terá que ser nessa mesma terra.

- Eu te entendo. Sabe dos desafios que terá que enfrentar, não é?

- Sim. Ainda tenho que ir de onde saí.

- Sabe que os velhos já foram?

- Claro. Essa notícia me atormentou por um tempo.

- Sabe que ele está lá, não é?

- Terei que me encontrar com ele.

- Pois desejo boa sorte. Apesar de tudo, é um bom e velho amigo. Enquanto quiser, ficará nessa casa. Não tenho muito o que oferecer. Mas o pouco que tenho, lhe dou de bom coração.

- Muito obrigado.

- Vou me recolher. Pode deitar onde achar melhor por aí e se ajeitar.

Alberto foi em direção a casa e entrou. Chico o olhava desaparecer por entre a porta. Estava feliz em ter encontrado esse velho amigo. A casa realmente precisava de uma reforma: o telhado em falta, paredes rachadas e a tinta gasta. O ser humano responde ao ambiente no qual vive. Será? Se assim fosse, não preferiria ter ido embora e teria aproveitado a boa vida que tinha. Não, essa regra havia exceções. Ele também estava cansado de tudo. Seu corpo estava surrado pelos anos e pelo descaso de uma realidade que já deveria ter morrido. Mas alguém a alimentava ainda com belos banquetes. E o povo? Comia o resto sem cerimônia como se aquilo os deixassem livres de qualquer opressão sem enxergar que já estavam nela até o pescoço. Isso teria que mudar um dia. Chico tinha a certeza. Por hora, ele queria descansar também. Teria muito o que fazer por ali e como aquele marinheiro havia lhe dito, as respostas estariam em seu passado e para lá, ele teria que voltar. Oxumarê então, enviou mais uma vez a chuva que transformava a terra vermelha em barro lodoso que curava. Ali, deixaria seus piores sentimentos para assim conseguir dormir.

Capítulo - 5 - Um Grande Problema

Alexandre estava inquieto. Aquilo não podia ser verdade! Torcia para que fossem somente mentiras como já havia sido anteriormente. Depois de tantos anos, ele realmente estava de volta? Ele olhava pela janela e via do lado de fora aquela tempestade. Todos os seus planos haviam caído por terra.

- Chico, seu maldito. Então, é verdade dessa vez?

Que pesadelo! Seu irmão mais velho havia voltado do inferno para atormenta-lo. Que desgraça!

Chico era dado como morto e assim ele deveria estar. Durante o processo de herança, ele estando como desaparecido, logo toda a fortuna seria de Alexandre. Faltava só alguns meses para que isso acontecesse.

- O que será que ele veio buscar ? – se perguntava. – Deve estar atrás de dinheiro.

Alexandre coçava a barba que contornava seu rosto. Bebia e sentia desespero. Sua mulher e seus dois filhos estavam dormindo e somente ele não conseguiria pregar os olhos. Os negócios da família, seu padrão de vida, seu conforto, teria que dividir com o moribundo de seu irmão mais velho?

- Vagabundo! Por que resolveu voltar?

Alexandre tinha que dar um jeito para que ele não aparecesse pedindo o que lhe era por direito. Isso seria difícil demais.

- Preciso pensar. Preciso pensar. E rápido!

Andava de um lado para o outro e sentia que tempos difíceis chegariam para ele também.

- Tudo seria mais fácil se você continuasse morto e enterrado em sua cova. Assim, em breve você vai estar.

O novo dia amanheceu. Muitos pássaros cantavam sobre as arvores em volta da casa de Alberto, o sol brilhava e o cheiro de café subia e inebriava os sentidos. Chico havia dormido no sofá da sala e despertava de seu sono. Havia sido uma noite tranquila. Fazia tempo que não tinha um teto para poder descansar e dormir.

Foi em direção à cozinha e encontrou seu amigo que fumava seu costumeiro cigarro com o canto da boca enquanto passava o café. Ao vê-lo, cumprimentou-o:

- Bom dia.

- Dormiu bem?

- Muito bem. Fazia tempo que não me sentia em casa.

- Venha, sirva-se.

Chico pegou uma caneca e pegou um gole de café. Sentou-se na mesa e serviu-se de pão e manteiga. Alberto fez o mesmo.

- O que pensa em fazer por aqui?

- Eu quero me encontrar com o passado.

Alberto riu.

- Bom, eu vou para Santa Teresa. Se quiser, me encontre depois por lá.

- Também vou precisar me manter. Talvez procurar um trabalho.

- Em meu barco sempre haverá lugar para você. Como nos velhos tempos.

- O mar tem seus mistérios. Iemanjá teria que me permitir viver de suas águas e seus animais.

- Pois, pense sobre isso. Tenho que ir. Sabe onde me encontrar depois.

Alberto molhou o pão no café, o engoliu de uma vez e saiu sem olhar para trás.

Era o sol do meio dia. Chico caminhou muito, sentia os ombros arderem e o suor a desenhar seu rosto. Era incrível como todos ainda o olhavam de forma estranha.

Tentava passar desapercebido, mas a notícia já havia chegado em quase todo lugar. Ele estava de volta! Entretanto, não era isso que ele queria. Ele só estava ali por Catarina. Ela era sua maior riqueza e faria de tudo para encontrá-la. De todas as lembranças, ela era a mais cara do seu coração. Pouco importava onde havia morado, o que havia comido ou quantas moedas podia ter. Isso para ele nada valia.

Sentia que o mar o chamava de volta. Sentia seu peito apertado e o coração acelerava a cada novo passo que dava. Sua cabeça começou a latejar como se navalhas caíssem do céu e a acertassem.

O sol ficava cada vez mais forte e ele não tinha ao menos uma gota de água para beber. Tentava juntar água em sua boca já seca por tanto caminhar.

Estava se aproximando. Em cada passo que dava, pensava em como ela estaria e nos beijos e abraços de saudade que poderiam dar.

As casas estavam diferentes. Boa parte delas já havia perdido sua simplicidade e amor e foram trocadas por casas muito bem desenhadas para que famílias ricas pudessem aproveitar seus finais de semana e férias, poluindo a ilha com suas ideias conturbadas de mundo e preconceito com os verdadeiros habitantes do lugar.

"Pois se matam de trabalhar o ano inteiro, vivendo em meio a uma selva de pedras, cheia de desigualdades, ódio e preconceito, ignoram seus irmãos ao lado que passam fome e vivem em completa miséria jogados em favelas, destilam seu veneno sobre os menos favorecidos, ocupam seus lugares com suas casas cheias de frescuras para aproveitar o que era delas por direito, compram sua dignidade, seus sonhos e vendem suas desilusões. As transformam nos novos escravos do novo tempo."

"Mais um mendigo na ilha? Onde estão os policiais? Se está por aqui deve estar querendo roubar nossas casas!" – ouvia.

Chico entrou na rua. Não podia controlar sua emoção diante de tantas lembranças e saudade. Era inevitável e não podia negar o que sentia naquele momento. Como será que ela estava? Ouviu dizer que ninguém sabia de Catarina e não adiantava procurar qualquer tipo de informação pois ela parecia ter desaparecido daquele lugar onde todos se conheciam nem que fosse somente de vista.

Qual seria a reação dela ao vê-lo? Será que o reconheceria? Claro que ele havia mudado e acreditava que ela também deveria estar diferente. Mas sabia que o coração dos dois batiam juntos e que isso seria o suficiente para sentirem a mesma coisa que vinte e poucos anos atrás.

Ao chegar em frente onde ficava a casa de Catarina, Chico arregalou os olhos e não podia acreditar no que eles mostravam.

Capítulo - 6 - Retalhos e Passado

casa Aquela pequena que guardava tantas lembranças com seu quintal cheio de flores e plantas de onde subia cheiro de mirra e tapete de Oxalá, com galinhas e pés de fruta, telhado torto de cor vermelha, paredes brancas descascadas por causa do sol e portão enferrujado pela maresia, já não existia mais. Não consegui entender. A casa não ficava por ali?

Olhou para a casa dos vizinhos e ouviu que alguns continuariam do mesmo jeito. Subiu um pouco mais a rua e viu uma velha que pareceva ter mais idade do que uma criança sabe contar que estava no quintal da casa, aguando as plantas e cuidando de seus bichos. De pele negra e cabelos brancos, corpo curvo e roupa simples, ainda carregava seu cigarro de palha na boca. Chico foi ao seu encontro.

- Dona Gertrudes?

Ela virou-se espantada. Seu grande cachorro no quintal estava amedrontado com a aparência de Chico e avançou ferozmente em direção ao portão. Ela o olhou surpresa. Seus olhos estavam arregalados e não podiam acreditar no que estava vendendo.

-Chico? – perguntou. – Por acaso é você, Chico?

- Sim, sou eu. – respondeu com certo cansaço na voz.

Ela o olhou ainda amedrontada. parecia que estava vendo um fantasma, uma aparição e que os mortos estavam saindo de seus túmulos.

- Meu Deus... Será que isso não é de minha idade avançada? – perguntava a si mesmo.

Mesmo ainda temerosa, tocou o cachorro para o outro lado com um galho de marmelo e foi em direção ao portão. Tocou o rosto de Chico com suas mãos velhas e calejadas. Seus olhos encheram-se de lágrimas e seus lábios tremeram. Abraçando-o, chorou.

- Meu filho! Quanto tempo! Que saudades de você!

Chico devolveu o abraço e seus olhos avermelharam. Como amava aquela preta! Fiquei feliz em encontrá-la viva.

- Por onde andou, menino? Todos nós ficamos tão preocupados!

- Estive perdido. Agora estou de volta para recuperar o que é meu.

- Vamos, entre. Está muito sol e você parece cansado.

Ele obedeceu e foi em direção a cozinha. A casa de Dona Gertrudes mantinha a mesma: os móveis velhos, o vermelhão no chão, suas xícaras sem asas, janelas e portas enferrujadas e o cheiro de feijão cozido de sua velha panela de pressão. Chico sentiu que estava mergulhando em um mar de lembranças.

Dona Gertrudes entrou logo depois e pediu para que ele se sentasse. Pegou sua moringa de barro e lhe serviu um copo de água que ele bebeu de uma só vez. Estava cansado e com muita sede. Ela o serviu de novo e esperou que ele lhe falasse algo.

- Faz muito tempo, não é, minha velha?

- Muito. Mais de vinte anos.

- Ainda guardo as boas gravações que tive ao seu lado e de Catarina nessa casa.

- Elas vivem dentro do meu coração. Esperei por tanto tempo para revê-lo que ao menos sei o que dizer.

- Eu também. Você faz parte do que sou.

- O que posso fazer para te ajudar? O que gostaria de saber?

- Eu quero saber onde está Catarina.

Dona Gertrudes disse sem olhar-lo nos olhos.

- Eu não sei onde ela está. Desapareceu.

- O que houve com a casa em que ela morava?

- Você não se lembra de nada do que aconteceu?

- Não. É como se nada tivesse experimentado.

Dona Gertrudes remexeu-se na cadeira e esfregou suas mãos. Os Encantados ficaram escondidos nas ondas do mar como lembranças daquele passado.

- Contarei o que sei e o que ouvi. Quando você foi embora sem que pudesse entender de certo o que havia desejado, Catarina ficou amedrontada. Alguém a perseguia. Certo dia, houve uma grande confusão na ilha. Ninguém conseguia entender direito o motivo mas procuravam por ela. E então, entrou em sua casa e...

Dona Gertrudes fez uma leve pausa.

- E então?

- Colocaram fogo em sua casa.

Dona Gertrudes tinha as mãos trêmulas. Chico mesmo sem coragem, perguntou:

- Catarina estava dentro da casa?

- Não. Ela não estava. Mas também não sabemos para onde foi.

Chico mergulhou nas palavras que a velha lhe contava. Tudo ainda estava muito confuso para ele. Mas, Catarina ainda estava viva e ele sentia isso.

- Não se preocupe. – disse para Dona Gertrudes. – Tudo vai ficar bem.

- Não seja bobo, menino. Meu coração para sempre guardará essa tristeza.

- Não guarde mais. Eu prometo que vou encontrar Catarina, custe o que creme!

-Ao menos sabemos por onde começar.

- Os Encantados vão nos ajudar.

- Você continua o mesmo menino de vinte e poucos anos atrás. Embora sua aparência seja outra, seus olhos continuam com o mesmo brilho.

- Chegará o dia em que nós estaremos reunidos. Disso eu tenho certeza.

Chico conversou por mais um tempo com a velha e então, despediu-se prometendo voltar com boas novas. Ela ficou a olhá-lo do portão enquanto se distanciava. Ao virar a esquina, ela entrou para dentro de sua casa e foi em direção ao seu quarto onde mantinha um pequeno altar com a imagem de uma santa negra como sua pele e que era coberta por uma rede de pescas e estrelas. Ajoelho-se devota e senti o amor e a esperança voltarem para aquela casa. Acendeu uma vela azul marinho e, com devoção, juntou suas mãos e pediu:

- Minha santa, chegou a hora do mar revelar os segredos que guardamos. Proteção para nossa banda. Olhe pelos seus filhos que com humildade lhe pedem.

Capítulo - 7 - Crise em Alto Mar

Chico ainda não conseguia acreditar em tudo o que havia ouvido da velha. As palavras pareciam não fazer sentido para ele. Como não conseguia lembrar? Ao menos, se lembrava do porquê havia ido embora da ilha sem se despedir. Muitas perguntas o assombravam naquele momento.

O sol estava forte e então, Chico tirou sua camisa mostrando seu corpo magro e calejado. Trazia somente no peito a pedra esverdeada. Muitos ainda estavam olhando para ele como se fosse um marginal.

Foi em direção à Praia de Santa Tereza. Alberto ainda estava por lá e sabia que podia contar com ele. Talvez soubesse de mais coisas para juntar os fragmentos daquela história tão vaga em sua mente.

Muitos pescadores também estavam por lá. Barcos e mais barcos estavam atracados sobre a areia e alguns estavam sobre o mar, procurando o sustento que levariam para casa, além de um bom peixe e novas histórias e lendas. Chico avistou Alberto em seu barco sobe as águas e assobiou para chamar sua atenção. Ele de seu barco velho, tinta gasta e trincos, fez sinal para que ele fosse ao seu encontro. Seria como nos velhos tempos: os dois pescando no mar, rindo e bebendo, celebrando a vida e seus amores. Vinte anos depois e eles continuavam os mesmos de sempre. Chico talvez, não fizesse ideia do quanto havia feito a saudade surrar o coração de seus amigos.

Alberto havia esperado tanto por esse momento. Não imaginava que um dia poderia viver essa experiência mais uma vez. Sentia a garganta quente e sabia que isso não era por conta do calor que fazia e nem da água salgada que secava e grudava por toda sua pele morena.

Chico sentiu-se feliz por um momento. Percebeu que muitos o olhavam e estavam admirados com sua mudança mas contentes em vê-lo mais uma vez por ali. Claro que muitos não o conheciam mas outros traziam lembranças frescas no coração. Pegou a canoa vermelha sobre a areia e a colocou no mar. Sentiu as mãos tremerem. Que emoção era aquela? Não se lembrava de ter sentido isso em momento algum de sua vida. Estava meio confuso e sentiu-se um pouco tonto. Entrou no mar empurrando a canoa para depois entrar nela e remar até o barco de Alberto. Seu coração estava acelerado. Alberto o olhava apreensivo. Percebeu que algo não estava bem com Chico.

Começou a remar. A água colidia com a canoa e molhava as pernas e o barulho das ondas estavam o deixando um pouco enjoado. Será que havia desaprendido como entrar no mar?

Ele estava se aproximando do barco de Alberto e muitos o olhavam. Chico estava concentrado e não podia ouvir nada mais que as ondas. Muito remava para chegar mais rápido, mas sentia-se sem forças. Seria a notícia que havia recebido de Catarina? Bem que poderia. Aquela história ainda estava muito recente para ele e seu caminho então estava incerto. Muitos queriam que ele estivesse morto. O que faria dali para frente? Qual seria o sentido de estar mais uma vez em um barco sem poder se encontrar com quem tanto amava?

Chico começou a sentir falta de ar. Um medo então tomou conta do seu corpo e mal conseguia pensar no que estava acontecendo. Sabia que não estava bem, mas não entendia o motivo. Talvez fosse medo, insegurança, solidão. Tanto havia se acostumado com esses sentimentos que não conseguia se desvencilhar e eles vieram com força para atormentá-lo justamente naquele momento?

"Pense no agora! Pense no agora! Você precisa se concentrar!" – dizia para si mesmo. – "Não se entregue, não se entregue!"

Tudo em vão. Aquele sentimento crescia dentro dele. Só conseguia ter lembranças tristes naquele momento.

Alberto percebeu o que estava acontecendo. Chico estava sendo acometido mais uma vez daquele sentimento que tinha em seu coração.

- Droga! – pensava. – Isso pode ser perigoso!

- Chico! – começou a gritar. – Chico! Olha para mim! Venha até aqui! Só existe eu e você agora! Não pense em mais nada!

Ele parecia não ouvir. Estava ofegante e não entendia mais nada.

- Droga!

Alberto assobiou para que os outros estivessem em alerta para acudi-lo. Então, virou as velas de seu barco e foi em direção ao amigo!

- Aguente firme! Está tudo certo! Olhe para mim!

De repente, uma onda mais forte foi de encontro com a canoa de Chico, fazendo com que ela virasse. Ele então, caiu no mar e começou a afogar.

Alberto não esperou o barco virar e mergulhou no mar e foi até Chico. Ele não podia acreditar que aquilo estava acontecendo. Dando braçadas no mar, indo junto com a maré, se aproximou do amigo que se debatia.

- Calma, rapaz! Calma! Se for para morrer, vamos morrer juntos, mas se for para te buscar, vou até o fundo do mar!

Alberto o segurou pelo cabelo, tentando fazer com que ele conseguisse redobrar a consciência. Logo, ele estava acalmando e sentindo-se mais lúcido. 

Capítulo - 8 - Perigo sobre a Areia

Passou-se duas semanas. Chico estava em um bar junto com Alberto que bebia com outro beberrões e marinheiros de alma. Se divertia e deixava se envolver com todos os presentes e pela boemia. O ambiente era bem animado e muito cheio. Apesar de apertado, todos podiam aproveitar o resto daquele dia de trabalho. Uma luz amarelada iluminava o local e algumas vespas batiam contra a lâmpada.

Chico entretanto, não conseguia se divertir como os outros. Embora muitos já o tivessem reconhecido, abraçado, oferecido cachaças e porções, ele parecia distante de tudo que ali estava. Tentavam animá-lo mas em vão. Não conseguiam ao menos afastar os pensamentos mais terríveis que ele tinha no coração. Desde o que havia acontecido na praia de Santa Tereza, ele não conseguia fazer quase absolutamente nada. Sentia-se um inútil. Sem contar que ainda não havia descoberto nada sobre Catarina. Será que ela realmente havia desaparecido? Poderia até ter morrido ou se encontrar casada com outro. Só de pensar nas possibilidades, seu coração apertava. Aquilo era o medo que o cercava. Seria esse o motivo de tanto pavor de estar naquela ilha mais uma vez?

Ele estava encostado de frente ao balcão com um copo pela metade com uma cachaça de canela. Fazia certo calor e usava uma camisa regata branca que seu amigo havia lhe emprestado. Alberto se aproximou sorrindo e com as bochechas já pouco coradas. O abraçou e enfim perguntou:

- Meu amigo, o que sente por acaso?

Chico sem olhá-lo nos olhos, respondeu:

- Sabe que ainda estou preocupado com toda essa situação.

- Não fique se entregando aos sentimentos de forma tão intensa. As coisas simplesmente são assim.

- Custa aceitar que isso seja normal. Como pode um marinheiro, um pescador sentir medo das águas quando entra em uma canoa?

- Isso tem um motivo.

- E qual seria?

- Isso somente o tempo vai poder dizer.

Tempo. Qual tempo seria esse? Já não havia esperado o suficiente? Vinte e poucos anos depois, ele estava ali no mesmo lugar que sempre esteve e as respostas escapavam de seus dedos como a água. Percebeu que seus dedos estavam magros e calejados. Lembrou-se de alguém. Sabia quem talvez pudesse lhe dar algumas explicações e assim pedia dentro de seu coração.

- Tenho causado problemas. Ao menos, consigo ajuda-lo.

Alberto beijou o rosto de Chico.

- Sua amizade é o suficiente por enquanto. Não tenha tanta pressa.

- Você é um bom amigo.

- Podia tentar se alegrar por algum momento. Seria bom que se distraísse e tirasse essa carrranca. Sabia que todos aqui sentiram muito sua falta?

Chico olhou em volta e percebeu que todos estavam de alguma forma, tentando ajuda-lo e fazê-lo se sentir em casa. Lá estava João Figueira, um português abrasileirado de bigode grosso e pouco calvo que trabalhava em um quiosque da praia. Havia saído de Portugal primeiro para depois trazer a mulher e seus dois filhos mas a navegação em que vieram, naufragou na África e somente ele chegou com vida na terra do cruzeiro. Passava quase todos os dias embriagado para não pensar muito sobre sua vida. Era grande amigo de Chico também, de quem tinha muita admiração. O Jaira também estava lá. Embora muitos olhassem torto para ela, os que ali estavam eram seus verdadeiros amigos e aquilo jamais havia sido problema para eles. Alguns até já haviam se apaixonado por ela, já que tinha uma cor de mulata perolada, coxas grossas e bonitas e pequenos peitos. Era alta e imponente, sempre cheirando à alfazema e cama de homem. Chico sempre achava graça em suas unhas pintadas pois eram mãos volumosas que mantinham a delicadeza de sua alma. Trabalhava no quiosque de João Figueira servindo algumas mesas e preparando cozidos na cozinha. Muitos até a chamavam de Bertoleza, nome esse que não gostava. Maneco era outro que também estava ali. Era o bêbado louco da ilha. Ganhava sempre uns trocados por olhar carros e pequenos furtos pelas praias. Era um boa praça. Gente da gema e sempre com um sorriso no rosto. Sorriso esse que faltava alguns dentes. E Alberto, seu amigo de longa data que o recebeu em sua casa de coração aberto.

Capítulo - 9 - No Mar / Saliva de Cobra

A noite escura como os umbrais impedia que Chico conseguisse ver ao certo para onde estavam indo. O coração aos saltos junto com aquele mesmo sentimento de medo, o surrava. O barco bambeava e o motor falhava e, com seu barulho ensurdecedor, atormentava os animais marinhos. Alberto estava nos braços de Jaira que o amparava mesmo estando também receosa por sua vida. Chico era o único que conhecia os mistérios do mar, além de Alberto. João Figueira apertava a vista tentando enxergar para onde estavam indo. Sentiam medo dos corais. Maneco resmungava um choro abafado. A lua por certo tentava guiar aquele caminho sobre as ondas. Mas o que podiam fazer? O sangue lavava os braços de Jaira junto com a água salgada que respingava.

"O que fazer? O que fazer?" – pensava Chico.

Ele fazia de tudo para se concentrar. A vida de todos dependia disso. Lutava contra seus próprios medos para que conseguisse ver uma solução. Seria difícil.

- Chico, cuidado! – gritou João Figueira.

Ele não percebeu que estavam se aproximando do mar aberto.

- Volte! Vire o barco! – gritavam.

- Não posso!

Chico sabia do perigo que corriam. Muitos barcos desapareciam e naufragavam por ali. Mas não podiam mais voltar.

- Vire o barco, Chico!

O medo dominava sua alma aflita. As mãos tremiam e não conseguia pensar nas consequências. Será que todos morreriam agora?

- Cuidado! – gritou João Figueira.

Chocaram contra uma pedra. O barco se destruiu quase que por completo. Alberto estava inconsciente e Jaira tentava acordá-lo.

- Acorde, homem!

Maneco gritava. Embora parecesse sempre alheio ao que acontecia ao seu redor, sabia que estavam em uma situação de perigo e que poderiam morrer. O medo estava estampado no rosto de todos que ali estavam.

Chico sentiu o impacto em seu ombro direito e o braço perdeu o movimento. Uma dor aguda o fez gritar e quase perder a consciência. O motor parou de funcionar. Havia engasgado. Ele podia ver o pânico nos olhos de seus amigos que eram iluminados pela lua. Havia sido um erro tentar fugir de barco.

- Chico, vamos afundar!

Ele mal conseguia pensar. Seus sentimentos estavam confusos. Juntou forças e o chamou:

- Marinheiro... marinheiro! Marinheiro!

Uma luz acendeu no horizonte por alguns instantes. Chico tentou ligar o motor mais uma vez. Nada. Tentou de novo. Nada.

- Vai, tente mais uma vez! – gritou Jaira.

Enfim, ele voltou a funcionar. Mesmo com a água quase tomando conta do barco, conseguiram sair e seguir a luz que iluminava o caminho.

- Vamos por esse caminho!

- Está louco!? Por acaso quer nos matar!?

- Já estamos mortos!

Chico então, foi em direção a luz. Sabia que ela seria o caminho que deveriam seguir.

- Acorde! Acorde! – gritava Jaira para Alberto.

João Figueira voltou a olhar para o horizonte. Não podia acreditar no que seus olhos estavam vendo.

- É a Ilha! Nós voltamos!

Capítulo - 10 - O despertar

Chovia muito. A lua era escondida pelas grossas nuvens negras que pairavam sobre o céu que também estava negro. O coração de Chico guardava péssimas lembranças daquela maldita casa e agora estava diante dela. E ela continuava com aquele aspecto que se misturava com a riqueza e o macabro com seus portões e muros enormes, janelas grandes e escondidas por cortinas escuras mas que permitiam ver as luzes de candelabros acesos e sombras que formavam e que sempre existiram por ali. Assim ele se via naquela casa: uma sombra. Nada podia explicar tamanha tristeza. Cães ferozes guardavam a casa e latiam ferozmente contra Chico. Também pudera! Lá estava ele maltrapilho, sujo e cheirando à cigarro. Se seres humanos se amedrontavam com sua aparência, o que dizer dos animais?

Enfim, tocou a campainha. Não demorou muito e um funcionário veio recebe-lo, o medindo de cima a baixo com olhos desconfiados.

- Pois não? O que deseja essa hora?

- Desejo entrar.

Ele riu ironicamente.

- Qual seria a graça?

- Vê se não amola, bêbado. Temos mais o que fazer.

- Sou Francisco e quero falar com Alexandre.

- Ele já está dormindo.

- Ele não dorme cedo.

- Isso pouco importa. Ele não recebe andarilhos.

- Pois não vou embora enquanto não falar com ele. Isso não é uma escolha sua.

- Quem me forçaria a abrir o portão?

- Eu não estou sozinho.

Mais uma vez, o empregado riu.

- Ah, sim? Pois não vejo mais ninguém com você. Por acaso está tão alto que mal consegue ver que está só?

- Abra o portão. Não me obrigue a fazer alguma coisa.

- Não seja metido!

Ao falar isso, sentiu uma lâmina em seu pescoço. O medo tomou conta de seu corpo e ao menos conseguia falar. Jaira o segurava pelas costas. Seus braços negros e fortes o dominaram. Maneco que também havia pulado o portão, se divertia com os cachorros correndo de um lado para o outro.

- Pois, abra o portão. – disse João Figueira que se encontrava ao lado de Chico. – Isso agora é uma ordem.

O empregado tremendo e temendo por sua vida, obedeceu. Chico não gostaria que fosse assim, mas não havia outro jeito. Havia desaprendido a tomar outras atitudes. Então, abriram o portão e entraram.

Caminharam em direção a porta Chico, Jaira e João Figueira. Ao abri-la, se depararam com o luxo e o terror. Algo de triste havia naquele lugar e todos sentiram o peso sobre os ombros. O empregado desvencilhando-se de Jaira gritou:

- Desgraçado! Nojento! Quem pensam que são!?

Correu para pegar o telefone que Chico fez questão de arremessar contra a parede. Ele assustou-se.

- Chame Alexandre.

- Ora, seus arruaceiros! O que querem!? É dinheiro!?

- Queremos falar com um dos donos da casa. Chame logo!

- Quem pensa que é para me dar ordens!?

- Mal chegou e já está fazendo suas extravagâncias, não é? – ouviram.

Capítulo 11 - O encontro na Casa Velha

Chovia muito. A lua era escondida pelas grossas nuvens negras que pairavam sobre o céu que também estava negro. O coração de Chico guardava péssimas lembranças daquela maldita casa e agora estava diante dela. E ela continuava com aquele aspecto que se misturava com a riqueza e o macabro com seus portões e muros enormes, janelas grandes e escondidas por cortinas escuras mas que permitiam ver as luzes de candelabros acesos e sombras que formavam e que sempre existiram por ali. Assim ele se via naquela casa: uma sombra. Nada podia explicar tamanha tristeza. Cães ferozes guardavam a casa e latiam ferozmente contra Chico. Também pudera! Lá estava ele maltrapilho, sujo e cheirando à cigarro. Se seres humanos se amedrontavam com sua aparência, o que dizer dos animais?

Enfim, tocou a campainha. Não demorou muito e um funcionário veio recebe-lo, o medindo de cima a baixo com olhos desconfiados.

- Pois não? O que deseja essa hora?

- Desejo entrar.

Ele riu ironicamente.

- Qual seria a graça?

- Vê se não amola, bêbado. Temos mais o que fazer.

- Sou Francisco e quero falar com Alexandre.

- Ele já está dormindo.

- Ele não dorme cedo.

- Isso pouco importa. Ele não recebe andarilhos.

- Pois não vou embora enquanto não falar com ele. Isso não é uma escolha sua.

- Quem me forçaria a abrir o portão?

- Eu não estou sozinho.

Mais uma vez, o empregado riu.

- Ah, sim? Pois não vejo mais ninguém com você. Por acaso está tão alto que mal consegue ver que está só?

- Abra o portão. Não me obrigue a fazer alguma coisa.

- Não seja metido!

Ao falar isso, sentiu uma lâmina em seu pescoço. O medo tomou conta de seu corpo e ao menos conseguia falar. Jaira o segurava pelas costas. Seus braços negros e fortes o dominaram. Maneco que também havia pulado o portão, se divertia com os cachorros correndo de um lado para o outro.

- Pois, abra o portão. – disse João Figueira que se encontrava ao lado de Chico. – Isso agora é uma ordem.

O empregado tremendo e temendo por sua vida, obedeceu. Chico não gostaria que fosse assim, mas não havia outro jeito. Havia desaprendido a tomar outras atitudes. Então, abriram o portão e entraram.

Caminharam em direção a porta Chico, Jaira e João Figueira. Ao abri-la, se depararam com o luxo e o terror. Algo de triste havia naquele lugar e todos sentiram o peso sobre os ombros. O empregado desvencilhando-se de Jaira gritou:

- Desgraçado! Nojento! Quem pensam que são!?

Correu para pegar o telefone que Chico fez questão de arremessar contra a parede. Ele assustou-se.

- Chame Alexandre.

- Ora, seus arruaceiros! O que querem!? É dinheiro!?

- Queremos falar com um dos donos da casa. Chame logo!

- Quem pensa que é para me dar ordens!?

- Mal chegou e já está fazendo suas extravagâncias, não é? – ouviram.

Capítulo - 12 - O Mar dos Mortos

A chuva havia parado e o céu estava coberto de um véu negro. Chico estava mais uma vez de frente à Praia de Santa Tereza. O mar estava calmo, entretanto, sua mente estava agitada e inundada de perguntas que não tinham respostas. Sentia pena de seu irmão, isso bem podia dizer. Mas no fundo, também sentia ódio e não podia negar. Quantas vezes ele o havia prejudicado com suas mentiras? Muitas. Porém, o que havia acontecido com ele? Nada. Enquanto Chico ainda estava sozinho, sem ter a certeza do amanhã, sem saber se teria o que comer ou onde dormir. Tinha seus amigos e isso o alegrava, mas sentia que ainda faltava algo. Seus sentimentos como sempre, estavam confusos.

Parou de frente o pequeno barco de Alberto. A broa vermelha, gasta e cheirando à maresia estava na beira da praia. Assim, como sempre havia feito, preferiu ignorar o que sentia e seguir. Tinha de continuar. Então, o colocou no mar mesmo com o coração aos saltos. Aquela sensação o consumia por dentro.

"Siga em frente! Siga em frente! Ogum não abandona ninguém!" – pensava.

Subiu e seguiu. Ao chegar em certo ponto, arremessou suas redes no mar. Tentava pegar toda sorte de peixes que podia conseguir.

Estava sem sorte mais uma vez. Já havia sido a terceira vez que arremessava suas redes e nada além de camarões conseguia levar para o barco. Havia desaprendido.

Pensava em Alberto. Seu amigo precisava dele naquele momento. Foi ele quem abriu as portas de sua casa para seu regresso, quem o chamava para tomar um trago, quem lhe cedia cigarros e quem estava sem forças por protege-lo de um golpe. No fundo, Chico se sentia o pior dos seres humanos. Não tinha nada, mas tinha tudo.

A lua brilhava no céu e começou a chover mais uma vez. A madrugada estava chegando e trazia sua neblina. Uma luz iluminou os caminhos de Chico que segurava a vela mestra por conta dos fortes ventos que tentavam arremessa-lo para longe.

"Talvez tivesse sido melhor não ter voltado." – pensava. – "Todos estavam melhores sem que eu pudesse incomodar."

- Quando Iemanjá me levará para conhecer seu Reino submerso?

- Por acaso já está pensando em morrer? – ouviu.

Uma gargalhada ecoou. Chico olhou assustado para a proa. Sendo iluminado pela lua prateada mas quase irreconhecível pela neblina, podia ver o corpo de um homem.

- Quem é você? – perguntou. – Como entrou no barco?

- Já se esqueceu de mim?

- Marinheiro? É você, Marinheiro?

Ele se aproximava de Chico, mancando. Ele podia sentir o cheiro de cachaça e cigarro que vinha dele, entretanto, estava diferente. Seu rosto não era mais um esqueleto branco e seco. Não que não estivesse magro. Mas agora tinha olhos esbugalhados, embora fundos, assim como as laterais de seu rosto e lábios. Sua pele parecia de um morto meio acinzentada.

- O que houve com você?

- Achou que seria uma caveira pra sempre!?

Gargalhou.

- O que está fazendo aqui?

- Você está na minha casa e me pergunta isso?

- O mar é morada de todos.

- E a madrugada no mar é dos mortos.

- Peço licença para pegar uns peixes.

- Do jeito que está?

- E como estou?

- Com pena de si mesmo.

- Não sabe o que me vai na alma!

- Vai tentar fugir disso também?

- Eu não fugi de nada!

- Tem certeza!?

Gargalhou.

- O que veio fazer aqui, afinal? Não preciso de alguém como você.

- Já te disse que não sou seu amigo.

- Não preciso da sua ajuda.

- Então, foi por isso que me chamou antes?

- Estava desesperado.

- Como agora. Não sabe o que fazer. Quer seguir em frente mas algo te faz olhar para o passado. E sabe por que?

- Isso pouco me interessa agora.

- Porque precisa encarar seus medos. Só assim vai ter o que quer.

O coração de Chico estava aos saltos e suas mãos suavam. Não podia negar. Toda aquela sensação estava dominando o seu interior e não conseguia fazer nada para mudar.

- Quer minha ajuda?

- Por acaso, conseguirei sem ela?

- Talvez. Mas acho que não quer arriscar.

- Por que?

O marinheiro tirou de um dos bolsos de sua capa preta um dente que parecia de tubarão.

- Porque quando se tem pouco quando não se tinha nada, se tem tudo.

Gargalhou.

- O que é isso?

- Um conhecido deixou na minha garrafa.

- Um dente de tubarão? Isso vai me ajudar?

- Como disse: se tem um pouco, tem tudo.

Chico sentiu seu corpo arrepiar quando o Marinheiro encostou o dente de tubarão de frente o seu coração.

- Sentiu a energia?

- Sim.

Sem falar mais nada, o Marinheiro enfiou o dente de tubarão dentro do peito de Chico que urrou de dor enquanto ele gargalhava pela madrugada. Sangue escorria por todo o seu corpo. Ajoelhou aos pés do Marinheiro que derramava sua cachaça sobre sua cabeça.

- Vai, olha pra cima! Olha quem está te ajudando! Aquele em quem você não confia! Olha quem está te ajudando! Aquele que muitos o chamam de demônio.

Gargalhava tanto que acabou por deixar Chico completamente tonto. Não conseguia enxergar quase nada e tinha a sensação de que a qualquer momento poderia desmaiar. O Marinheiro calmamente voltou para a proa e se jogou no mar. Parecia se desfazer pelas ondas como uma folha de papel. A neblina tomou conta de todo o mar. Nada podia se ver e somente se ouvia uma sirene ao longe e se sentia as ondas baterem contra o barco de Alberto. Chico acabou por perder os sentidos.

Não demorou muito, acabou por despertar sem saber se tudo não havia passado de um sonho. Olhou para o sangue já seco sobre seu corpo e as dúvidas desapareceram. Tentou procurar algum sinal do Marinheiro mas ele já não estava mais por ali.

Chico sentia frio e estava tremendo. Realmente a madrugada no mar era dos mortos. Entretanto, algo estava diferente. Já não sentia mais aquele medo dominar o seu coração e suas mãos estavam molhadas mas de água e não suor. Seria isso o que o Marinheiro havia tirado de seu peito? Entretanto, como sempre havia feito, não questionou e se pôs a arremessar mais uma vez as redes no Reino de Iemanjá. 

Capítulo 13 - Um novo despertar

Alberto estava na casa de Dona Gertrudes e se recuperava aos poucos. Já conseguia arriscar alguns passos sem tropeçar nos próprios pés. Realmente, o veneno desaparecia do seu corpo. A manhã havia chegado depois de uma noite fria com neblina forte. As folhas das plantas que contornavam a casa guardavam o orvalho e perfumavam o ambiente.

Dona Gertrudes logo cedo já preparava o café. Tratou de assar também um bolo de milho para que pudessem comer.

Alberto olhava para a rua. Nenhum de seus amigos estavam por lá. João Figueira, Jaira, Maneco e nem mesmo Chico. Onde será que estavam todos? Dona Gertrudes havia dito a ele que haviam voltado para suas vidas e compromissos. Ele, no fundo, sabia que tinham muito o que fazer, mas e Chico? Ele não tinha muito o que fazer. Queria ajudar seu amigo e muito. Mas como? E se ele um dia descobrisse toda a verdade? Como reagiria? Será que tentaria fugir como da última vez?

Não demorou muito e o portão da casa de Dona Gertrudes se abriu e lá estava ele carregando uma rede de pesca com dois peixe-espadas. Alberto assustou-se quando o viu e foi logo em sua direção.

- Chico! Onde esteve esse tempo todo?

- Estive no mar.

- Isso na sua roupa é sangue. O que aconteceu?

- Isso foi só um acidente com o anzol. – mentiu.

- E esses peixes? Você quem os tirou do mar?

- Disse que conseguiria.

- E não sentiu nada?

- Estou muito bem.

Alberto suspirou aliviado.

- Iemanjá o aceitou de volta!

Dona Gertrudes apareceu na porta da cozinha e sorriu ao vê-lo.

- Menino! Que bom vê-lo!

Chico foi ao seu encontro.

- Tudo deu certo.

- Que alegria.

- Veja! – disse mostrando a rede de pesca. – Ainda trouxe algo para comermos. Sabe preparar?

- Isso é pergunta que se faz?

Riram.

- E como foi naquela casa? – perguntou.

- Não foi fácil. Muitas recordações. Mas nenhuma resposta.

- Por enquanto.

Alberto os olhava desconfiado. Parecia que sabiam de algo a mais e não queriam dizer a ele.

- Você disse que alguém iria ajuda-lo. – começou. – Quem o ajudou?

- Um amigo.

- Que amigo? O único que você conhece que vive do mar, sou eu.

- Quantas perguntas! O importante é que agora tudo vai mudar.

- Mas eu quero saber!

- Eu também quero saber de muita coisa e ninguém me fala.

Alberto engoliu seco.

- Mas lembro que havia falado sobre marginais.

- Ah, são ladrões de bêbados. Nada que não conheçamos.

Ele tentava buscar algo em sua memória. Mas nada conseguia lembrar. Parecia que o mar havia tirado parte de suas recordações. Será que era assim que Chico se sentia?

- Bom, hoje teremos a mesa cheia! – disse Dona Gertrudes. – A fartura veio nos visitar.

- Deveríamos chamar todos para virem comer. O que acha?

- João Figueira e Jaira vão estar no quiosque.

- Então faremos um no almoço e outro para a janta.

- Tenho umas garrafas de cachaça envelhecida também.

- Então, hoje será uma grande noite!

Mesmo ainda sem ter a certeza de tudo que acontecia, Alberto resolveu aceitar. Ver Chico sorrindo e feliz era tudo o que mais desejava. Engraçado como se lembrava de quando ainda eram jovens e se divertiam por toda ilha, bebendo, farreando e pescando. Aquele era o seu Chico, quem ele queria ver de volta e quem aos poucos retornava para Ilhabela. Chico o viu com o olhar admirado.

- O que foi? Aconteceu algo?

Sorrindo, respondeu.

- Sim. Muito mais do que os olhos podem ver.

Chico então se aproximou de Alberto e o envolveu em um abraço apertado. Mais uma vez estavam juntos com o coração.

- Hoje estou feliz. – disse no pé do ouvido.

- Eu também.

- Agora podemos ser como éramos antigamente.

Capítulo 14 - Devaneios sobre o Mar

Algum tempo passou. Os dias de sol estavam por desaparecer de toda ilha. O outono que quase não podia sentir, acabava por dar espaço ao inverno que apesar de não tão rigoroso, para aquele povo tão acostumado com o calor do sol, era terrivelmente nocivo. Algumas arvores quase sem suas folhas verdes, muitos barcos atracados na beira do mar, a neblina que cobria os parques e reservas e o vento cortante assobiava entre todos. Entretanto, isso não seria motivo para que Chico e Alberto deixassem de jogar suas redes no mar. Haviam até restaurado o pequeno barco para que pudesse aguentar, já que a quantidade de pescadores diminuía cada dia mais. Era impressionante. Uma tradição de muitos anos parecia que se despedia de seus moradores, mas uma pequena e boa parte ainda lutava para que ela fosse mantida e que pudessem aproveitar a vida da forma que escolheram: sendo marinheiros de alma. A água esverdeada do mar comum nos dias de frio, também estava gelada. Quando alguns respingos caíam sobre o convés, faziam com que Chico e Alberto sentissem a espinha, sem contar os dentes que batiam quase que sem parar. Sorte que sempre levavam uma garrafa de cachaça para esquentar o corpo.

A pesca daquele dia havia sido boa. Uma grande quantidade de peixes haviam conseguido mesmo com a mudança de tempo. Aquela mercadoria seria vendida para os quiosques e botequins também.

- Parece que a moeda não rende mais como antigamente. – resmungou Chico.

- É a concorrência, meu velho. – respondeu Alberto por entre a fumaça de seu cigarro.

- Qual?

- A modernidade. Vivemos de teimosos, pois quem compra nossos peixes também pode pescar. E entram no mar sem cerimônia! Onde já se viu?

- Além dos pescadores daqui?

- Claro!

- E vendem mais em conta, imagino.

- Já era o esperado. Não comercializam só aqui mas pelo país todo. Aí se quisermos ter o mínimo possível, temos que quase morrer de fome. E ainda tem gente que defende essa coisa. Tiram de muitos para dar para poucos. Esse é o mal do século.

- Quem dera fosse somente esse.

- Quem dera. – disse jogando a ponta do cigarro no convés e soltando a fumaça pelo nariz.

- E nunca vão saber o que é estar de verdade no mar. Isso é para poucos.

- Os poucos que ainda restam e lutam. Estou também é cansado desses que batem a minha porta para falar de demônios e anjos.

- Creio que esses são os mais indesejáveis.

- Reclamam que muitos de nós não os respeitamos. Mas na hora de nos atirar no esquecimento e condenar nossos costumes, acreditam que estão do lado certo. Uma completa loucura. Sem contar na sede que possuem pelo dinheiro. Esse Deus eu ainda não conheço.

Sim, o Deus do dinheiro. Essa também era uma divindade que Chico não conhecia. Muitos ali na ilha tentavam fazer o seu pequeno cercado com moedas douradas ou enterrar seus "tesouros" nas areias da praia. Era difícil essa compreensão para ambos. Para Chico um pouco mais difícil do que Alberto já que esse quase nada tinha. E o que na verdade ele queria? O mar e Catarina.

Catarina? Por alguns momentos conseguia se esquecer quase que por completo dela. Embora desejasse encontrá-la de todas as maneiras, percebia que cada dia mais que se passava, a dificuldade aumentava. Parecia que uma força não queria aquele reencontro ou se seria possível já que ninguém sabia ao menos por onde começar. Mas em seu coração, ainda mantinha acesa uma pequena chama de esperança em poder vê-la pelo menos mais uma vez. Sempre carregava aquela pedra esverdeada com linha de pesca em seu pescoço. Aquilo o aproximava e não o deixava esquecer de seus propósitos embora a vida tranquila o despertasse interesse. Sabia que ainda teria que se encontrar outras vezes com Alexandre. Também sabia que muitos ainda o olhavam com maldade. Mas isso não o impediria de sentir a vida preenchendo todo o seu ser.

Capítulo 15 - HISTÓRIAS ENTRELAÇADAS.

A lua beijava as águas do mar e a espuma das ondas beijavam a praia. A chuva havia passado e estava um bom clima para beber. A noite que deveria ser fria, acabou por se transformar em uma noite com um céu estrelado e pouco vento.

O quiosque de João Figueira estava relativamente cheio. Era simples, mas muito bem arrumado e decorado. Ficava em uma esquina da avenida que levava para o pequeno centro. Tinha cores neutras, mas a praia logo ali, dava a sensação de paz. Alguns pedidos eram feitos e o português os anotava em sua mente, sempre sorrindo e forçando uma alegria que não condizia com seu coração. Jaira estava servindo algumas mesas com a elegância de sempre. Trazia em sua mão uma bandeja de aço e servia alguns marinheiros, beberrões e mendigos. Não era alta temporada, mas sempre havia trabalho. Em uma distração, pôde olhar o mar. Quantas lembranças trazia! Quantas emoções e feridas em sua alma! Lembrou-se de quando ainda era jovem.

Jaira morava com sua família em Ilhabela. Não tinham muito dinheiro, mas tinham sempre uns aos outros, mesmo que por vezes faltasse o que comer dentro de casa. Jaira amava suas irmãs mais novas. Quando sua mãe saía para trabalhar, era ele quem cuidava delas e fazia isso com todo amor que existia dentro de seu coração. Seu pai era um pouco afastado de todos. Sempre muito quieto, preso em seus pensamentos e incompreensão. Ele sempre havia tentado ganhar a vida honestamente, mas ninguém lhe dava confiança. Ninguém queria um preto de confiança. Isso o machucava muito e, então, fechou-se para o mundo. Trabalhava muito para tentar levar o sustento para sua família, mas passava boa parte dos dias bêbado e distante. Sentia-se inferior e muitos queriam que ele realmente se sentisse assim.

Sua mãe já era uma pessoa mais guerreira e humana. Fazia de tudo para seus pequenos e sempre contava com a ajuda de Jaira para que conseguisse trabalhar. Ele era quem fazia de tudo. Cozinhava, limpava a casa, levava suas irmãs para a escola e lavava as roupas.

Jaira, entretanto, tinha seus segredos também. Mas prometia que não contaria nada para ninguém. Não havia tempo para suas besteiras. E ninguém realmente se importava com elas.

Quando chegou na adolescência, a situação começou a piorar. Seu pai que era distante, começou a perceber mudanças no comportamento de Jaira. Sem contar que também ouvia comentários sobre ele que sempre tentavam diminuir seu caráter. Povo hipócrita, de mente limitada, não queriam que as pessoas pudessem ser felizes.

Foi quando começaram as agressões. Ninguém mais se importava com sua dedicação pela família, pelo seu amor com suas irmãs. Só desejavam incessantemente que Jaira desaparecesse. Em uma dessas noites de briga, seu braço acabou quebrado. Muito chorava, muita dor sentia. Mas ninguém realmente se importava. Até sua mãe que sempre fora tão próxima e amiga, fez questão de se afastar e isso, doeu muito no coração de Jaira. Ele já não podia ficar perto de suas irmãs, já não podia usar o mesmo copo para beber água, já não podia olhar diretamente nos olhos delas. Ele era enfim, uma aberração. Aberração essa que as pessoas de coração impuro conseguiam ver. Pessoas essas que não conseguiam enxergar o tamanho do amor que sentia pela sua família e sua dedicação com os seus. Somente conseguiam ver um monstro, um espírito maligno enviado do inferno para que pudesse atormentá-los.

Seu pai começou a beber cada dia mais. Já não voltava mais para a casa. Passava semanas longe sem ao menos dar notícias de onde estava ou com quem estava. Muitos diziam que viam Serafim na beira do Cais com prostitutas e outros beberrões.

Nessa situação, Jaira teve que começar a trabalhar também, pois caso contrário, suas irmãs e sua mãe não teriam muito o que comer. Fazia faxina, diárias e olhava carros de turistas. Sempre que podia, levava algum doce para suas pequenas. Um dia quando chegava de noite em sua casa depois de um dia de muito trabalho, percebeu que a porta estava trancada. Então, assim percebeu: eles o haviam colocado para fora. Bateu na porta, chamou pela mãe, pelas irmãs mas ninguém saiu. Tinha lágrimas nos olhos e não conseguia entender o que fazia de tão errado. Tinha um amor tão puro em seu coração, mas poucos conseguiam enxergar. Pelo buraco de uma janela, pôde ver os olhos de suas irmãs que também olhavam. Estavam felizes em se ver e isso podiam sentir. Pelo pequeno buraco, Jaira colocou os pedaços de doce e deram para que elas pudessem saborear. Isso de certa forma os unia. Decidiu que sempre faria isso. Não as deixaria jamais, mesmo que seus pais não compreendessem seu coração.

Capítulo 16 O MUNDO PERFEITO

O dia começava a nascer. Aquele céu negro começava a se desmanchar e, com serenidade, ia aquele branco acinzentado, tomando conta de toda a ilha. Chico havia dormido mal. Também pudera! Embora tivesse feito enorme esforço, ouvia nitidamente o que se passava dentro do quarto de Alberto. Por algumas vezes, parecia vê-los em sua frente. Imagem essa que fazia questão de esquecer. Sentia também o fígado apertado. O chá de boldo que havia tomado na noite anterior havia ajudado, mas não realizaria os milagres esperados. Ele bocejou e se espreguiçou. Suas costas também estavam doloridas e sua cabeça tinha um fio que teimava em latejar.

Foi para a cozinha preparar um café forte. Acendeu o fogo e colocou a água para ferver. Quis tentar fumar um cigarro, mas, a cada trago que dava, sentia o estômago embrulhar. Então o apagou na metade, deixando no cinzeiro improvisado para depois fumar.

A porta do quarto de Alberto ainda estava fechada. Pelo jeito, haviam pegado no sono, pois, não se ouvia mais nenhum barulho, nem mesmo a velha cama de madeira que estalava em cada movimento.

Chico bebeu o café sem adoçar, fazendo uma cara feia. Não que não a tivesse. Por muito tempo, havia deixado de cuidar de sua aparência, deixando a barba e o cabelo quase que cobrirem seu rosto por completo.

Foi ao banheiro para tomar uma ducha forte e fria. Sabia que isso o ajudaria a despertar melhor. Ao ver seu reflexo no espelho do lavatório, sentiu-se mal. Quem ele era? Viu que estava muito magro e sua aparência lhe dava um aspecto sujo também. Mas o que, afinal, isso importava? Desde quando era vaidoso?

"Talvez, aparar um pouco essa barba, faça uma diferença."

Então, pegou uma navalha velha de Alberto e pôs-se a desenhar seu rosto. Pelo jeito, sabia que demoraria, depois de tanto tempo se escondendo atrás dela.

Ao terminar, entrou na ducha e via pelos caindo e se acumulando em seu corpo. Tratou de espumar o sabão e tirá-los. Realmente, a ducha havia feito bem para ele. Sentia-se melhor.

Ao sair do banheiro, viu a porta do quarto de Alberto levemente encostada. Pelo jeito, ele já havia acordado. Foi para a cozinha e o encontrou bebendo o café preto em um copo e fumando o resto do cigarro que havia deixado para depois. Ao ver Chico, Alberto abriu bem os olhos e estava assustado. Chegou a pensar que era outra pessoa que estava em sua casa. Segundos depois, viu quem era e sorriu.

- Olha só. Parece outra pessoa.

- Do que está falando? Sou eu!

- Sei que é você, demônio. Digo pela cara!

- Ah!

- Parece que junto com ela, tirou alguns anos também.

Riram.

Chico olhou para a janela e viu que alguns raios de sol tentavam cortar aquele céu esbranquiçado e cinzento. Alberto apagou o cigarro e então falou:

- Ressaca. Hoje não vamos pescar. Só quem quer morrer.

- Percebi pelo tempo.

- Hoje é dia de encher a cara!

Chico sentiu o estômago embrulhar só de ouvir aquelas palavras. Não colocaria uma gota de cachaça em sua boca. Pelo menos não durante o dia.

- Sobre ontem.

- O quê?

- O que foi aquilo?

Alberto riu.

- Ficou com inveja?

- Não pense nisso!

Capítulo 17 O SEGREDO

Passou-se uma semana e a chuva havia diminuído um pouco embora o frio ainda se fizesse presente por toda ilha. Haviam combinado de ir à casa de Dona Gertrudes à noite para que pudessem comer e beber em companhia da velha. João Figueira ficou de levar petiscos e cachaça, Jaira de levar uma bebida doce e cigarros e Chico e Alberto levariam um peixe e farinha para pirão.

- Está animado para ir? – perguntou Alberto.

- Estou sim. – respondeu Chico.

- Seu semblante aparenta preocupação.

- Um pouco. Desde que conversamos e falamos sobre esses crentes e Santiago, algo me tem deixado inquieto.

- E o que é?

- Esse pensamento ignorante e cheio de preconceitos. Algo parece que está se perdendo.

- Ainda pensando sobre isso? Deixe esse povo de lado! São loucos mesmo!

- Mas temo pela segurança dos diferentes.

- Os diferentes têm força e resistem. Estão resistindo até esse presidente comandado pelo próprio diabo.

- Está falando daquele que ensinou crianças a fazer armas com os dedos?

- E que esses crentes lambem. Parecem cadelas no cio.

- Isso me preocupa. O que pode acontecer com a gente?

- Vamos esquecer isso por um tempo, meu irmão. Caso contrário, não vamos aproveitar nada da vida. Deixe esses falsos profetas de lado.

- Você está certo. Devemos pensar no nosso caminho. Pelo menos, por agora.

- Ainda não temos o peixe para levarmos. Vamos à Santa Teresa?

- Sairmos para pescar um peixe só? Brincadeira.

- O que sugere?

Chico pegou uma vara de pescar e a rede, colocou em suas costas e disse:

- Pode ir para lá arrumando algumas coisas e ajudando Jaira. Eu levo o peixe depois.

Alberto riu.

- Esse pescador!

Já estava para escurecer e o vento soprava um ar gelado. Mesmo assim, com um pouco de roupa, Chico foi em direção ao Píer do Engenho D'água. Mesmo tendo conversado com Alberto sobre aquele assunto e resolvido deixa-lo de lado, esses questionamentos volta e meia, retornavam em sua mente. Não podia acreditar que um povo pudesse ir contra seus semelhantes. Pensava que realmente o homem era o predador do próprio homem. Isso justificava muito dos seus questionamentos e o deixava triste. Ao olhar as ondas que se formavam e quebravam no Engenho D'água, percebeu que assim como seu coração, o mar parecia confuso e revoltoso. Mesmo assim, sabia que ele poderia lhe dar um ou dois peixes que fosse.

Não demorou muito, Chico havia pegado um peixe espada que era o suficiente para alimentar seus amigos naquela noite. Amigos. Pelo menos, ele tinha quem gostasse dele. Quantos não viviam amizades simplesmente baseadas somente em interesses e falta de compreensão? Tomou um gole de cachaça que havia levado e engoliu essa verdade.

- Olha quem está aqui. O marinheiro! – ouviu uma voz conhecida.

Ao se virar, deparou-se com Rosa, a mulher com quem Alberto havia brigado. Ela parecia risonha e mais esquisita que o normal.

- Olá, aceita um gole?

- Claro. – disse ela, sentando-se ao seu lado.

- Hoje não quis sair de barco?

- Queria somente um peixe. Desperdício gastar o barco para pescar somente um.

- Você nem precisava pescar. Tem dinheiro, Chico.

Sentiu um arrepio percorrer pela espinha.

- Não, não tenho. Vivo da pesca.

- Você não é o Chico, irmão do Alexandre?

- Como sabe de tudo isso?

- Essa história já correu toda ilha. Então, voltou para viver desse jeito?

- Eu voltei por outro motivo.

Rosa riu. Chico pensou em se levantar e ir embora. Ao olhá-la, viu que ela lhe mostrava parte de seus seios e sentiu desejo.

- O que será que você quer agora?

Ele a tocou. Não podia negar que sentia desejo ao vê-la.

- Por que não me beija?

Chico então, a beijou. Fazia tempo que não sentia nada assim. Estava se entregando aquele sentimento. Mas, pela confusão de sua mente, logo parou. Tudo havia acontecido de forma rápida. Rosa, inquieta, perguntou:

- Ora, o que é isso?

- Não posso.

- E por quê?

- Meu coração pertence a alguém.

- Não pedi seu coração. Pedi seu corpo.

- Meu corpo, minha alma e meu coração ainda são de Catarina.

- Ah, ainda pensa nela? Por quê?

- Sinto que ainda vou encontrá-la.

Rosa riu desesperadamente.

- Qual motivo dessa risada?

- Ora, significa que até você morrer não vai ter mais ninguém?

Chico sentiu um arrepio correr pela sua espinha.

- O que você quer dizer com isso?

- Por acaso você não sabe de nada?

Chico se colocou em pé e a levantou pelo pescoço.

- O que você sabe?

- Eu sei de tudo. E por isso achei estranho ainda estar na casa de Alberto. – disse rindo.

- O que você quer dizer com isso? O que Alberto tem a ver com isso?

- Porque eu vi! Eu fui a única que viu Catarina pela última vez!

Seria aquilo verdade? Seria por isso que Alberto não queria que se encontrassem de novo com aquela mulher?

- Como última vez? Alberto não sabe de Catarina!

- Por que você acha que ninguém te diz nada sobre ela?

- Porque ninguém sabe!

- Errado! – disse se desvencilhando das mãos de Chico. – Porque todos tem um segredo!

- E que segredo é esse?

- Que Catarina está morta e quem a matou foi Alberto.

Capítulo 18

Na casa de Dona Gertrudes, a conversa corria animada. Estavam todos do lado de fora, no quintal. Riam felizes e se divertiam com as bebidas e porções que João Figueira e Jaira haviam levado. A velha fumava seu costumeiro cigarro de palha, soltando a fumaça no ar enquanto Alberto separava as cartas do baralho para que pudessem jogar.

- Onde será que está o Chico com esse peixe?

Alberto bufou.

- E olha que eu esqueci de trazer a farinha para preparar o pirão.

- Não se preocupe que temos aqui em casa.

Ele sorriu enquanto tomava um gole de sua cachaça de canela.

- Pode deixar que depois trago para não fazer falta.

- Não falta fartura nessa mesa.

Estavam animados. A lua iluminava a noite que ventava um ar gelado e tinha poucas estrelas no céu, mas a luz amarelada da extensão puxada da cozinha, iluminava o ambiente amistoso que ali estava.

- Estou começando a ficar preocupada. – disse Jaira. – Chico não costuma demorar tanto assim para pegar um peixe. Será que aconteceu alguma coisa?

- Conversa! – respondeu João Figueira. – Deve estar trazendo uma cachaça para cá também.

- Pode ser. Mas sinto que tem algo no ar.

- Você e essas manias. Até assustar todo mundo.

Jaira o olhou com desdém e saiu bebendo seu vinho.

- Mas ela está certa. – disse Dona Gertrudes. – Tem algo de diferente.

Logo, ouviram o barulho do portão se abrindo e todos viraram.

- Olha lá. – disse Alberto indo em direção a Chico, sorrindo. – Tanto mistério e preocupação por nada! Meu irmão, você acredita que esqueci de trazer a farinha!?

Chico deu um soco no nariz de Alberto sem responde-lo. Ele caiu para trás com o nariz empapado em sangue vivo.

- Meu Deus! – gritou Jaira. – O que é isso!?

Chico tinha os olhos perdidos e vazios. Seu corpo tremia inteiro e suava muito. Alberto levantou-se, foi em sua direção e devolveu-lhe o soco na cara. Chico foi dois passos para trás como se nada tivesse sentido.

- O que foi isso? Está maluco!?

- Chico! O que está acontecendo!?

Ele nada ouviu e devolveu mais socos em Alberto que foi acudido por João Figueira. Jaira jogou seu vinho e tentou segurá-lo.

- O que é isso, homem de Deus!? É Alberto! Somos nós, seus amigos!

Chico gritava enlouquecido. Maneco estava em desespero e Dona Gertrudes havia levado suas mãos ao peito, assustada com tudo o que estava acontecendo.

- Amigos!? Que tipo de amigos!? – gritou, desvencilhando-se de Jaira e tomando distância de todos.

- O que quer dizer com isso!?

- Que todos aqui mentiram para mim! Todos aqui sabiam da verdade!

- Ora, essa! – gritou Alberto. – Por acaso, está bêbado!? Que verdade é essa!?

- Que Catarina está morta!

Todos silenciaram, exceto Maneco que fazia uma espécie de grunhido, assustado. Estavam atônitos e não sabiam o que dizer. Jaira tinha os olhos avermelhados.

- Chico – começou Alberto. – não é isso o que você está pensando.

- E o que é, então!? Que não foi você quem a matou também!?

- Calma, Chico. – disse João Figueira. – Vamos conversar.

- O que tem para conversar!? Que me enganaram esse tempo todo!? Que não me diziam a verdade!? Que me fizeram acreditar que eu poderia encontrá-la!?

- Não é verdade! – gritou Jaira. – Nós tentamos tirar essa ideia da sua cabeça o tempo todo!

- Como tiveram coragem de fazer isso comigo!? Por isso não me deixavam procurar! Por isso que todas as vezes que alguém aparecia que pudesse revelar esse segredo de vocês, vocês ficavam nervosos!

- Acalme-se, homem. – dizia João Figueira.

- Como pede para me acalmar!? Rosa me contou tudo!

- Rosa?

- É, Alberto! Aquela que você bateu no Píer do Engenho d'Água! Por isso não queria falar com ela! Por isso ficou bravo quando ela soube quem eu era!

Chico tremia por inteiro.

- Vocês são uns traidores! Mentirosos! É isso que vocês são! Até quando iam me esconder a verdade!? Até quando!?

- Chico, não fique assim. – começou Dona Gertrudes. – Alberto não teve culpa nenhuma.

- Alberto! Você era meu amigo! Como pôde tirar a vida da pessoa que eu mais amava!?

- Eu não o fiz, homem! Eu juro que não o fiz!

- De que vale seu juramento agora!?

- Nós até estávamos...

- Não quero ouvir mais nada de vocês! Eu jamais imaginei que me fariam passar como o idiota que fui! Perguntava para todos aqui se tinham alguma informação, alguma ideia, mantendo acesa a esperança de um dia rever Catarina! E o que vocês faziam!? Mentiam! Riam pelas minhas costas! Que o Diabo leve suas almas para o inferno!

Dizendo isso, saiu da casa de Dona Gertrudes, batendo o portão com ódio. Jaira saiu correndo em sua direção com lágrimas nos olhos, assim como João Figueira. Chico desapareceu sendo engolido pela noite escura. Alberto olhou Dona Gertrudes nos olhos e chorando perguntou:

- Oh, minha velha! O que foi que eu fiz!? Por que esse passado veio nos atormentar!?

Ela o abraçou, pois, não sabia o que dizer.

Capítulo 19 PARA ONDE O MAR NOS LEVARÁ?

Mais uma vez, a madrugada tomava conta de toda a ilha. Um silêncio fantasmagórico em que somente podia-se ouvir o barulho das ondas que quebravam na praia. A neblina escondia do mar, os seus mistérios. Deitado sob as areias de uma praia qualquer, um corpo quase que sem vida, respirava com dificuldade. Algo parecia ter sido roubado daquele homem. Não tinha intenção de se levantar de maneira nenhuma. Aliás, mesmo que quisessem, suas pernas não tinham condições. Tinha um sono perturbado. Mãos invisíveis o seguravam pelo pescoço e sentiam seu corpo pesado. Estava sufocante estar ali. Tinha a vista anuviada e não conseguia definir o que o iluminava, mas sabia que algo estava clareando aquela escuridão.Começou a ouvir vozes distantes de pessoas conhecidas que praguejavam, riam e se desesperavam.

- Ainda com pena de si mesmo? – ouvia de uma voz espectral.

Nada conseguiu responder. Tentava enxergar quem estava ali com ele.

- Ainda com pena de si mesmo? – repete uma voz.

Via o rosto de sua mãe e de seu pai. Via o rosto de Alexandre. Sua mente voltou ao passado e se lembrava dos tormentos que havia passado. Não consegui se desvencilhar.

- Porque parte do seu passado é parte do que você é.

- Porque parte do seu passado é o que você foi.

- Mas o passado não pode arrastar suas correntes no futuro.

Sabia que trazia lembranças vivas do passado. Havia sido pelo passado que estava ali. Pelo passado, quis voltar e retomar sua vida do ponto em que havia parado. E o que seria o futuro se não fosse o seu passado?

As vozes conhecidas aumentavam. Antes se sentiu acolhido perto dessas vozes, agora, se sentiu amedrontado. Parecia que seus pilares haviam sido derrubados e sua sustentação não havia suportado, desabando sobre sua cabeça.

- Que egoísmo pensar que eles segurariam esses pilares para sempre.

- O que será de mim sem esses pilares? Embora sejam mentiras.

- A mentira adotada a verdade. Mas ela é ilusão.

- Uma ilusão.

- Viver é se iludir.

- Não quero mais mentiras.

- Viver só com verdades é a verdadeira mentira.

Os pensamentos não conseguiram sair de sua mente. Eles que o toleraram desarrazoado. Se culpava por não ter dito a verdade, assim como se culpava por vezes não ter mentido. Estava mergulhado em suas tristezas.

- Quando será que Iemanjá me levará para conhecer o seu Reino submerso?

- Ainda com pena de si mesmo? – gritou a voz espectral.

Chico assustou-se e abriu bem os olhos, podendo enxergar com nitidez. Percebeu que o que o iluminava era um lampião. Ouviu então aquela gargalhada.

- Marinheiro?

Ele estava curvado iluminando seu rosto que agora também estava coberto com uma barba branca. Tinha os olhos saltados e os dentes amarelados. Com o canto da boca, tinha um filtro de cigarro vermelho.

- Ainda com pena de si mesmo?

- O que foi tudo isso?

- Nada. É mais fácil pensar assim, não é?

- O que quer dizer com isso?

- Já fugiu mais de uma vez agora. Por que não fugir da realidade de novo, não é?