Exu Maré - O Guardião das Mares A evolução espiritual de um guardião assombrado pelo seu passado e em constante desenvolvimento, na busca pela redenção através da caridade, dos seus resgates cármicos e do auxilio dos mestres da espiritualidade e dos Orixás.
01 - Vida
Quando acordei, imaginei estar no poço mais fundo e existente. A dor me consumia, dos meus olhos brotavam lágrimas involuntárias, eu havia perdido tudo: a vida, meu barco, meus companheiros, meu resto de dignidade e a pouca fé que acreditava ter.
Não haveria de existir Deus naquela escuridão, nem em lugar algum. Coisa da mente de quem precisa de uma muleta para viver, ou alguém para pedir quando não tiver capacidade de realizar algo... algumas vezes também para descontar sua raiva e jogar a culpa de seus erros. "Deus não quis assim".
Eu estava só, não havia nem sequer em quem descontar o meu ódio, não havia voz para gritar, não havia luz para enxergar. Estava destinado a apodrecer naquele chão úmido, fétido e cheio de nada além do meu peso morto, a carne cheia de feridas e os meus lábios inchados, como se abelhas me picassem a cada segundo.
Tentei dormir, tentei gritar, tentei pensar... nada consegui, se não, apenas chorar.
Quantas vezes pensamos em suicídio durante a vida? Que bobagem.
Se soubessem que a morte nada mais é do que o início do início eterno do sofrimento, não pensariam tamanha besteira. Era melhor viver na dor carnal, na dor do coração, do que viver naquela desgraça de nada. Eu estava inundado de sentimentos negativos, nada poderia me salvar.
Em determinado momento lembrei-me da beladona que tive em meus braços. Não sei como pude recordar o perfume doce dos seus cabelos, que invadiam minhas narinas através da brisa do mar. Seu nome era Ana, como ela era linda, talvez a única mulher pela qual tenha tido algum sentimento verdadeiro. Não, não era justo pensar nela nesse momento, eu havia deixado Ana sozinha, grávida, sem sequer um pouso tranquilo. Se ela soubesse que lhe deixei por vaidade, pela ganância de conquistar mais poder, dinheiro e fama. Ela não merecia que eu pensasse nela nesse momento.
Sem conseguir deixar que minha mente vagasse para outros pensamentos, resolvi pedir perdão a ela. Eu chorei ainda mais, nos meus lábios o gosto imaginário de sangue, não seria possível ter sangue no lado espiritual.
--Emanuel, eu te perdoo. - ela aproximou-se de mim, sua mão tocou meus olhos, enxugando-os. O seu perfume invadiu minhas narinas, agora mais real do que antes em meu pensamento. Eu consegui fitar seu rosto alvo, sua bela face, seus olhos de uma cor azul intensa. Eles brilhavam e ela sorria, mas era estranho alguém sorrir naquele inferno escuro.
Ana levou os lábios a minha testa e a beijou. Senti incontrolavelmente um sono acolhedor. Adormeci.
02 - Encontro
Abri os olhos e senti dificuldade em acostumar-me à claridade, pisquei algumas vezes antes de conseguir mantê-los abertos.
O lugar não se parecia com nada que eu tenha visto até então, o teto era abobadado e a construção não poderia ser definida entre antiga ou moderna.
Não demorou muito para que uma moça de aparência jovem viesse até mim. Ela trajava vestes brancas, seus cabelos estavam presos em um coque.
Recostei-me à cabeceira metálica da cama em que estava deitado e aguardei sua aproximação. Ela aproximou-se calmamente, sorrindo de forma simpática.
--Que bom que acordou, meu irmão. Como está se sentindo?
--Eu não sei. Como deveria me sentir?
--Você terá bastante tempo para pensar sobre isso. Minha missão aqui é fazer com que você melhore e vejo que está muito melhor agora, heim?
Olhei para minhas mãos, não haviam mais feridas nelas, meus lábios já não estavam mais inchados. Eu estava nu, coberto por um fino lençol rosa-claro. Senti-me envergonhado.
--Eu estou bem, obrigado. Onde está Ana?
Ela olhou curiosa para mim.
--Ana? Me perdoe, mas não conheço nenhuma Ana. Quem o trouxe foi a guardiã dos mares, a senhora das Sete Ondas.
--Eu não entendo, vi a face de Ana antes de desmaiar. Preciso falar com ela, devo minha gratidão a ela!
--Entendo. Eu vou chama-la então. Enquanto isso, beba este chá aqui.
Ela mostrou-me a mesinha ao lado da maca, nela havia uma caneca branca e uma chaleira de porcelana. O chá exalava um suave e doce aroma de flores.
--Isso vai ajudar a curar as feridas do seu corpo espiritual.
--Obrigado, eu tomarei. Como devo chama-la senhorita?
--Me chamam Lira. Eu sou a cuidadora deste hospital. Bom, preciso avisar sua amiga e ver os outros irmãos. Descanse mais um pouco, está bem?
Fiz um sinal positivo com a cabeça e me servi do chá. Era realmente muito suave, parecia água com açúcar, mas sua cor era levemente rosada.
Após terminar de beber, deitei novamente e meus olhos foram fechando, o efeito era muito bom. Senti os locais onde ainda haviam feridas esquentando, o sono veio muito rápido. Então eu dormi como há muito tempo não fazia.
Despertei e abri os olhos, a luz, desta vez, não me incomodou tanto. Ela estava lá. Ana tinha os cabelos compridos, lisos e negros que estavam presos por um adorno feito de uma rosa de cor azul e conchas de vários tamanhos. Trajava um lindo vestido azul escuro, destoava um pouco daquele lugar devido ao decote.
--Ana, que bom vê-la! Eu quero agradecer por ter me tirado daquele lugar horrível.
--Meu irmão Emanuel, primeiramente, não há pelo que agradecer. Todos, em um momento ou outro, passam pelo Umbral, é necessário para sua evolução.
--Ana, foi a sua lembrança que me tirou daquele estado de ódio. Eu preciso lhe pedir perdão, você foi a única mulher que realmente amei. Você esperava um filho meu e eu lhe deixei sozinha. Você não tinha nada, nem casa, nem dinheiro, mal tinha condições de se sustentar. Me perdoe Ana...por favor, me perdoe!
--Eu já lhe perdoei Emanuel, quando ouvi seus pensamentos enquanto você estava no umbral. Eu fui ao seu encontro porque também precisava me encontrar com você e acabar com o seu sofrimento desse passado. Deus quis assim!
--Obrigado Ana, agora posso sentir a presença de Deus em mim.
--A verdadeira presença de Deus em nós é exatamente isso. Quando perdoamos e somos perdoados verdadeiramente. Quando sentimos nosso coração mais limpo. Quando nos lembramos de nosso passado sem sentirmos culpa. Quando ajudamos alguém, de alguma forma, para sua evolução. Entende?
--Sim. Ana, por que você está diferente? Apesar de você estar parecida como lhe conheci em vida, seus olhos brilham um azul cristalino. Suas roupas estão diferentes do que costumava usar, e agora consegui enxergar este colar grande que carrega em seu pescoço. O que ele significa?
--Eu agora sou uma guardiã do polo negativo da emanação da mãe geradora da vida, nas águas salgadas, Iemanjá. No polo negativo, espíritos como eu trabalham no resgate de irmãos nos locais mais prejudicados por seres trevosos. Nós também travamos guerras contra legiões empenhadas na destruição da humanidade, seja individual ou coletiva. Este colar chama-se guia, é parte de nós... Uma arma e um escudo.
--Começo a entender, Guardiã das Sete Ondas. Eu gostaria de ajudar de alguma forma. Fiz tantas pessoas sofrerem, matei tantas pessoas pela ganância e pelo poder. Preciso pedir perdão a todas elas.
--Você pode fazer isso, meu irmão. Basta querer. Eu posso lhe ajudar a encontrar esses espíritos.
--Eu aceito a sua ajuda mais uma vez, Guardiã das Sete Ondas.
Ela sorriu e nos abraçamos, naquele momento senti uma energia nos envolvendo, emanava do coração de Ana uma luz azul clara que nos cobria. Não aguentei e meus olhos logo estavam derramando lágrimas, desta vez eram lágrimas de felicidade, de amor, elas limpavam minha alma. Senti que naquele momento estava renascendo e firmei comigo mesmo minha nova missão.
Quando olhei para Ana, ela também chorava e sorria.
--Somos irmãos na emanação da mãe da vida, Emanuel. Iemanjá esta lhe abençoando, a partir de agora você será meu par vibratório. É uma nova vida a partir de agora. Se você quiser, pode adotar um novo nome.
--Eu lhe sou muito grato e também a mãe geradora da vida, Iemanjá, por ter me aceito como seu filho. Mas, não sei como poderia me chamar...
--Então, eu lhe chamarei de Guardião das Sete Ondas. Assim seremos um, eu e você.
-Espero ser digno de carregar o nome da sua falange, minha irmã das Sete Ondas.
Nos abraçamos mais uma vez. Eu havia renascido pela emanação de mãe Iemanjá e estava ansioso para conhecer e buscar minha evolução naquele plano ao lado de Ana.
03 - Busca
Depois de conversarmos muito sobre a função que a Guardiã das Sete Ondas realizava, fomos para o local onde encontraríamos o responsável por nos guiar e entregar nossas missões. Para chegar lá, tivemos que passar por um campo extenso, até chegar a um reino que se assemelhava muito a uma praia. Porém, a mesma tinha uma passarela comprida e larga, que parecia ser feita de pedra. Esta travessa terminava em uma imensa oca em meio ao mar, a oca tinha o teto arredondado e só não parecia com as ocas de indígenas pelo seu tamanho muito maior.
Caminhamos tranquilamente até a oca, não havia movimento de outros espíritos atravessando a passarela, nem a praia, mas, dentro, notava-se a presença de alguns poucos. Antes de entrarmos pela abertura em forma de arco da oca, Ana parou em minha frente e segurou minhas mãos.
--Emanuel, este é o núcleo comandado por um dos nossos irmãos de grande luz, a cabocla Sete Estrelas do Mar. Ela nos dirá por onde começar seu desenvolvimento. Venha, vamos conhecê-la agora.
Apenas confirmei com a cabeça e entramos no local. Corri os olhos pela grande sala em que adentramos, era tão grande quanto imaginei quando a vi do lado de fora, porém, em seu interior ela não possuía nada de rústico ou primitivo, seu piso lembrava granito azul-claro, não saberia dizer exatamente quantos espíritos trabalhavam naquele núcleo, mas poderia dizer, com certeza, que mais de vinte espíritos de luz se encontravam no local. Aguardamos na entrada até que um rapaz de traços e vestes indígenas, com uma pena azul presa a uma faixa na cabeça, nos recepcionasse.
--Sejam Bem Vindos, irmãos guardiões. - O índio nos cumprimentou amigavelmente.
--Salve, irmão Sete Estrelas! Eu trouxe o Guardião Sete Ondas para conhecer a irmã Cabocla Sete Estrelas do Mar. Ele está iniciando seu desenvolvimento para auxiliar-nos em nossa missão de levar a luz para nossos irmãos necessitados. - falou Ana ao caboclo.
O caboclo fitou-me e aproximou-se para um abraço. Eu o abracei.
--Fico feliz por encontrarmos mais um espírito disposto a trabalhar nesta seara do bem. - disse o caboclo.
--Eu é que devo agradecer a oportunidade e ajuda que estão me dando. Não fosse a ajuda da Guardiã das Sete Ondas, eu ainda estaria sofrendo em minha ignorância, sozinho, sem conhecer o perdão.
--Isso já passou, meu irmão. Venham. Vou leva-los até a Cabocla Sete Estrelas do Mar.
Agradeci. Era engraçado como todos, no plano espiritual, usavam nomes iguais: Guardiã Sete Ondas e Guardião Sete Ondas; Cabocla Sete Estrelas e Caboclo Sete Estrelas. Eu ainda não sabia o motivo real, mas ao que me parecia, utilizar um nome específico como este, fazia com que determinado espírito pertencesse àquela família, ou grupo, unidos por características energéticas, filosóficas, e outros detalhes.
Caminhamos em meio aquele grande salão, os espíritos indígenas movimentavam-se de um lado a outro em seus afazeres. Pelo jeito, nossa presença era considerada normal. Nos aproximamos de uma senhora, que como o Caboclo Sete Estrelas, também trajava vestes indígenas, tinha cabelos brancos, mas não eram totalmente grisalhos. Ela usava uma faixa decorada com mais penas azuis do que os outros, todas as penas eram levemente esbranquiçadas nas pontas. No pescoço, ela carregava uma guia, mas, diferente da guia que Ana usava, esta não tinha contas negras, era feita de sementes, conchas e pérolas. Aquela cabocla irradiava uma luz azulada, era parecida com a luz que Ana havia irradiado quando entramos na mesma frequência em nosso abraço.
--Seja bem vindo, Guardião Sete Ondas! - a cabocla Sete Estrelas sorriu, estendendo as mãos para mim.
--Obrigado, Cabocla Sete Estrelas do Mar! - Segurei as mãos dela e senti a bondade e a evolução espiritual daquele ser.
--É bom vê-la também, Guardiã das Sete Ondas. - A cabocla aproximou-se de Ana, abraçando-a carinhosamente.
--Fico feliz por estar novamente em sua casa, minha mãe! - as duas pareciam bastante próximas.
--Que Deus esteja com vocês. Eu estava aguardando sua chegada. Guardião Sete Ondas, é verdade que agora você e a Guardiã Sete Ondas estão trabalhando juntos? - a cabocla perguntou olhando-nos.
--Sim, é verdade Cabocla Sete Estrelas do Mar. Mas, não me sinto preparado para tal missão ainda. Tenho muitos assuntos para resolver com meu passado, começando pelas pessoas as quais fiz sofrer em vida. Eu não acho que possa ser envolvido pela luz da Senhora do Mar, Iemanjá, enquanto não estiver bem comigo mesmo. - enquanto falava, lembrei novamente das mulheres que usei como simples objetos em vida. O pensamento fez com que me emocionasse e comecei a chorar, virei o rosto tentando esconder minha tristeza e vergonha.
--Então, você deve começar visitando um velho companheiro que conhece dos mistérios do amor. - a cabocla se aproximou e tocou meu rosto, enxugando minhas lágrimas.
--E de quem minha mãe estaria falando? - agora havia entendido o motivo de Ana ter chamado a Cabocla Sete Estrelas do Mar de mãe. Era isso que sentíamos ao nos aproximar mais dela, era este sentimento que ela nos passava, como se fosse uma verdadeira mãe que vai acudir o filho quando este se machuca ou se magoa.
--O Guardião Veludo. Um guardião que trabalha para a Senhora do Amor, Oxum. Tenho certeza que ele poderá lhe ajudar a resgatar esses espíritos dos quais você se lembrou a pouco.
--Aonde eu devo encontrar o Guardião Veludo, minha mãe?
--Ele protege um dos reinos da água doce, o portal da cachoeira. Procure pela Senhora que rege o amor e você o encontrará, pois, para habitar o coração de Oxum é necessário encontrar o amor dentro de si mesmo.
--Agradeço sua ajuda, minha mãe. Eu o procurarei. - após ouvir as palavras daquela Mãe Cabocla de Iemanjá, me senti mais aliviado e esperançoso.
Antes de nos despedirmos, a Cabocla Sete Estrelas do Mar nos abraçou demoradamente.
--Vão em paz meus filhos e que Iemanjá esteja com vocês em sua missão. - terminou a frase com um beijo em nossas testas e então partimos em viagem para o Portal da Cachoeira, onde encontraríamos o Guardião Veludo.
Ao terminarmos de atravessar a passarela de pedra que levava a oca, olhei novamente para trás e sorri, nunca havia imaginado que o amor tivesse tantas formas. A imagem da Cabocla Sete Estrelas do Mar eu levaria comigo para sempre. Futuramente nos encontraríamos novamente, mas com certeza aquele fora o momento mais emocionante que tive ao lado de minha grande mãe.
04 - Renascimento
Voltamos para o reino de Ana. O lugar era enorme, sua entrada era formada por um portal de água corrente dentro do mar, seu caminho era de areia e dividia o oceano ao meio. Na parte de cima do portal havia uma placa de metal prateado com a escrita "Reino das Sete Ondas". Conforme entrávamos na cidadela marinha, podíamos ver várias casas azuis lado a lado, de cada lado da ruela de areia, mais a frente havia uma construção redonda de cor negra com linhas feitas de pedras azuis como se fossem ondas rodeando toda a construção.
--Guardiã Sete Ondas, como é possível uma cidade como esta dentro do mar? - eu perguntei a Ana, boquiaberto com a visão ao meu redor.
--Este é um dos reinos Sete Ondas. Aqui trabalham guardiões e guardiãs de nossa falange, todos aqui são chamados de Sete Ondas.
--Mas, então, como é possível vocês se reconhecerem se todos utilizam o mesmo nome? -parei de caminhar e cruzei os braços, não porque não concordava com aquilo, mas porque não conseguia achar lógica em não ser diferenciado de outro qualquer que ali residia.
--Guardião Sete Ondas, somos como uma grande família unida pelo mesmo objetivo. Quando fazemos parte de uma falange de guardiões não importa quem fomos ou o que fizemos em vida, somos todos iguais em espírito e estamos trabalhando desta forma para que nossas ações sejam reconhecidas e não nossas almas. A alma é como um espelho de cada vida que tivemos e nosso espírito é uma vida, emanação única de Deus, nossa evolução não se da pelo que fomos e sim pelo que fazemos. Todos nós conseguimos nos reconhecer por nossas auras, roupagem espiritual e cargos aqui dentro.
--Então, se existem cargos também existem diferenciações.
--Entenda que o cargo existe apenas para uma organização e não para demonstração de poder e superioridade. Isso você entenderá conforme sua vivência no astral, meu irmão. Agora vamos até a central, vou lhe mostrar uma coisa.
Caminhamos até a estrutura redonda no centro da cidade. Adentramos por uma grande porta dupla, o local era ainda mais belo do que eu imaginava. No chão havia um círculo desenhado que brilhava suavemente, dentro do circulo, um desenho formava um tridente curvo que se dividia em mais dois tridentes e na sua base três linhas curvas.
--O que significa este desenho ali no centro? - senti vontade de me aproximar, mas, me mantive ao lado de Ana. Não sabia o que poderia ou não fazer ali dentro ainda.
--Este o ponto de energia Sete Ondas. Cada um de nós possui uma assinatura, que é nosso ponto energético. Conforme suas ações, você recebe formas que utiliza no seu ponto e dele emana uma energia própria sua. É como uma assinatura, pode ser um ponto básico como este que protege o local ou pode ser um ponto mais complexo, se você conquistar mais experiência e aprendizado. Nós trabalhamos sobre a regência de Iemanjá, por isso, nossa assinatura possui este desenho como base.
--Entendo, isso é muito interessante. Nunca imaginei que o astral pudesse ser tão completo desta forma.
--Estamos constantemente aprendendo, irmão Sete Ondas. Bom, eu preciso avisar que irei lhe acompanhar em viagem. Aguarde aqui enquanto falo com a Guardiã chefe, logo estarei de volta. - Ana sorriu e seguiu em direção a um círculo azul que brilhava intensamente, em poucos segundos ela foi transportada dali para algum outro lugar.
Quando saímos da base central, Ana me levou até sua casa. Era uma das casas azuis em uma das muitas travessas ao redor da base. A casa era simples, possuía uma sala, cozinha, quarto, lembrava muito uma casa material bem decorada. Passamos o restante do dia conversando sobre o funcionamento do plano astral. Ana me indicou um quarto para descansar e então me vi sozinho desde que havia acordado como espírito. Em uma das paredes havia um grande espelho que ia do teto ao chão, fui até ele e me visualizei, eu estava mal cuidado, o cabelo desgrenhado, uma barba comprida, pela minha imagem certamente me dariam muito mais idade do que eu sentia ter ou que eu tinha antes de desencarnar. Fechei os olhos e lembrei da minha forma jovem, como eu era quando tinha muitas possibilidades na vida, quando eu ainda não tinha acabado com a vida de tantas pessoas. Senti minha energia me envolvendo como uma luz forte, mas, que não era visível. Abri os olhos novamente e minha forma era exatamente como havia lembrado, não devia ter mais do que trinta anos, minha pele estava bonita novamente, a barba perfeitamente aparada e respeitosa, meu olhos continuavam azuis, mas, brilhavam como os olhos de alguém feliz e esperançoso, agora vestia uma camisa preta combinando com a calça e trajava um quepe, também preto, com uma âncora pequena de metal adornando-o. Estava renovado, me sentia pronto para iniciar minha jornada naquele plano.
05 - Perdão
Já fazia algum tempo que trabalhava naquela casa de fé. Na semana passada havíamos feito a guarda da casa para que os pais velhos pudessem realizar os trabalhos tranquilamente. Nossa missão consistia em rondar o local e não deixar que magos negros e espíritos de má fé se aproximassem ou intervissem. Toda semana um grupo diferente atuava dando consultas aos necessitados, fazendo a desobsessão de irmãos e cortando a atuação de magias negras.
Hoje era um dia em que nós, guardiões e guardiãs, ficávamos responsáveis pela condução do trabalho, mas, além disso, era um dia especial, pois, era o dia em que novos médiuns se apresentavam ao caboclo chefe. Não haviam muitas pessoas novas no centro, dois jovens e uma senhora vestiam suas faixas coloridas determinadas anteriormente pelo sacerdote dirigente. A menina vestia uma faixa laranja que a caracterizava como filha de Iansã, a senhora vestia uma faixa vermelha que a caracterizava como filha de Ogum e o rapaz vestia uma faixa azul que o caracterizava como filho de Iemanjá.
--Parece que hoje teremos muito trabalho, Sete Saias. - falou a Guardiã Maria Molambo, com uma expressão animada.
--Eu espero que sim, afinal, estamos aqui para isso. Você reparou nos novos médiuns da casa? Sempre acontece da mesma forma, eles entram de forma tímida, sem conhecer nada desta fé e depois tornam-se grandes trabalhadores da seara espiritual. É gratificante observar este desenvolvimento, não é? Quantos médiuns já passaram por esta casa e hoje mantém suas casas de fé? E quantos, também, permanecem firmes nesta casa, trabalhando incansavelmente? - eu disse a guardiã Maria Molambo, cruzando os braços.
--Cada um se desenvolve da forma como nosso Pai determinou. E todos eles contribuem para disseminar o amor, a fé e a caridade. Nós também nos beneficiamos desta vontade de ferro deles, pois, assim podemos evoluir um pouquinho mais e aprender com cada trabalho que nos é incumbido espiritualmente. - respondeu a guardiã ao meu lado.
--Olhe para aquele rapaz, ele não sabe por onde começar. - descruzei os braços e olhei para a Guardiã Maria Molambo. Eu devia ajuda-lo de alguma forma. O trabalho ainda não havia começado, por isso, resolvi intui-lo a fazer algo que sempre seria útil para ajudar na gira, caminhei até ele e coloquei a mão sobre seu ombro, ele começou a caminhar até a frente do congá, eu o acompanhei, ele olhou para a imagem de Jesus Cristo que estava posta no local mais alto do altar e fechou os olhos, cruzou as mãos abaixo do queixo e iniciou uma oração silenciosa, carinhosa e cheia de poder. Voltei para o lado da Guardiã Maria Molambo e sorri.
--Ele será um bom filho desta casa. - eu disse mais para mim mesma do que para a Guardiã.
O sacerdote fez a defumação na corrente, na assistência e na casa. Os médiuns foram entrando aos poucos no terreiro e logo formavam um semi círculo. Os adejás tocaram e todos começaram a cantar, iniciando os trabalhos daquela noite. "Refletiu a luz divina, com todo seu esplendor. Vem do reino de Oxalá, onde há paz e amor. Luz que refletiu na terra, luz que refletiu no mar, luz que veio de Aruanda para tudo iluminar..."
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--Eu não sei por onde começar, Senhor Guardião Veludo. - eu abaixei a cabeça e coloquei as mãos sobre os joelhos, não queria que ele percebesse meu nervosismo.
--Pode começar se referindo a mim como irmão, Guardião Sete Ondas, pois, é o que somos. - o Guardião Veludo retirou sua cartola e pousou-a sobre a pequena mesa no centro, entre mim e ele.
--Perdoe-me, ainda não estou acostumado com esta forma de tratamento do mundo astral.
--Não há o que perdoar. Para você, há algum problema em se referir a mim como irmão? - Veludo curvou a cabeça, como se tentasse ler meus pensamentos, e parecia estar conseguindo.
06 - Saber
Nossa viagem havia iniciado a algumas horas, Veludo havia sugerido para que fossemos a pé, sem a utilização de portais ou meios de locomoção. Para mim, não havia problema algum, eu queria conhece-lo melhor, queria entende-lo e absorver mais de sua sabedoria, estas horas, dias e talvez meses de caminhada me ajudariam a refletir sobre meu passado. Eu queria me distanciar da dor que sentia cada vez que relembrava o que havia feito na minha última encarnação, como eu poderia ser um Exu Guardião se não conseguia nem ajudar a mim mesmo com meus carmas. Estava decidido, eu seria alguém melhor, um espírito da Lei, queria levar amor ao coração das pessoas, talvez ajudar outros espíritos a passar pelo mesmo que eu estava passando, concertando meu passado. Veludo era bastante simpático ao falar comigo, mas mantinha sempre sua educação, elegância e seriedade, eu tinha a impressão que ele estava sempre agindo como um psicólogo, mas, diferente de um psicólogo, Veludo intervia quando achava necessário. Neste momento caminhávamos por uma estrada dentro da floresta, o caminho era de grama rala, misturada a terra úmida, ao nosso redor haviam grandes árvores de vários tipos, plantas que eu nunca havia visto em vida e volta e meia encontrávamos animais selvagens passeando em meio a floresta, eles não nos atacavam, apenas continuavam seu caminho ignorando-nos. Fazia algum tempo que estávamos calados, arrisquei um inicio de conversa.
--Mestre Veludo, porque te chamam com este nome?
--Eu sou um dos representantes do Orixá Oxum, meu irmão. Este Orixá é a representação maior do amor, da candura, da beleza, da intuição, entre outras qualidades. – ele disse de forma calma e paciente, como sempre falava.
--Eu não entendo, o que isto tem a ver com o seu nome, mestre?
--Você já ouviu alguém dizer "Fulano é um veludo no falar" ? – Veludo olhou para mim e sorriu.
--Sim eu já ouvi. Então, seu nome seria uma menção a qualidade do Orixá Oxum?
--Pode se dizer que sim. Mas isso depende de cada Guardião Veludo. A forma de falar com alguém influência em como ela entenderá o que você está dizendo. Eu posso falar algo de uma forma tranquila, ou posso falar a mesma coisa de forma agressiva. Entenda que em nosso trabalho é necessário muito cuidado com suas palavras, os espíritos que atendemos geralmente estão sem esperança, desequilibrados e até cercados de ódio, cegos por seus pensamentos egoístas e mesquinhos, outros ainda, estão doentes, sentem-se inúteis, acham que suas existências não podem trazer nada de positivo. Por isso, faz-se necessário a veludez no falar, entende?
--Sim, agora percebo o tamanho da importância da missão de ser um guardião. Obrigado por me esclarecer sobre isso, mestre Veludo.
Voltamos a nos concentrar no caminho que percorríamos, embora estivéssemos caminhando cerca de duas horas seguidas, não me sentia cansado. Enquanto caminhávamos, mestre Veludo me ensinou sobre o plano espiritual, sobre pontos energéticos, sobre pares vibratórios e também sobre os Orixás. Enfim, chegamos ao fim daquela estrada em meio a floresta, naquele ponto a grama começava a se tornar mais seca, o caminho era dividido em dois em forma de Y. O caminho da esquerda era bastante irregular, possui muitas pedras, troncos secos caídos que atrapalhavam a travessia. O caminho da direita era bonito, tinha flores plantadas nas laterais, os cenários eram bem diferentes, quanto o da esquerda parecia levar a um terro seco de solo quebrado, com cactos e aves carniceiras, o lado direito levava a um cenário de campos verdes, com montes no horizonte.
Veludo olhou para mim arqueando a sobrancelha esquerda e questionou-me.
--Para qual caminho devemos seguir?
--Para mim, parece obvio seguir pelo caminho da direita, é mais bonito e de fácil travessia.
--Concordo. Mas não é o que estamos procurando. Estamos seguindo em direção ao seu passado, não é? O caminho da esquerda me parece mais condizente com o local onde precisamos chegar. As vezes precisamos enfrentar nosso caminho e não simplesmente seguir pelo caminho mais fácil, ele pode ser mais bonito, mas o que você aprenderia se tivesse apenas boas experiências?
Capítulo 7
—Mestre Veludo, esse cheiro é horrível. Estou ficando enjoado, acho que não vou aguentar muito tempo... — parei o cavalo enquanto falava com o mestre, desci e me encostei a uma árvore, de olhos fechado e inclinado, pronto para vomitar. Veludo parou também e desceu do cavalo e se aproximou, não aguentei e comecei a jorrar o que eu achava que era vomito, ao menos, a sensação era esta, a de estar vomitando, mas, na realidade, de dentro de mim saia uma fumaça roxa densa.
—Estamos perto, se você está tendo esta reação é porque podemos ter encontrado o laboratório de algum espírito com o qual você teve contato, é claro, não com um bom propósito. — Veludo cruzou os braços e observou ao redor, enquanto isso, eu vomitava mais e mais daquela fumaça roxa, de certa forma, tirar aquilo de mim deixava-me aliviado, por algum motivo. Quanto tive forças para parar de vomitar, me levantei e voltei ao cavalo.
—Não, Guardião Sete Ondas. Agora vamos seguir a pé, pelo menos até encontrar o que precisamos por aqui. — Veludo segurou-me.
—Tudo bem, mestre Veludo. — Afirmei com a cabeça, retirei um cantil que possuía na bolsa e tomei um gole de água pura.
—Vocês ficam aqui, por enquanto, meus amigos. Voltaremos em breve para busca-los. — beijei a crina dos cavalos e parti com mestre Veludo na busca pelo local que ele tanto falava.
A mata foi se fechando mais e quase não conseguimos passar em meio a ela, mestre Veludo conseguiu abrir caminho com seu punhal de prata, mesmo assim, era difícil o acesso. Passamos por um rio de lodo e chegamos até a entrada de uma caverna, havia uma grande pedra que não permitia o acesso a mesma. Com o trabalho em conjunto, conseguimos retira-la e então entrar pela caverna escura. Caminhamos mais algum tempo, se abaixando para não batermos a cabeça ou então desviando de empecilhos que tentavam bloquear o caminho, não demorou muito para a largura da caverna ficar maior e então conseguirmos caminhar normalmente, logo, pedras brilhantes começaram a iluminar e pudemos chegar onde queríamos, ao final do caminho havia uma porta de madeira. Ficamos algum tempo tentando escutar alguma coisa, mas nada conseguimos, além de ruídos.
—Acho que devemos arromba-la, mestre.
—Não há outro jeito. — mestre Veludo se preparou para forçar a porta, mas, antes que pudesse faze-lo, alguém abriu a porta.
Um espírito com a aparência egípcia, sem cabelos ou barba, trajava um colete preto e calças soltas, seus olhos amarelados e felinos eram horripilantes, sua maquiagem típica egípcia antiga nos dizia estarmos em frente a um espírito muito antigo, suas unhas eram afiadas e seus dentes também.
—Exu Veludo, a que devo a honra da sua visita? — ele falou apenas olhando para o mestre, ignorando-me.
—Eu o conheço, por acaso? — Veludo respondeu-o mantendo sua serenidade.
—Não, você não em conhece. Mas eu conheço este ai. — Ele apontou-me com sua mão asquerosa e sua unha curva.
—Desculpe, mas, eu também não o conheço. — respondi.
—É muito fácil se lembrar apenas quando deseja algo, ahm? Veio buscar mais algum veneno? Quem deseja tirar do seu caminho? Alguma peste? Alguma pedra? Ou algum irmão? — suas palavras venenosas entravam em minhas artérias e corroíam-me.
—Acaso não se lembra de nosso pacto? Fiz um ótimo proveito deste seu irmão, ele me serve muito bem, aqui. — um espírito franzino, quase cadavérico, apareceu no fundo da sala em que o espírito trevoso encontrava-se, ainda distante de nós.
—Meu irmão, ele está aqui...porque? — senti uma raiva crescendo em meu peito, meu irmão havia se tornado escravo naquele ser repugnante.
—Achou que eu daria o veneno que você precisava de graça? Nada é de graça. Era o nosso trato, ele saía do seu caminho e eu o teria como meu servo para sempre. Mas, eu não tenho muito tempo para ficar relembrando cada um dos pactos que fazem comigo, por isso, se não quiser nenhum veneno é melhor se retirarem.
Naquele momento eu sabia exatamente o porque de estar ali.
—Eu vim resgatar meu irmão, não sairei daqui sem ele. — tomei a frente de meu mestre e encarei o maldito nos olhos.
—É uma pena, ele não está a venda. — o feiticeiro das trevas começou a fechar a porta, mas, coloquei meu braço no vão, antes que ele pudesse fecha-la completamente e forcei novamente sua abertura.
—É uma pena que sua audição seja tão comprometida pelas mentiras que você prega. Eu disse que não vou embora sem ele. — terminei de abri-la com toda minha força e parti para cima do feiticeiro, agarrando-o pelo pescoço e forçando-o contra a parede á esquerda da porta.
—Guardião Sete Ondas! Não viemos aqui para que você se vingue deste feiticeiro, ele já tem seu futuro traçado, viemos para buscar seu irmão. — Veludo criou uma esfera de energia ao redor do feiticeiro, afastando-me dele e impedindo que o mesmo pudesse fazer algo contra nós. Fechei minha mão, segurando toda a raiva que pesava em minha mente e soquei a porta.
—Eu...eu não quero que ele possa fazer mais pactos como este. Eu me arrependo tanto, queria destruí-lo aqui e agora.
—Essa não é a sua função, nem a de ninguém. Somente o criador e ele mesmo podem fazer isso, mas ele já fez, como eu disse, ele já forjou seu destino aos poucos, com cada pacto que fez, com cada espírito que escravizou e com cada um que ele enganou. — Veludo segurou meu punho e aos poucos fui me acalmando, respirei fundo e fui até meu irmão.
—Samuel, sou eu, Emanuel, teu irmão. - tentei conversar com ele, ainda sem proximidade.
—Vim tira-lo daqui. Você precisa vir comigo...
—Porque você fez isso comigo, Emanuel? — sua voz era fraca e quase engasgava naquela aparência medíocre em que se encontrava.
—Eu não sei. Eu estava fora de mim, obcecado pela ganância, pelo poder, pelo dinheiro. Sentimos tanto a sua falta, eu senti sua falta. Eu perdi meu irmão, meu melhor amigo, aquele que corria comigo pela fazenda do pai, aquele que me ensinava a cuidar dos negócios, aquele que me dava o ombro para chorar toda vez que eu machucava meu coração...Meu Deus, como eu me arrependo a cada segundo do que fiz. Samuel, me perdoa? Por favor, me perdoa, meu irmão. — Não tentei e nem quis me controlar, comecei a chorar.
—Olha o que eu virei, olha o que seu veneno fez comigo, olha onde eu vim parar. — ele se aproximou e ficou apenas me observando, com sua expressão de incógnita.
—Não me restou nada, nem herança, nem poder, nem minha dignidade. Se você não quiser me ver nunca mais, eu aceitarei. Só preciso recupera-lo e preciso do seu perdão para viver e buscar minha fé, cumprir minha missão, ajudar outros, que assim como eu, fizeram escolhas erradas em vida. — eu implorava a ele.
—Te restou, Emanuel. Te restou tua família. Ainda que você tenha feito isso comigo, ainda que eu tenha passado momentos dos quais nunca esquecerei neste lugar, eu lhe perdoo, meu irmão. — ele se aproximou, com dificuldade, e me abraçou. Um abraço dolorido, um abraço de esperança, que eu ansiava a muito tempo.
Naquele momento, uma aura azul nos envolveu, a mesma aura que eu havia sentido ao abraçar Ana. Era a força de mãe Iemanjá unindo-nos. Olhei para meu mestre e pela primeira vez o vi emocionado. O feiticeiro se debatia e nos amaldiçoava de dentro da esfera energética.
—Isso não vai ficar assim, seu idiota. Eu não ficarei preso nesta esfera para sempre e assim que eu sair, vou atrás de você e de cada espírito que viveu ao seu lado, vou destruir todos vocês, um por um. — o feiticeiro arranhava a esfera com suas unhas.
—Eu espero que você venha até mim, feiticeiro. Mas, espero que você venha buscar sua redenção e eu lhe ajudarei. Fora isso, sua visita é desnecessária. — respondi a ele, ainda abraçado a meu irmão.
—Vamos, Guardião Sete Ondas. O Feiticeiro é quem dá sustentação energética a este local, com sua energia presa, logo este lugar irá desmoronar. — Veludo se aproximou de nós, ajoelhou-se e desenhou seu ponto de energia no chão, este começou a brilhar em dourado e dele abriu-se um portão para algum lugar fora dali. Ele pediu que entrássemos primeiro, depois ele também passou pelo portal. Só conseguimos escutar os berros do feiticeiro e então, não estávamos mais sentindo o cheiro de carniça e seus gritos.
Capitulo 8
A luz do dia lembrava uma manhã ensolarada na base Sete Ondas, para onde havíamos retornado depois do resgate do meu irmão. Embora eu tivesse muitas coisas a falar com meu irmão, muitos abraços a dar e muitas alegrias a compartilhar, Samuel não pode ficar muito tempo comigo, logo que chegamos ele foi levado ao Hospital mais próximo. Lá no hospital, os doutores poderiam cura-lo, liberta-lo das amarras energéticas que ainda estavam grudadas em seu corpo e também ensina-lo sobre sua vida, sobre a liberdade que tinha agora, era fato que depois de tanto tempo escravizado sua mente estivesse um pouco desalinhada com a realidade. Mas o importante era que agora ele estava sendo devidamente tratado e em breve eu poderia partilhar com ele a alegria de te-lo novamente em minha vida.
Meu mestre Veludo havia chegado e ido diretamente para uma capela que a base possuía, disse que precisava orar, que a oração era uma atividade que ele desempenhava constantemente e a viagem havia sido cansativa demais, por isso, agora ele tinha tempo e tranquilidade para realiza-la, não me importei, inclusive, guardei na memória a lição para começar a desempenha-la também, mais tarde.
Entrei em casa e vi que a Guardiã Sete Ondas encontrava-se na cozinha, que era conjunta com a sala e totalmente visível a quem entrasse, aquele era um modelo padrão de casas na base. Olhei para a guardiã e sorri, encostei de ombro no lado direito no arco da porta e cruzei os braços e pernas, me permiti admira-la por algum tempo, ela cantava lindamente, sua voz era firme, porém, doce. Enquanto ela cortava alimentos parecidos com os que usávamos em vida, como vegetais e legumes, me veio a memória uma cena nossa em vida, a primeira vez que nos vimos. Ana e eu nos conhecemos em um porto, ela trabalhava como faxineira de navios, eu havia acabado de atracar o navio no cais, ela veio até mim e ofereceu os serviços para deixar o navio mais limpo e lavar minhas roupas. Eu aceitei. Era impossível não aceitar, mesmo trabalhando em lugar como aquele, cheio de homens brutos, cheiro ruim, o exaustivo trabalho de faxinar aqueles barcos, e lá estava ela, sorrindo lindamente, seus cabelos negros e lisos amarrados a um rabo-de-cavalo, usava um vestido marrom, bastante simples. Naquele dia, antes de ela ir embora, eu a convidei para ficar no navio. Não fizemos nada além de conversar, tomar vinho e dar muitas risadas. Ana era um sol em meio aquela escuridão, eu me apaixonei por ela naquele mesmo dia.
Quando percebi que a guardiã olhou para trás, com aquele mesmo sorriso de tanto anos atrás, ainda em vida, minhas lembranças se apagaram e retirei meu quepe, curvei-me em respeito e sorri para ela também, levei o quepe ao peito e entrei na casa, caminhei diretamente para ela, como se tivéssemos combinado, ou como se devêssemos fazer aquilo, Sete Ondas abriu os braços e eu a abracei, abaixei a cabeça em seu ombro e respirei fundo, Sete Ondas correu as mãos carinhosamente em minhas costas, de um lado para o outro. Não precisávamos conversar, ficar ali, daquela forma, nos abraçando e nos amando de forma silenciosa, já bastava para eu ser feliz.
Quando finalmente conseguimos nos soltar, Sete Ondas volta a cozinhar e eu fico parado, agora com as mãos para trás do corpo.
—E então, como foi de viagem, Guardião Sete Ondas? – Ana falou, preocupada em demorar no corte dos alimentos.
—Foi incrível. O mestre Veludo é um exemplo para mim, eu o adoro. Nós encontramos a fazendo de Pai João da Mata, Mãe Maria Redonda e Maria do Laço, eles são espíritos de muita luz. Depois, encontramos a base do feiticeiro que aprisionou meu irmão...eu não sabia que estávamos indo até ele, mas Deus me levou até o lugar e eu pude reparar um erro, me libertar de um a parte do passado que me assombrava. Nós conseguimos traze-lo para cá, já foi encaminhado para o hospital. Eu queria tanto ficar ao0 lado dele neste momento.
Capitulo 9
Enquanto caminhava pelo corredor vazio daquele hospital espiritual, só pensava em uma pessoa, meu irmão. Como ele estaria? Ele estava com a aparência horrível quando o encontramos, magro, com os cabelos desgrenhados, os olhos fundos marcados pelo sofrimento e o cansaço de servir como um escravo espiritual desde o seu desencarne. Assim que o vi naquela gruta do mago negro, pensei que aquela situação havia sido causada por mim e ele havia pago o preço da minha ganância. Eu queria poder trocar de lugar com ele naquele momento, queria ter passado por tudo aquilo no lugar dele. Agora ele estava a salvo das garras do maldito espírito obsessor, eu havia pedido perdão e ele havia me perdoado, no entanto, eu devia fazer o melhor para ele agora.
Já faziam, em tempos da Terra, aproximadamente, 2 semanas que ele havia sido enviado para aquele hospital da colônia Sete Estrelas do Mar. Neste tempo, eu havia ficado no Reino Sete Ondas, junto a Ana, o mestre Veludo resolveu voltar para seu reino, já estava a um bom tempo fora de lá e sua companheira Maria Molambo necessitava de ajuda para o resgate de um grupo de espíritos que haviam desencarnado coletivamente.
A Guardiã Sete Ondas me acompanhava enquanto atravessávamos o hospital até chegar a uma porta dupla, onde nos indicaram estar meu irmão. Antes de entrar, Sete Ondas segurou minhas mãos e sorriu delicadamente.
—Está tudo bem. Você se redimiu com seu irmão, ele vai ficar feliz em vê-lo, eu sei disso. – ela disse serenamente, olhando-me nos olhos.
—Eu acredito nisso, sei que a partir do momento que ele me perdoou, nós encerramos aquela parte de nossas existências. Eu estou tão feliz por estar aqui, podendo ajuda-lo com sua recuperação.
—Ajudar espíritos em recuperação é parte de nossa missão diária, meu amado. Não o deixe esperando mais, dê um abraço nele. Eu o conhecerei em outro momento mais oportuno. – Sete Ondas me abraçou e beijou meu rosto, depois, refez o caminho de volta para a sala principal do hospital.
Respirei fundo antes de empurrar a porta e entrar no quarto em que estava Samuel. Lá estava ele, sentado em uma poltrona confortável ao lado da janela, trajava vestes brancas bastante confortáveis, mantinha um sorriso tranquilo enquanto olhava para fora do hospital, sentindo o sol tocar-lhe o rosto. Do lado esquerdo havia uma cama arrumada, uma mesinha ao lado com um conjunto de bule de chá e xícara, do lado direito um armário de duas portas simples, ele estava no meio, era um quarto grande e relativamente vazio.
—Irmão. – eu interrompi seus pensamentos, tomando cuidado para não ser brusco. Apenas dei alguns passos em sua direção quando Samuel voltou o rosto para mim, seu sorriso aumentou ao me fitar.
—Emanuel, que bom que veio me ver. Eu esperava sua visita a mais tempo, mas, a enfermeira disse que os guardiões são bastante atarefados, então...
—Eu queria vir antes mesmo, mas, achei que você devia se recuperar bastante para receber seu irmão e poder dar uns tabefes nele. – brinquei.
—Seu tolo, eu nunca daria uns tabefes em você. Nunca chegamos a tanto, embora eu discordasse de algumas opiniões suas. – Samuel olhou para cima saudoso.
—Eu estou muito feliz que esteja perto de mim novamente, Samuel. – me aproximei mais ainda dele e me ajoelhei para ficar mais ou menos na altura de seus olhos, peguei as mãos dele e beijei em respeito. Antigamente, eu nunca conseguiria ter tal atitude.
—Eu estou mais ainda. Pensei que minha existência estava destinada aos abusos daquele homem, eternamente. Você foi o meu salvador, meu anjo da guarda. – ele pegou minhas mãos e levou aos lábios, tal como eu havia feito anteriormente.
—Eu te amo, meu irmão. Eu prometi que iria te levar para navegar. O que acha?
—Você poderia me mostrar mais deste mundo espiritual, deve haver muito lugar bonito, muitos espíritos de luz para conhecer. Eu quero muito isso. – Samuel fez um sinal positivo com a cabeça.
Capítulo 10
Passar aqueles dias ao lado do Caboclo Lança do Mar tornava-se cada vez mais satisfatório, realizamos um trabalho intensivo no Umbral, muitos espíritos haviam desencarnado e eu havia me comprometido a ajuda-lo. A cada dia que íamos para aquele local escuro, lodoso e negativo, eu aprendia algo importante para o meu desenvolvimento espiritual. Com o tempo, Lança do Mar se tornou menos fechado e no último dia de missão já estávamos combinando de navegar um dia juntos, nos tornamos bons amigos.
Enquanto estava em missão, acabei fazendo daquela ilha - a ilha em que chegamos para encontrar a Cabocla Sete Estrelas do Mar - meu descanso. De dia cada um cuidava das suas obrigações, eu ia ajudar Lança do Mar e Sete Ondas ficava cuidando das crianças da tribo. A noite acendíamos uma fogueira e ficávamos trocando experiências e vivências, descobri que o Caboclo Lança do Mar havia sido chefe da sua aldeia em uma de suas encarnações e que sua expressão fechava se dava por conta de uma chacina de seu povo, ele já havia se desprendido de tal sentimento, mas, aquela era uma marca que ele carregava consigo.
Chegada a hora de ir embora da ilha, fomos nos despedir da Senhora Sete Estrelas do Mar. Nos aproximamos da sua tenda, eu e Sete Ondas, e entramos pedindo licença, ela estava sentava sobre as pernas, de joelhos.
-Salve, minha mãe! Viemos nos despedir, iremos voltar para o Reino Sete Ondas. - eu disse a ela.
-Guardião Sete Ondas, passou tão rápido nosso tempo juntos. Como foi bom tê-los conosco nestes dias. - ela se levantou e deu alguns passos ficando próxima a nós.
-Eu tenho tanto a agradecer. Agradeço a Deus, a nossa mãe Iemanjá, a senhora, a Lança do Mar e também a Sete Ondas. Eu precisava tanto ajudar esta ação de recuperação dos espíritos, eu me senti muito bem eu auxilia-los. - respondi.
-A vida é assim, ela nos leva e traz aonde precisamos estar. Muitas vezes não entendemos o motivo de passar por determinada situação, mas tudo que acontece é, ou deveria ser, um passo em direção a evolução. Você é um guardião, mas não sabe tudo que um guardião faz. Esta foi apenas uma parte do seu aprendizado e espero que ela lhe seja útil. Quero, um dia, olhar para você e parabeniza-lo por ser um guardião de Lei. - ela sorri e segura nas minhas mãos.
-Um Guardião de Lei? O que seria? - olhei para Ana e depois novamente para Sete Estrelas do Mar.
-Um Guardião de Lei é um guardião que foi reconhecido pelos Orixás como um cumpridor da Lei. É aquele que possui autorização para trabalhar nos centros espirituais em auxilio aos encarnados, é aquele que optou por permanecer como um guardião para cumprir a missão de resgate nos lugares mais sórdidos, aquele que vai até os laboratórios de magos negros e retira toda a ação destes espíritos trevosos para que a energia do bem e de Deus possa passar a atuar naqueles lugares. Isso e muitas outras missões, um guardião de lei cumpre. - Ana explicou-me, enquanto Sete Estrelas do Mar concordava.
-Eu entendo agora. Então, minha mãe, um dia eu estarei em sua frente como um Guardião de Lei. - beijei as mãos da cabocla e ela me abraçou.
-Vão em paz, meus filhos. Que o amor de Iemanjá esteja sempre com vocês. - Sete Estrelas do mar abraçou também Ana. Fomos nos despedir dos outros caboclos e das crianças, depois, partimos em direção ao Reino Sete Ondas.
A viagem não foi demorada, pois, utilizamos o mesmo portal que havíamos usado para chegar na ilha. Ao chegar em casa, um guardião Sete Ondas se aproximou e nos saudou.
-Salve Guardiões. Meu irmão, o Guardião Veludo pediu que você fosse até ele com urgência. Ele disse ter informações importantes sobre os espíritos que lhe são afins. - o guardião falou apressado.
Capítulo 11
Abri os olhos e demorei a me acostumar ao raio forte de sol que atravessava as frestas da parede de madeira do grande salão em que ficávamos. Mãe Joana, como a chamávamos, já estava pronta para o trabalho. Ela se encarregava de preparar nossas marmitas todos os dias, era um ritual, um ciclo que não terminava nunca: Levantávamos, nos arrumávamos, seguíamos para a colheita e trabalhávamos o dia todo, depois, voltávamos para o salão e descansávamos o pouco que podíamos, longe dos olhos e mãos dos guardas.
Aquele dia não foi diferente, terminei de me arrumar e joguei a água no rosto, deixando-a escorrer e levar consigo um pouco do meu sofrimento de estar naquele lugar. Não havia tido contato com nenhum espírito que pudesse ser algum dos meus pais, não entendi o motivo de estar ali se não por eles. Meu mestre Veludo havia confirmado, não tinha erro. Eles estavam em algum lugar naquela vila, trabalhando para Al'kibah, o chefe do lugar.
Ao sair do salão, peguei minhas ferramentas de trabalho, uma enxada, um rastelo e uma tesoura de jardim, e iniciei minha viagem para o campo de colheita. Pensei só para mim "Se continuar fazendo isso todos os dias, então, não encontrarei quem eu vim buscar neste lugar desgraçado. Preciso dar um jeito de mostrar que sou digno de confiança." Olhei para os lados e vi um espírito totalmente tomado por maldade, já era um vampiro psíquico, trabalhava para os guardas em missão de recolher energia em bares e locais de grande presença de vícios como álcool, drogas e prostituição, chamava-se Ergo. O ser, naquele momento, encontrava-se roubando água do reservatório principal, tinha livre acesso a qualquer lugar da vila e aproveitava para abastecer-se mais do que os outros escravos. Observei ao meu redor e não vi mais ninguém por perto, os outros já haviam seguido para os campos e estavam bem mais a frente de mim. Me esgueirei pela parede e caminhei silenciosamente até a ruela onde encontrava-se o grande tanque de água, onde o ser colocava uma garrafa de água para recolhe-la e leva-la consigo, me aproximei e surpreendi-o prendendo entre meus braços, ele uivou raivoso e tentou escapar, mas sua força era pouca perto da minha.
--Então você estava roubando água, heim? Acho que o mestre ficará feliz em saber disso. – Prendendo-o com um braço, recolhi a garrafa com a outra mão e comecei a caminhar com ele em direção aos guardas, na casa de Al'kibah.
--Guardas, peço perdão por interromper a ordem. Peguei Ergo roubando água do reservatório.
Um dos guardas que estava parado em frente a porta olhou para o outro e deu alguns passos em nossa direção. Ao chegar em frente a Ergo, o guarda negro levantou-lhe o rosto pelo maxilar, sem nenhum cuidado e olhou para a garrafa que eu segurava.
--Como podemos ter certeza de que ele é o ladrão?
--Bem, vejam as mãos dele. Por acaso estou com as mãos molhadas? Eu não interromperia a ordem para forjar um roubo. Além disso, os maiores utilizadores do reservatório são os guardas e o mestre. É para ele que trabalhamos, não é?
--Isso é verdade. Vocês não utilizam esta água e sim a água do rio que temos lá atrás. Venha, vamos leva-lo ao mestre. – O guarda que falava comigo fez um sinal ao outro para que ficasse ali e continuasse protegendo a entrada. Entramos logo atrás dele.
Só havia estado ali uma única vez, no dia em que havia chegado na vila. Nós não tínhamos acesso, nem mesmo tínhamos contato com o chefe da vila. Subimos as escadas e entramos na sala dele, Al'kibah estava sentado em sua poltrona atrás da mesa, em sua sala elegante e mais refinada que qualquer outro lugar daquela vila. Vestia um robe verde e amarelo desta vez, o turbante negro com a pedra da cor de seus olhos e apoiava-se em um cajado em forma de serpente com a mão esquerda. Assim que nos viu entrar, Al'kibah levantou-se arqueando a sobrancelha.
--O que é isso? Não é hora para atrapalhar meu dia com a visão de escravos entrando em minha sala. – ele corria os olhos de um para o outro, visivelmente irritado.
Capítulo 12
Os dias pareciam passar lentamente naquele lugar horroroso e cheio de energia vil, daquele dia em diante não precisei mais trabalhar como escravo, mas, ainda não tinha muito contato com Al'kibah. Eu participava de poucos rituais onde aquele ser utilizava-se das forças naturais para se beneficiar, aparentemente ele era bastante cauteloso e não desperdiçava seu poder para coisas simples. Eu ainda não havia tido notícias dos espíritos dos meus pais, nem do meu mestre Veludo, parecia que eu estava sozinho naquela missão e não sei até quando ela duraria, era difícil caminhar entre os casebres, passar em frente ao casarão dos escravos e sentir os olhos odiosos em minha direção, não era minha intenção e eu nunca machucaria nenhum espírito daqueles que ali viviam, eu sabia que aquela era apenas uma condição a qual eles não tinham como mudar, sempre que podia ajudava um ou outro, curava as feridas que neles apareciam em decorrência do trabalho forçado e intenso, em frente a Al'kibah eu era um aprendiz perfeito, fazia tudo que ele mandava sem questiona-lo, quando podia, vasculhava a sala dele em busca de informações e objetos que pudessem me ajudar futuramente.
Noutro dia, me sentindo cansado emocionalmente e espiritualmente, resolvi me fechar no quarto e meditar, como sempre fazia quando sentia minha frequência abaixar mais do que o necessário, sentei-me na cama simples e dura e fechei meus olhos, deixei minha mente vagar, meus pensamentos esvaziarem-se daquele ódio que era obrigado a alimentar para que ninguém desconfiasse. Logo, senti um puxão em meu espírito e abri os olhos, após piscar algumas vezes observei ao meu redor, estava em uma caverna incrustrada de pedras brilhantes furta-cor, como a pedra que Al'kibah utilizava. Não havia muita luz ali, mas eu conseguia enxergar por onde andava, as pedras iluminavam o bastante para isso.
Após caminhar por entre os corredores, alguns apertados, outros gélidos, outros úmidos e escorregadios, cheguei ao centro, um local circular, inundado de água com cheiro pútrido, no centro do "lago" havia uma pedra esculpida em forma de totem, uma serpente naja com dois grandes olhos daquela mesma pedra misteriosa que brilhava mais intensamente do que as pedras nas paredes, porém o que vi amarrada ao totem foi mais chocante do que o lugar em si, uma bela moça de pele negra, os cabelos cacheados e presos, uma flor seca adornava-os, ela estava nua, sua cabeça caída, parecia quase morta, mas sua aura levemente brilhante e dourada, juntamente ao exercício respiratório de seu corpo denunciavam que ela estava viva.
Me aproximei com cautela, ela parecia querer me olhar, mas, ou não tinha forças para tal, ou sabia o que estava a sua frente, por experiências anteriores, e não tinha interesse em observar mais uma vez seu algoz.
--Olá. Senhora. - Abaixei um pouco a cabeça para tentar encontrar seu rosto choroso e triste.
--Ahm? O que? - Ela levantou, com dificuldade, seu rosto. Seus olhos não demonstravam esperança alguma, ela estava confusa por eu estar ali.
--Eu sou o Guardião das Sete Ondas, porque você está aqui? Você foi capturada? - Me aproximei mais um tanto, antes de solta-la, resolvi escutar sua história. Eu não poderia cair em uma armadilha agora que estava tão próximo de ter alguma informação importante.
--Eu fui escravizada por um mago negro, não sei o nome dele. Me chamo Cinda. Minha morte é certa, ele nunca terá o que quer de mim. - Enquanto ele falava, seu queixo tremia, seus lábios se entre abriam, ela parecia querer falar mais, mas, estava fraca demais para tal.
--Cinda, eu não sou este mago negro. Não vim para tentar arrancar de você algo que não queria entregar, na realidade, eu não sei nem onde estou, meu pensamento me trouxe até este lugar, até você.
--Eu sou uma protetora das águas doces. Guardiã dos mistérios da Mãe da fertilidade e da energia mineral, Oxum. - Ao ouvir aquele nome fiquei arrepiado, Veludo havia me ensinado sobre aquela irradiação poderosa do amor.
Capítulo 13
Enquanto caminhava em direção ao casarão principal onde repousava Al'kibah observei o local uma última vez, enxerguei espíritos sofredores, espíritos que não tinham mais esperança alguma, alguns olhavam para mim estranhando as vestes, a espada diferente que carregava na cintura, o velho quepe negro. Optei por não mais me esconder, queria acabar logo com aquela sensação de tristeza em meu peito, talvez eu estivesse me precipitando, mas já fazia tanto tempo que estava aguentando aquilo, não havia encontrado meus pais, porém, havia encontrado um povo sofrendo, sendo extorquido e escravizado dia e noite, sem condições alguma de se libertar, de serem eles mesmos, até mesmo aqueles que serviam de guarda, notei, pareciam abatidos e cansados, exerciam aquela função porque não tinham opção, ou cumpriam as ordens de Al'kibah ou viveriam como os outros, que pouco tinham para sobreviver.
A terra continuava seca e formando crostas de poeira que agitavam-se com meus passos firmes, minha capa negra pouco balançava, uma vez que o vento parecia não conseguir chegar até aquele local e o ar quente sufocava. Parei alguns segundos em frente a casa de dormir dos trabalhadores, vi mãe Joana, a velha negra de olhos doces e sorriso sincero, fazer um cumprimento com a cabeça a mim de forma discreta, sorri de volta a ela e retribui o cumprimento, continuei caminhando como se tudo estivesse normal até chegar em frente a base de Al'kibah.
--Boa tarde, Guardião. – Levei o antebraço ao peito com o punho fechado enquanto a outra mão era mantida atrás das costas, em sinal de respeito.
--Boa tarde, Emanuel. Está a procura do mestre? – ele repetiu o ato de respeito e cumprimento entre os guardiões, levou também o antebraço ao peito.
--Sim, é muito importante o que tenho para falar com ele. – voltei os braços para o lado do corpo, acreditando que não seria necessário intervenção física para chegar até o mago negro.
--Hum. – Ele arqueou a sobrancelha. – Talvez eu devesse anuncia-lo, sabe como é, o mestre não gosta de ser incomodado a esta hora.
--Não acho necessário, sabe que sou muito próximo a ele. É capaz de ele ficar mais irritado de você sair do seu posto do que me receber.
--É, mas é meu trabalho. Por falar em trabalho, guardião, não deveria estar no campo hoje? Se não me engano, de acordo com a escala, hoje era seu dia de cuidar dos vermes na colheita. – ele relaxou os ombros.
--Tem razão, mas hoje tive um compromisso de urgência e tive que me ausentar da cidadela. Farei questão de comunicar isso a ele, também. É algo grave o que testemunhei, tenho certeza que ele ficará grato por eu ter me ausentado depois do que eu lhe disser. – sorri para o guardião, tentando convencer-lhe de algo.
--Então é melhor se apressar. – ele apenas meneou a cabeça e voltou a sua pose seca e dura, como um soldadinho de chumbo em frente a porta.
--Obrigado guardião, tenha uma boa tarde. – passei por ele e caminhei em direção a escada que levava ao andar superior.
Ao chegar em frente a porta da sala de Al'kibah bati algumas vezes esperando por sua resposta, nada ouvi. Abri vagarosamente a maçaneta e observei o interior, não havia ninguém, apenas o sol entrando através da grande janela atrás de sua mesa. Dei alguns passos para dentro da sala, era uma pena ele não estar ali, aquilo atrasaria meus planos, portanto, decidi espera-lo. A estante cheia de livros ao lado direito me chamava muita a atenção desde o primeiro dia que pisara naquela sala, eram livros, manuais, grimórios de feitiçaria raros, retirei um deles, de capa dura dourada, era muito bonito, mas eu sabia que em seu interior haviam feitiços negros, abri-o em uma página aleatória e espremi os lábios ao ver alguns símbolos, que prefiro não comentar, com descrições de sacrifícios hediondos com a função de transformar espíritos em monstruosidades, era a cara de Al'kibah aquilo ali. Devolvi o livro a estante o fui até sua mesa, era extremamente organizada e limpa, uma pena em tinteiro, não, não era tinta que havia no tinteiro, era sangue, um diário triste de folhas amareladas sem nada escrito, uma "obra de arte" em forma de serpente com os olhos...aqueles olhos furta-cor que metiam medo só de fita-los.
Capítulo 14
Partimos para Reino Sete Ondas em uma longa viagem. Não pudemos abrir portais, pois, haviam muitos espíritos que estavam debilitados e seria custoso faze-los gastar mais energia desta forma. Mãe Joana nos acompanhava com mais destreza do que a maioria dos resgatados, apesar de ter sido tão escravizada quanto todos os outros, a velha parecia ter uma força muito grande. Meu pai caminhava mais afastado, auxiliado por dois guardiões. Mestre Veludo me acompanhava sem falar nada, esperando que expressasse tudo que havia sentido e pensado nos últimos tempos, e foi o que resolvi fazer.
--Você demorou. Eu achei que havia me enviado para uma emboscada...foi isto que eu achei.
--Acha que eu o enviaria para uma emboscada para ter o trabalho de ir resgata-lo? Não é o que fazemos meu amigo. Você foi enviado para aprender, para se redimir e principalmente para encontra-los. – Veludo falou com sua voz suave, porém, séria.
--Eles não estavam lá. Eu quase me perdi novamente, quase perdi minhas esperanças...
--Não. Você aprendeu a baixar sua frequência quando necessário. Você não os encontrou, é verdade. Mas, como me contou, você encontrou uma mãe representante de Oxum que necessitava do seu auxílio, não foi?
--Isso é verdade, mas eu não estava em busca dela. Estava em busca dois meus pais e eles não estavam lá.
--Não seja egoísta guardião Sete Ondas, você os encontrou, afinal. – Veludo baixou as sobrancelhas para mim, como se quisesse finalizar aquele ponto da conversa ali.
--Está certo, me perdoe mestre. – abaixei a cabeça, envergonhado, mas, ainda me sentia fraco, inútil.
--Guardião Sete Ondas, me escute. As vezes a Lei Divina atua da forma que precisamos e não a forma que achamos justa. Você resgatou muitos espíritos sofredores, você resgatou uma representante de mãe Oxum, você resgatou Mãe Joana, sua mãe, que estava presa a muito tempo e, caso não saiba, é uma antiga trabalhadora da ceara espiritual. Seu pai também está conosco agora. Aquele mago negro foi derrotado graças a sua intervenção, aqueles soldados que os serviam agora irão participar de nossa falange, serão soldados a favor do bem. Qual parte você não entendeu quando eu disse cumpriu sua missão com êxito? – ele apenas sorriu e vomitou todas aquelas afirmações para cima de mim, a mais pura verdade e eu precisava ouvi-las.
Continuamos nossa viagem em paz até o Reino Sete Ondas, chegando lá, todos os espíritos resgatados foram divididos em agrupamentos e levados para locais diferentes, meus pais foram levados para uma colônia espiritual chamada Vila da Caridade, habitada por pais velhos trabalhadores da emanação de Omulu, o senhor da terra sagrada. Nos despedimos demoradamente, também o mestre Veludo e a irmã Maria Molambo. Depois, voltei para casa, ainda pensativo nas palavras do mestre.
Quantas vezes nos pegamos pensando sobre o que poderíamos ter feito diferente? Ter agido de forma mais coerente? Simplesmente por querer saber como nossa vida estaria se tivesse tomado o outro curso, outro caminho, aquela outra ramificação do destino escrito pela Lei Divina ou aquela outra carta do tarot? Eu olhava pela vidro já janela, chovia, é estranho pensar no mundo espiritual sujeito a mudanças climáticas. Chovia. Sete Ondas havia me dito que as vezes aquilo tornava-se necessário em função da limpeza energética que a água é capaz de fazer, os guardiões que ali moravam e trabalhavam todos os dias lidavam com energias nocivas, caóticas, trevosas e etc.
Chovia para limpar o Reino das Sete Ondas, fiquei um tempo observando aquela chuva, mas na verdade, eu estava lembrando do meu passado, vi meus pais se acabando, definhando em tristeza, meu irmão morrendo por minha causa, vi Ana grávida chorando minha ausência e criando um belo menino dentro de suas possibilidades quase nulas na época. Meus lábios expressaram um sorriso de canto ao ver a imagem do menino brincando com uma pequena espada de madeira, ele saberia lidar com a vida, ele saberia cuidar da mãe, e daria tudo de si para ser um grande homem, os erros que ele cometera em vida não estavam sendo julgados por mim, eu não poderia fazer isso. Não. Naquele momento eu tinha que refletir sobre os meus erros. Lembrei de um homem vagando sozinho no mar, somente ele e seu navio. Envolvimento com gente suspeita? Sim. Roubo? Sim. Amores levianos, cabarés e pose de Bon Vivant? Com certeza.