Calunga Grande: o mar na visão de um povo escravizado - por Douglas Fersan
A Calunga grande
O termo "calunga" é de origem bantu e tradicionalmente faz referência à morada dos mortos, ou mais comumente, ao cemitério. Assim, sempre que nos referimos à calunga, estamos nos referindo ao campo santo, o cemitério, o local os despojos carnais são depositados. No entanto, essa palavra assumiu uma outra dimensão.
Ao serem capturados (ou ao ver seus irmãos sendo feitos cativos) e colocados em navios negreiros, os africanos passaram a ver o mar como um grande cemitério, já que a viagem rumo à escravidão representava uma espécie de morte em vida. Era como se o mar levasse embora tudo que lhes era precioso: os costumes, a crença, a dignidade, o convívio com os entes queridos e, principalmente, a liberdade. Dessa forma, o mar passou a ser encarado como uma grande calunga, ou seja, como um grande cemitério.
Assim surgem dois novos verbetes no vocabulário do negro – e que viriam integrar o dialeto das religiões com matiz africana: a calunga grande (o mar) e a calunga pequena (o cemitério propriamente dito).
Há um aparente paradoxo na utilização desse termo para se referir ao mar, afinal não é ele um dos reinos dos orixás? Não seria o mar a origem da vida? Então como relacioná-lo à morte?
Não esqueçamos que a morte (iku em yorubá) não representa o fim, e sim uma transformação. Não esqueçamos também que Omolu, o orixá da cura, mas também da morte (no sentido de transformação, não de fim), e Iemanjá, a rainha do mar, o princípio e a origem da vida, da maternidade, da concepção.
O que parece ser um paradoxo é, na verdade, a explicação para essa questão. Ao mesmo tempo em que o mar representava a morte aos cativos, representava também um renascimento no Brasil. Não que esse renascimento fosse algo agradável, longe de defender a escravidão, mas era um renascimento no sentido de levar a sua cultura, as suas crenças, os seus orixás a terras tão distantes. Era como se a o pai Omolu determinasse o fim em terras africanas e Iemanjá um recomeço em novas terras, permitindo assim que os povos americanos tivessem a oportunidade de conhecer as divindades pelo ponto de vista africano, e não do europeu, tradicionalmente cristão/católico. Concluímos que aqueles negros cativos, bravos heróis, deram a sua liberdade e a sua vida para nos agraciar com a crença e o conhecimento sobre os divinos orixás, inkisses e voduns. Graças a eles e à sua heroica resistência hoje temos a oportunidade de cultuar essas entidades, sem a viseira das religiões tradicionais da Europa.
Assim sendo, o mar, chamado de calunga grande, que representou em tempos idos um gigantesco cemitério, é para nós um reino sagrado, que nos trouxe essa oportunidade. A quem cultua as divindades do panteão africano não basta reverenciar seus reinos sagrados, é preciso conhecer os seus fundamentos e história. Ao colocar os pés na água do mar, não esqueça de saudar os divinos orixás, a vida e aos nossos ancestrais cativos, a quem devemos tanto.
Douglas Fersan
O termo "calunga" é de origem bantu e tradicionalmente faz referência à morada dos mortos, ou mais comumente, ao cemitério. Assim, sempre que nos referimos à calunga, estamos nos referindo ao campo santo, o cemitério, o local os despojos carnais são depositados. No entanto, essa palavra assumiu uma outra dimensão.
Ao serem capturados (ou ao ver seus irmãos sendo feitos cativos) e colocados em navios negreiros, os africanos passaram a ver o mar como um grande cemitério, já que a viagem rumo à escravidão representava uma espécie de morte em vida. Era como se o mar levasse embora tudo que lhes era precioso: os costumes, a crença, a dignidade, o convívio com os entes queridos e, principalmente, a liberdade. Dessa forma, o mar passou a ser encarado como uma grande calunga, ou seja, como um grande cemitério.
Assim surgem dois novos verbetes no vocabulário do negro – e que viriam integrar o dialeto das religiões com matiz africana: a calunga grande (o mar) e a calunga pequena (o cemitério propriamente dito).
Há um aparente paradoxo na utilização desse termo para se referir ao mar, afinal não é ele um dos reinos dos orixás? Não seria o mar a origem da vida? Então como relacioná-lo à morte?
Não esqueçamos que a morte (iku em yorubá) não representa o fim, e sim uma transformação. Não esqueçamos também que Omolu, o orixá da cura, mas também da morte (no sentido de transformação, não de fim), e Iemanjá, a rainha do mar, o princípio e a origem da vida, da maternidade, da concepção.
O que parece ser um paradoxo é, na verdade, a explicação para essa questão. Ao mesmo tempo em que o mar representava a morte aos cativos, representava também um renascimento no Brasil. Não que esse renascimento fosse algo agradável, longe de defender a escravidão, mas era um renascimento no sentido de levar a sua cultura, as suas crenças, os seus orixás a terras tão distantes. Era como se a o pai Omolu determinasse o fim em terras africanas e Iemanjá um recomeço em novas terras, permitindo assim que os povos americanos tivessem a oportunidade de conhecer as divindades pelo ponto de vista africano, e não do europeu, tradicionalmente cristão/católico. Concluímos que aqueles negros cativos, bravos heróis, deram a sua liberdade e a sua vida para nos agraciar com a crença e o conhecimento sobre os divinos orixás, inkisses e voduns. Graças a eles e à sua heroica resistência hoje temos a oportunidade de cultuar essas entidades, sem a viseira das religiões tradicionais da Europa.
Assim sendo, o mar, chamado de calunga grande, que representou em tempos idos um gigantesco cemitério, é para nós um reino sagrado, que nos trouxe essa oportunidade. A quem cultua as divindades do panteão africano não basta reverenciar seus reinos sagrados, é preciso conhecer os seus fundamentos e história. Ao colocar os pés na água do mar, não esqueça de saudar os divinos orixás, a vida e aos nossos ancestrais cativos, a quem devemos tanto.
Douglas Fersan