sexta-feira, 9 de setembro de 2022

As correspondências astrológicas do tarô: de onde vieram? Qual sua lógica?

 

As correspondências astrológicas do tarô: de onde vieram? Qual sua lógica?

Uma informação muito curiosa que você descobre quando começa a estudar tarô e a fuçar em livros e sites da internet é que cada arcano maior do tarô tem uma correspondência astrológica. O Mago é a carta do planeta Mercúrio, por exemplo, o que parece razoável: o planeta, regente da fala e do intelecto, é associado ao deus Hermes, que transitava por todos os mundos, humano, ctônico e divino (como faz o mago, pode-se dizer, nas várias formas de magia), e, em sua encarnação como o grande sábio da magia Hermes Trismegisto, é o pai da corrente esotérica do Hermetismo¹. A Imperatriz, fértil e amante do luxo, tem um símbolo de Vênus em seu escudo, só pode ser Vênus. Marte, destrutivo, é a Torre. O Sol é a carta do Sol. Duh. E por aí vai. É o que se encontra em site atrás de site, como um fato bem estabelecido.

Como são 22 arcanos maiores, cabem os 7 planetas clássicos, mais os 12 signos do zodíaco e ainda tem espaço, dependendo de para quem você pergunta, para os 3 planetas novos da astrologia moderna, Netuno, Urano e Plutão. Em alguns casos, a associação casa certinho: Áries combina com o Imperador, e a ilustração do Rider-Waite-Smith tem até uma cabecinha de carneiro no trono do monarca, com o fundo vermelho-fogo. A Justiça e Libra é uma associação óbvia também, mas outras exigem um maior esforço retórico, como Capricórnio e o Diabo ou Sagitário e a Temperança — não que não seja possível, mas geralmente é preciso apelar para um aspecto menos óbvio dos símbolos envolvidos, como o materialismo capricorniano ou a natureza dúplice de Sagitário. E tem ainda as que forçam a barra: qual a associação entre o Carro e Câncer? É preciso malabarismo verbal e dotes líricos para ligar um signo tão maternal, nostálgico e defensivo com uma carta tão direta, que é pura ação e pé na porta.

Mas você já se perguntou de onde saiu tudo isso? Hoje vamos dar uma olhada nessa questão.

Aviso: vamos ter que falar de Cabala.

O famoso Zodíaco de Dendera, com representações das constelações

Como eu repassei brevemente pela sua história no meu texto sobre oráculos, o tarô a princípio era um jogo de cartas comum, de boteco. No entanto, se mesmo cartas de baralho comuns ganharam usos oraculares, é óbvio que o tarô também passou a ser usado para isso, considerando que já tinha tons esotéricos, como se observa no imagético alquímico do Sola-Busca. No entanto, é difícil pontuar quando exatamente esse processo começa (se podemos usar referências literárias como evidência, os arcanos maiores fazem uma aparição notável nesse contexto nos poemas do macarrônico Caos del Triperiuno, do poeta Teofilio Folengo, em 1527).Por volta do século XVIII, no meio do frenesi com a redescoberta do Antigo Egito pelos europeus, começa a surgir a ideia de que a origem do tarô era, ao mesmo tempo egípcia e cabalística. É fácil explicar como isso se daria, mas a explicação em si é meio rocambólica. Vamos por partes: 1) a Cabala é uma tradição de misticismo judaico, derivada de umas noções que emergem no finalzinho da Antiguidade e foram desenvolvidas por judeus sefarditas durante o medievo, como Isaac Luria e Abraham Abulafia; 2) os esoteristas europeus reverenciavam a figura de Hermes Trismegisto, cujos escritos foram resgatados por autores como Marsilio Ficino. Hermes, greco-egípcio, era identificado com Thoth, um nome mais puramente egípcio, o deus da escrita, sendo os egípcios um povo que os gregos mesmo já associavam, não sem um certo preconceito/exotismo, com a magia. Por fim, 3) os judeus descendem dos hebreus que teriam fugido do Egito no Êxodo, liderados por Moisés. Logo, segundo essa perspectiva, teria sido lá, antes de fugirem, que essa galera aprendeu magia, e Moisés, que é ou um contemporâneo de Hermes/Thoth ou o próprio, seria um exímio praticante de magia egípcia, supostamente codificada pela Cabala (e pelo tarô).

Assim, faria todo o sentido o tarô ser egipto-cabalístico. Não que ele seja de fato: toda a sua visão de mundo é firmemente europeia medieval-renascentista, a tecnologia necessária para fabricação de cartas surge só no século 9 da China e não temos nenhum mural ou papiro egípcio, de que eu tenha notícia, com imagens remotamente parecidas com o vocabulário imagético do tarô. Além do mais, associações entre a Cabala e a magia e religião do Egito do final da idade de bronze, antes do Êxodo, são extremamente difíceis de sustentar. Mas, né, pensa que era coisa da época, arqueologia ainda era uma ciência nova e ninguém tinha ainda nem decifrado os hieróglifos, o que só começa a acontecer de verdade, depois de muitas teorias furadas, em 1798.

Agora vamos entrar um pouco mais a fundo na ideia da Cabala e misticismo judaico. Primeiramente, porque os cabalistas davam muita importância à língua hebraica, vamos a algumas noções linguísticas: as línguas podem ser divididas de acordo com os troncos dos quais elas descendem, o que estabelece suas relações de parentesco. Por exemplo, o português, o espanhol, o francês são línguas latinas, pois descendem do latim, mas o próprio latim, junto com o grego, o persa e o sânscrito têm um ancestral comum, chamado de Proto-Indo-Europeu, por isso são definidas como línguas indo-europeias, do tronco indo-europeu. Um outro tronco linguístico é o afro-asiático, que inclui o egípcio e as línguas semíticas, como o fenício, o aramaico, o hebraico, o siríaco, o árabe, o etiópico e o acadiano. Os primeiros alfabetos surgem no contexto afro-asiático, provavelmente derivados dos hieróglifos por volta de 1700 a.C. com o surgimento da escrita proto-sinaítica, que depois inspira o alfabeto fenício. Tanto os hieróglifos egípcios quanto os alfabetos semíticos consideram as consoantes os elementos mais importantes das palavras, por isso é somente as consoantes que eles registram. Apenas mais tarde, com o alfabeto grego, que importou os caracteres fenícios e os modificou, foi que o pessoal inventou de registrar vogal (e o alfabeto latino, por sua vez, deriva do grego).

O alfabeto hebraico não se desvia da tendência semítica geral e também só registra consoantes, 22 ao todo. Com a reforma ortográfica massorética de 1000 d.C., passou-se a usar também diacríticos (acentos e bolinhas em cima ou embaixo das letras) chamados niqqud, que registram as vogais, mas é uma invenção tardia. O mesmo acontece no árabe.

Pois então, entre essas 22 consoantes temos várias em comum com as nossas, mas também algumas mais difíceis, como as guturais álef (א, que é aquela pausa entre vogais, como em “a-há”), ayin (ע, o gracioso “último som antes de vomitar”), chet (ח, que é tipo o ch do alemão), as consoantes enfáticas, e por aí vai. Essas consoantes, por sua vez, também eram usadas para registrar números. Não tinha nada de místico nisso, era simplesmente porque não existiam caracteres especiais para algarismos, como existia nos hieróglifos e em cuneiforme. A letra álef é 1, bet (ב) é 2, e assim por diante até yod (י), que é 10, caf (כ) é 20, lamed (ל) é 30, etc., e depois tem os números para 100 e acima, qof (ק), resh (ר), shin (ש) e tau (ת), de 100 a 400.

Então, se eu quero dizer o número onze, eu usaria as letras יא, álef e yod (1+10, lembrando que hebraico se escreve da direita para a esquerda), 39 é לט, tet e lamed (9+30) e essa notação é usada até hoje, como se pode ver, por exemplo, em sites como o Mechon-Mamre na parte para mostrar os originais em hebraico do Antigo Testamento. Como dito, não tinha nada de místico nisso… a princípio, pelo menos. Mas é claro que fica muito fácil fundar uma técnica numerológica com base nessa relação numérica, o que ocorre também no grego (gemátria é o nome dado à numerologia judaica, isopsefia, a grega). Foi um prato cheio para os pitagóricos e outros doidos (no bom sentido) obcecados com a perfeição divina da matemática. Um exemplo muito ilustrativo de gemátria é dado no filme Pi, do Aronofsky, em que o personagem chassídico (o judaísmo chassídico absorve muita coisa de Cabala) explica que a palavra para “filho” em hebraico, ben (B-N), tem valor 52 (2+50), que equivale ao valor da sequência “pai e mãe” (aba ve’amma, ’-B-’-W-’-M-’, 1+2+1+6+1+40+1=52).

Tenha paciência, que já vai ficar claro o que isso tem a ver com qualquer coisa.

Agora vamos dar um salto para o começo da era cristã. Em algum momento anterior ao século VI d.C., surge o Sepher Yetzirah, um livro de base para a Cabala, traduzido como Livro da Formação (às vezes Livro da Criação), Yetzirah sendo um dos quatro mundos cabalísticos por meio dos quais a energia divina se materializa como a nossa realidade material, chamada Assiah, fluindo da fonte divina até culminar aqui. Trata-se de um texto breve, mas extremamente críptico, cheio de alusões, jogos de palavras e referências bíblicas, como se pode ler nos trechos abaixo, que eu cito só para ilustrar:

1:1 — Com 32 caminhos místicos de Sabedoria entalhou Yah, o Senhor dos Exércitos, o Deus de Israel, o Deus vivo, Rei do universo, El Shaddai, Misericordioso e Gracioso, Altivo e Exaltado, que habita a eternidade, cujo nome é Santo — Ele é excelso e santo — e Ele criou Seu universo com três livros [Sepharim], com texto [Sepher], com número [Sephar] e comunicação [Sippur]. (…)
1:12 — Três: Água do Alento. Com isso Ele gravou e entalhou 22 letras a partir do caos e do vazio, pântano e argila. Ele as entalhou como um tipo de jardim, Ele as entalhou como um tipo de muralha, Ele as entalhou como um tipo de teto.

Pois é.

Mas aí entra a parte que é interessante para nós. Em dado trecho do Yetzirah, livro 4, temos as associações das letras hebraicas e as referências elementais e astrológicas. Álef é o elemento ar, o que é compreensível, porque é uma letra essencialmente sem som, puro silêncio e respiração; mem (מ) é água, que se diz mayim em hebraico, sendo a representação da letra originalmente um pictograma de uma linha representando água; e shin é fogo, uma letra presente na palavra hebraica para “fogo”, ’esh (אש). Terra é o único elemento ausente nessas correspondências, porque não é puro, sendo uma mistura dos outros três, aparentemente só existindo aqui embaixo no plano material. Das 19 letras que sobram depois de vermos as 3 dos elementos, 7 se referem aos planetas e 12 aos signos.

Agora começa a ficar interessante.

A lógica dessa distribuição se dá por meio dos tipos de letras do hebraico. Álef, mem e shin são chamadas de “mães”, pois estão no começo, meio e fim do alfabeto; as 7 letras dos planetas equivalentes a B, G, D, K, P, R e T são as letras “duplas” (que podem ser lidas de mais de um jeito, como o bet que às vezes é “b”, às vezes é “v”); e as 12 letras dos signos são as letras simples ou “elementares”. Se você quiser entrar no papo de doido, total chapéu de alumínio, eu já vi uma tabela que traça uma associação bioquímica, ligando cada tipo de letra aos 22 aminoácidos, as 3 mães sendo as pontuações, as letras duplas sendo os 7 aminoácidos hidrofóbicos, e as 12 letras simples, os aminoácidos hidrofílicos, o que insere a lógica do Sepher Yetzirah literalmente na base da vida. Mas esse é o caminho para o hospício mesmo.


A Árvore da Vida cabalística.

Uma das formas de distribuir as letras como os 22 caminhos entre as sefiroth da Árvore da Vida insere as letras mães nos eixos horizontais, as duplas na vertical e as elementares na diagonal, como se observa ao lado. Essa é a distribuição do cabalista Isaac Luria e é a minha favorita, mas a Golden Dawn e a Thelema utilizam um outro layout.

Segundo Aryeh Kaplan, o Sepher Yetzirah deita as bases para técnicas meditativas poderosas: cada vez que o texto diz que foi entalhada uma letra, como no trecho citado, o que também pode ser um imperativo, tipo “entalhe a letra”, segundo Kaplan, é para se entender que ela deve ser entalhada mentalmente, como um tipo de visualização. Seria através dessas técnicas, inclusive, que um adepto poderia construir um golem². O que importa é que esse livro, que é uma das bases da Cabala, chamou a atenção de ocultistas ocidentais com interesses cabalísticos, óbvio (e logo mais já entra o tarô). Referências yetziráticas podem ser observadas, por exemplo, no texto do Ritual do Hexagrama da Golden Dawn, na chamada keyword analysis:

I.N.R.I.
Yod. Nun. Resh. Yod.
Virgo, Isis, Mighty Mother.
Scorpio, Apophis, Destroyer.
Sol, Osiris, Slain and Risen.
Isis, Apophis, Osiris, IAO.

(tradução:
I.N.R.I.
Yod. Nun. Resh. Yod.
Virgem, Ísis, Mãe Poderosa.
Escorpião, Apófis, Destruidor.
Sol, Osíris, Morto e Ressuscitado.
Ísis, Apófis, Osíris, IAO.)

Nesse trecho, Osíris é aproximado de Cristo como divindades solares de morte e ressurreição por meio do nome divino IAO. O nome INRI é decomposto como yod, nun, resh e yod, suas letras em hebraico. Yod no Sepher Yetzirah se refere a Virgem, que aqui é o signo associado a Ísis. Nun é Escorpião, associado, como uma figura destrutiva, à serpente Apófis ou Apep. Resh seria o Sol, tanto que as práticas posteriores da Thelema de saudação ao Sol são chamadas de Liber Resh, aqui identificado com Osíris, daí I-A-OÍsis-Apófis-Osíris. É uma mistura muito louca de Cabala cristã e hermética com mitologia egípcia, mas, bem… Golden Dawn, né. Essa interpretação, aliás, não é viagem minha, antes que alguém possa dizer que eu estou pirando demais, mas o próprio Regardie em seu livro onde ele expôs escandalosamente, pela primeira vez, os rituais da Golden Dawn, comenta isso (p. 12 do The Golden Dawn: The Original Account of the Teachings, Rites, and Ceremonies).

A única parte que me complica é que, na maioria das edições do Yetzirah, resh não é o Sol, mas Saturno. Ué?

Aliás, essa é a parte bizarra da Cabala da Golden Dawn, da perspectiva de um cabalista mais tradicional. No tocante às atribuições das constelações e elementos, ela segue a lógica yetzirática, mas as letras dos planetas (e só os planetas, só as letras duplas) estão trocadas. Aryeh Kaplan comenta que existem várias versões do Yetzirah, que apresentam divergências entre si nessa parte, mas a sua tabela comparativa entre essas várias versões não inclui nada que se pareça com as referências da Golden Dawn, para quem bet era Mercúrio (devia ser a Lua), gimmel a Lua (devia ser Marte), dalet Vênus (Sol), caf Júpiter (Vênus), peh Marte (Mercúrio), resh o Sol (Saturno) e tau Saturno (Júpiter). Eu sinceramente não sei que edição é essa a que eles tiveram acesso, se foi algum dos chefes secretos que mandou trocar ou se tem alguma outra motivação numerológica. Enfim.

Agora, finalmente voltando ao tarô. Não precisa ser nenhum gênio para reconhecer que é uma coincidência muito grande que o hebraico tenha 22 letras e os arcanos maiores do tarô sejam 22, e essas questões ocuparam os ocultistas do século XIX, seguindo ainda no embalo das suas supostas origens egípcias. O problema era onde enfiar o Louco: os arcanos maiores têm números de 1 a 21, e o Louco é 0. As opções mais óbvias, claro, seriam colocá-lo no fim, como 22, ou no começo como 1, deslocando os outros. Eliphas Lévi vai pela opção mais… bem, louca, e o enfia quase no final. Então fica o Mago como 1 (álef), a Sacerdotisa como 2 (bet) e assim vai, mas o Louco entra como 21 (shin), e o Mundo como 22 (tau). Se você for ler o famoso Meditações sobre o Tarô: Uma Viagem ao Hermetismo Cristão, um imenso calhamaço que representa um estudo aprofundadíssimo dos 22 arcanos, você vai observar que o seu autor utiliza a ordem de Lévi.

É engenhoso, porém doido e não foi esse o arranjo do pessoal da Golden Dawn. O que eles fizeram foi identificar o Louco como o álef (elemento ar), assim o Mago, a princípio arcano 1, vai para a 2ª letra, bet (que é Mercúrio, lembremos), a Sacerdotisa para a 3ª letra, gimmel (Lua), e por aí vai, até o Mundo com a 22ª letra, tau (Saturno). Vocês vão observar que essa já é quase a versão mais conhecida para as atribuições das letras hebraicas e associações astrológicas. Falta só uma coisinha — e agora entramos na grande polêmica do tarô Rider-Waite-Smith.

Se alguém te mostra a carta da Força e pergunta que signo isso lembra, é provável que você pense em Leão, mesmo o signo, geralmente associado ao eu, ao desenvolvimento do ego solar, não tendo tanto a ver com o sentido do arcano. Afinal, tem um leão na ilustração. Com Justiça, você pensaria em Libra, que é o signo representado pelas balanças. Porém, puta que pariu, ao distribuir os arcanos com as letras (e, por consequência, planetas e signos), esses dois saíram trocados. A Justiça, no tarô de Marselha, é o arcano 8. Com o Louco pegando a primeira letra, ela ficaria na 9ª, tet, que equivale a Leão. Já a Força é o arcano 11, que pegaria a 12ª letra, lamed, de Libra. Samuel Liddell Mathers, um dos fundadores da Golden Dawn e, até onde eu sei, o responsável ou um dos responsáveis por fundamentar o entendimento da Ordem sobre tarô e Cabala, provavelmente estava resoluto em não deixar um problema pequeno como esses atrapalhar o seu esquema e decidiu inverter os dois arcanos, afinal era possível que o gênio por trás dos arcanos tivesse colocado esse tipo de entrave de propósito, para despistar os não iniciados — então voilà. De repente tudo encaixava.

Digo, encaixa daquele jeito, né. As correspondências hebraicas dos planetas são meio heterodoxas e teve que inverter os arcanos 8 e 11, mas fechou e é assim que se popularizou. De fato, essa tabela é a que você encontra no Liber T, o manuscrito que passa a limpo essas correspondências todas e outras ainda, como as que há entre os arcanos menores e os decanos zodiacais.


O 3 de espadas do tarô Sola-Busca e o 3 de espadas do RWS

Arthur Edward Waite, que foi membro da Ordem e também de algumas outras ordens (ele tinha um vício pela coisa), se baseia nesse sistema quando conceitualiza o seu próprio tarô. Em algum momento ele conhece a artista Pamela Colman Smith, que chega à Golden Dawn pelo contato de ninguém menos que o poeta W. B. Yeats — aliás, aproveitando o embalo do tema, eu recomendo muito o podcast da Aline Valek que saiu uns dias atrás, super bem pesquisado, sobre a vida da Pamela — , e a contrata para ilustrá-lo. Seu tarô sai em 1910, publicado pela editora Rider, por isso chamado Rider-Waite-Smith (RWS). Talvez por ser um dos poucos tarôs que ilustrem os arcanos menores (uma ideia da própria Pamela), além do Sola-Busca, que estava em exposição na época e serviu de inspiração em alguns momentos, o RWS se tornou famoso e, como dito, a base de todos os outros tarôs fantasia posteriores. Vinte anos depois, descobriram Plutão, e aí dava para encaixar a tríade dos planetas lentos, transaturninos, Netuno, Urano e Plutão, respectivamente como o Enforcado, o Louco e o Julgamento, assimilando-os a suas atribuições elementais anteriores (água, ar, fogo).

Décadas mais tarde, Crowley publica o seu célebre Thoth Tarot, com todas as inovações que são a cara dele. Os arcanos maiores não são chamados mais assim, mas de “Atu”, supostamente uma palavra egípcia com o sentido de “chave”. Ele retorna Justiça e Força para o lugar original, mas as renomeia como Ajuste e Volúpia, assim como renomeia uma série de outras cartas e investe pesado na simbologia cabalística e astrológica. A maioria dos Atu mantêm as associações originais, mas, como ele comenta no Livro da Lei, “tsade (צ) não é a Estrela”. Tsade, como vocês podem ver na tabela lá em cima, é a 18ª letra e equivalente a Aquário, logo seria equivalente ao 17º arcano (17+1, sendo o primeiro o Louco, 0), que é a Estrela, que geralmente faz sentido como Aquário, por conta da simbologia dos vasos na imagem. Crowley tinha problemas, no entanto, com a Estrela ser tsade, mas é um assunto em que não vale a pena entrar agora, porque é ainda mais cabeludo. O importante é que aí rola mais uma inversão, mas é apenas nas equivalências das letras, não na ordem das cartas: a Estrela passa a ser heh, a letra atribuída ao Imperador, que assume tsade, mas as equivalências astrológicas permanecem iguais.Nem todos os tarôs, no entanto, se atêm a essas distribuições mais consagradas. O tarô alquímico do hermetista tcheco Theofanus Abba (1901–1975), acima, publicado pela Czech Hermetics, mantém a ordem de Marselha e aplica a distribuição das letras segundo Eliphas Lévi, com o Louco no shin, e as associações yetziráticas que se virem. O tarô de Salvador Dalí, abaixo, faz algo parecido, pegando as letras do arranjo de Levi, mas distribuindo as associações astrológicas no freestyle, de modo que o Mago passa a ser o Sol, o Louco é Escorpião, o Sol é Gêmeos, a Torre é Áries — foda-se tudo, aqui é Surrealismo, porra! E tem mais algumas páginas brasileiras que fazem umas atribuições que eu não achei em mais lugar nenhum, que eu imagino que sejam derivadas da leitura analítica ou intuitiva dos próprios tarólogos.O que tirar disso tudo? Quem tem razão nessa bagunça?

Bem. Ninguém. Ninguém tem razão.

Essas atribuições astrológicas não fazem parte do sistema e sua tradição desde o início. Até onde se sabe, não havia nada de cabalístico no tarô quando ele emerge nos botecos da Renascença, e não existe nada de tarô na Cabala judaica — essas relações são puramente obra da Cabala hermética ocidental. É o contrário do que acontece com a geomancia, por exemplo, em que suas 16 figuras são atribuídas duas de cada para cada planeta (mais os nodos lunares) já no princípio, fazendo parte do seu hardware, por assim dizer, e qualquer um que diga, por exemplo, que tristitia é uma figura de Júpiter e não de Saturno, ou outra bobajada do tipo, só pode estar usando drogas pesadas (e ainda assim volta e meia tem umas polêmicas com outras questões como associações zodiacais). Por isso podemos pensar na coisa toda como uma inovação, como um trabalho criativo. O que não é pejorativo — ser criativo é o maior elogio da nossa era — e são inovações muito úteis, mas é um fato que não pode ser perdido de vista.


O Mago, no Tarô Mitológico. Atente ao Caduceu de Hermes.

A partir disso, a grande lição que eu tiro dessa discussão é não levar essas atribuições tão a sério. Se você está ingenuamente aprendendo tarô lendo os sites por aí e levando-os ao pé da letra, entendendo essas atribuições como verdade absoluta, então você corre o risco de associar um arcano como o Mago intimamente a Mercúrio, de modo que você fique incapaz de entendê-lo como qualquer coisa que não uma figura mercurial — um perigo quando o seu primeiro tarô é o Tarô Mitológico, por exemplo, que também bebe dessas fontes. Pode acontecer, mas aí, se você pega o Mago como o elemento ar (álef) ou Urano ou como o Sol, vai dar tela azul. Em vez disso, é mais produtivo pensar no Mago como um conceito em si e entender que tem certas características mercuriais que explicam ele ter sido associado a Mercúrio por Mathers e Waite, mas há outras associações que também seriam possíveis.

O meu background acadêmico é na área de Estudos Literários e Estudos da Tradução. Como comenta Roger Beck em A Brief History of Ancient Astrology, a astrologia funciona como se fosse uma linguagem natural, na medida em que utiliza um conjunto de símbolos (os planetas, os signos) distribuídos numa sintaxe (sua posição no mapa, as casas, os aspectos) que evidencia suas relações e produz sentido. O mesmo poderia ser dito do tarô, constituindo um vocabulário que estabelece relações entre seus itens lexicais em uma tiragem. Assim, ao se trabalhar com essas correspondências, é como se estivéssemos num processo de tradução. O problema é que cada língua, cada sistema, recorta a realidade do seu jeito, e por isso são tão comuns as dificuldades para encontrar equivalências 1=1. Pense na palavra wall em inglês, por exemplo, que para nós pode ser tanto “parede” quanto “muro” ou até “muralha”. Agora, se isso já é difícil para palavras que se referem a coisas concretas, imagina o quanto é complicado realizar esse processo com símbolos repletos de vagueza, nuances e camadas de sentido.

O outro risco é o da obsessão hermenêutica com A Correspondência Verdadeira (que deu muitas noites mal dormidas ao Crowley). É muito fácil cair nesse buraco com Cabala e tentar encontrar um modelo em que tudo encaixe perfeitamente… pior ainda quando você lembra que as sefiroth da Árvore da Vida têm associações astrológicas (que também diferem de acordo com o sistema adotado) e, bem, seria bom se a carta do Sol ficasse no caminho de uma letra que leve a Tiffereth, a sefirah mais associada ao Sol, não?³. Pois é, e esse é o caminho para você surtar. Cuidado.

Eu imagino que esse problema deva afetar mais quem usa o tarô para revelar nomes via correspondência de letras hebraicas ou como ferramenta mágica, e aí fórmulas associadas aos planetas e signos acabam sendo relevantes — entende-se, por exemplo, que, no Liber 777, Crowley deriva do tarô os poderes dos anjos astrológicos, daí que Hanael, o anjo de Capricórnio, seria útil para lidar com questões ligadas a “The Witches’ Sabbath so-called, the Evil Eye”, pois Capricórnio é a carta do Diabo⁴. Nesse caso, eu recomendo refletir bem sobre o assunto antes de escolher o sistema a ser usado, para não ficar alterando-o o tempo todo, o que diluiu a eficácia. E, se o baralho que você usa tem as atribuições já impressas nele, como o do Dalí, é contraproducente tentar aplicar um sistema diferente daquele que você vê ao usá-lo.

De resto, essa situação é um convite à reflexão sobre como essas duas linguagens interagem. O Mago pode ser mercurial, OK, mas como ele pode ser também uma figura solar? Como ele pode ser uma figura uraniana? Será que ele pode se encaixar sob outro astro e ser, sei lá, jupiteriano também? Esse tipo de reflexão, que tem muito a ver com o jogo literário da leitura de poesia, é um bom exercício dos músculos interpretativos e tem um grande potencial produtivo para qualquer um que tenha interesse em magia e na leitura de oráculos, em que essas capacidades se fazem necessárias.

* * *

[1] Só fazendo essa nota para lembrar que o sincretismo greco-romano é um pouco mais complicado do que a gente costuma pensar ao associar Hermes e Mercúrio, ainda mais quando se pensa nas equivalências com os planetas, que os próprios gregos não traçavam a princípio (para eles, por exemplo, Vênus era dois planetas, um diurno, Eosphoros, e outro noturno, Hesperos). Sobre o Hermetismo e o sincretismo greco-egípcio, eu tratei disso neste texto sobre os PGM.

[2] No caso, seria um de verdade, não aquela merda do “golem da saúde” que eu já vi um bruxo de Instagram ensinar a fazer (se você sabe do que eu estou falando, não faça isso, pelo amor dos deuses). Obviamente não seria igual a um golem de RPG, uma estátua de barro que anda, mas um ser vivo no mundo astral. É fato que é muito fácil construir seres astrais como um servidor ou um elemental artificial, então é difícil dizer em que grau um golem construído por esse método (que exigiria de um mestre cabalista várias horas de meditação avançada, intensa e profunda) seria diferente de uma dessas criaturas. Pelo que eu compreendi da descrição de Aryeh Kaplan em seu comentário sobre o Yetzirah, que o entende como um veículo a ser usado para a exploração dos reinos superiores, parece que o conceito desse golem é mais próximo do que se chama de “corpo solar”.

[3] Para entrarmos em maiores detalhes, no sistema da Cabala hermética usado pela Golden Dawn e Thelema, as sefiroth são distribuídas segundo a numerologia dos planetas. O número da Lua é 9, por exemplo, logo é associada à nona sefirah, Yesod e assim por diante. Temos assim Malkut: Terra (10), Yesod: Lua (9), Hod: Mercúrio (8), Netzach: Vênus (7), Tiffereth: Sol (6), Geburah: Marte (5), Chesed: Júpiter (4), Binah: Saturno (3). Chokhmah, na sequência, pode ser a esfera das estrelas fixas e Keter o Empíreo, ou, numa distribuição que eu acho mais tosca, Chokhmah é Netuno, Daath é Urano e Keter é Plutão. Seria muito legal e fechadinho se tudo casasse e então na Árvore da Vida a letra resh ficasse num caminho ligado a Tiffereth, o Sol, mas não é o que acontece no modelo usado pela Golden Dawn/Thelema, onde resh fica entre Yesod e Hod, Lua e Mercúrio. A Árvore da Vida usada pela GD é uma variedade diferente da que eu mostrei mais acima, de Luria, pois remove o caminho Binah-Chesed e Chokhmah-Geburah e insere dois caminhos a mais, embaixo, que se ligam a Malkut. Há também outros modos de distribuir os planetas nas sefiroth, como o de Aryeh Kaplan e o de Athanasius Kircher. É um assunto muito caótico.

[4] Há variações também nessas atribuições de poderes angelicais. Para Bardon, em A Prática da Evocação Mágica, os domínios de Hanael caem na esfera de “compreensão do karma”, por exemplo. O anjo Kambriel, de Aquário, rege a astrologia para Crowley e “todo princípio de cristalização, condensação e enrijecimento, todo ciclo e poder de atração”, para Bardon, enquanto o anjo de Peixes (Amnitziel para Crowley ou Jophaniel para Bardon) teria o poder de “enfeitiçar e gerar ilusões” (ligados ao arcano da Lua no tarô) ou “controlar os princípios de evolução nos planos físico, astral e mental”. Via de regra, os poderes atribuídos por Bardon a essas figuras são mais profundos e dizem respeito à manutenção das forças da realidade, motivo pelo qual eu confesso uma preferência pelo sistema bardoniano nesse caso.

(Este texto foi publicado originalmente em meu Medium em 29 de junho de 2020)