Uma Introdução ao Estoicismo
Uma Introdução ao Estoicismo
por Alan Willms
Finn, de A Hora de Aventura, se deleita
estudando o manual de Epiteto.
Existe em mim uma qualidade quase imbecil de estoicismo. Eu simplesmente não sou capaz de me incomodar em me preocupar com perigos ou dificuldades de qualquer tipo a não ser que sua ação esteja em minha percepção imediata. – Confessions of Aleister Crowley, Capítulo 55
Estoicismo é um ramo da filosofia que iniciou com o filósofo Zenão de Cítio, que perdeu todas as suas riquezas em um naufrágio e acabou indo parar na Grécia, onde estudou filosofia. Zenão reunia pessoas no Pórtico Pintado em Atenas (Stoá Peisianákteios) para discutir seus ensinamentos, daí foram chamados de “estoicos” (de Stoá). A filosofia estoica atraiu pessoas de todas as classes, gente como o imperador Marco Aurélio e o escravo aleijado Epiteto.
Assim como os magistas da Aurora Dourada almejavam a “Felicidade Perfeita”, o filosofo estoico almeja a Eudaimonia[1], a felicidade, por meio da aplicação de Arete, virtude ou excelência. Em busca dessa felicidade, descobriram que uma das principais causas da tristeza são os erros de julgamento, a maneira como assentimos às impressões que se tornam emoções, e assim desenvolveram técnicas para lidar com os infortúnios da vida.
É muito bonito dizer que “os sofrimentos são apenas como sombras; eles passam & estão acabados; mas existe aquilo que resta”, mas quando a água bate na bunda precisamos elaborar um pouco mais sobre isso. A filosofia estoica é uma ferramenta para isso, um “mecanismo de coping”, uma maneira de encarar e lidar com os obstáculos da vida.
Lógica Estoica
O principal tema na lógica estoica é a descrição de como o conhecimento é adquirido. Quando nós nascemos, nossa mente é como uma folha de papel em branco, sobre a qual nós escrevemos. Nada vem do zero, tudo é desenvolvido, até mesmo concepções comuns que todos têm.
Nós escrevemos nesta folha quando obtemos informações sobre o mundo externo através de experiências sensórias e impressões.
- Primeiramente, recebemos a impressão de um evento externo através de nossos órgãos dos sentidos. Algo que nosso olho viu, nosso ouvido escutou, nosso nariz cheirou, etc.
- Essa impressão causa uma reação involuntária e um julgamento de valor, classificamos como “bom” ou “ruim”.
- Após essa reação automática, nós avaliamos a impressão conscientemente e julgamos se ela é adequada ou inadequada.
- Se a impressão for adequada, consentimos com ela e aí temos a reação voluntária ou consciente.
Quando julgamos uma impressão como adequada, não nos preocupamos em ser infalíveis, mas julgamos seu grau de exatidão relativo às evidências que temos: sua história, referência a outras impressões e as condições dos nossos órgãos dos sentidos. Se não temos informações o suficiente, suspendemos o julgamento e não consentimos com a impressão.
Para os Estoicos, essa forma de aquisição de informação não é conhecimento, mas sim cognição. O conhecimento é um conhecimento científico e sistemático. A diferença é mais ou menos como aquela entre Conhecimento (Daäth) e Entendimento (Binah) / Sabedoria (Chokmah).
Física Estoica
De acordo com o Estoicismo, somente corpos existem. Isso não quer dizer que apenas coisas tangíveis existem, porque corpos são quaisquer coisas que agem ou sobre as quais se pode agir. É o ativo e o passivo, onde o ativo informa o passivo para criar formas:
- Aquilo que age, o ativo, Deus.
- Aquilo sobre o qual se age, o passivo, a matéria.
O cosmos é espelhado no nível humano: o mesmo relacionamento que existe entre a alma (ativo) e o corpo (passivo) do cosmos também existe entre a alma e o corpo do ser humano.
“[...] o objetivo de qualquer cerimônia mágicka é unir o Macrocosmo e o Microcosmo. [...] Você deve deixar seu Macrocosmo e Microcosmo exatamente equilibrados, verticalmente e horizontalmente, ou as imagens não coincidirão.” - Magick em Teoria e Prática, Capítulo VIII.
Essa força que forma o mundo material é chamada de Pneuma, e ela possui três princípios: coesão (a força que dá unidade aos objetos físicos); natureza (a força pelo qual se diz que algo está vivo, principalmente em organismos como plantas) e alma (a força nos animais pelos quais eles têm capacidade de percepção, movimento e reprodução). No ser humano existe ainda um quarto princípio, a alma racional (a razão nos humanos adultos).
Os estoicos são criticados por usar Deus como um mero rótulo para Natureza, mas isso não quer dizer que todos os estoicos são ateus. Alguns consideram que os processos da natureza são inteligentes, conscientes e providenciais, que Deus é um ser consciente e vivo, mesmo sendo a própria Natureza.
“Tu deves: (1) Descobrir qual é a tua Vontade. (2) Fazer a tua Vontade com: (a) unidade de propósito; (b) desprendimento; (c) paz. Então, e somente então, tu estás em harmonia com o Movimento das Coisas, tua vontade parte da, e portanto igual à, Vontade de Deus. E desde que a Vontade não é mais que o aspecto dinâmico do ente, e desde que dois entes diversos não podem possuir vontades idênticas; então, se tua vontade é a vontade de Deus, Tu és Aquilo.” – A Mensagem do Mestre Therion
Aquilo que emprega a razão é superior a aquilo que não a emprega, e como nada é superior ao cosmos, o cosmos emprega a razão. Como somos conscientes e parte do cosmos, então o cosmos também é consciente.
“Através de nossos olhos, o universo percebe a si mesmo. Através de nossos ouvidos, o universo está ouvindo suas próprias harmonias. Nós somos as testemunhas através das quais o universo se torna consciente de sua própria glória, de sua própria magnificência.” ― Alan Wilson Watts
Ética Estoica
A base da ética estoica é que o instinto básico que dirige todos os animais é a autopreservação. Nossas escolhas mais primitivas se baseiam nisso, se aquilo que faremos irá nos beneficiar ou prejudicar.
Para animais irracionais, isso significa suprir necessidades básicas, como alimento, água, abrigo, saúde, etc. Para o homem, isso envolve algo mais. Não basta viver, é preciso viver adequadamente. Buscamos a autopreservação do nosso ser racional, da nossa excelência.
Tendo em vista isso, todas as coisas podem ser classificadas em três grupos:
- Bom: a excelência (virtude) e as coisas que participam dela;
- Ruim: o vício e as coisas que participam dele;
- Indiferente: todo o resto
Para os Estoicos somente a excelência (virtude) é boa porque ela contribui para nossa sobrevivência como seres racionais. Comida, abrigo, riqueza, etc. não são “bons”, eles apenas têm valor para nós, portanto são indiferentes. A própria vida é um indiferente. Tais coisas não podem ser boas, porque também podem ser más. Então não são nem boas e nem más, são indiferentes. A posse de coisas externas não pode garantir a felicidade, mas a posse da virtude sim.
“[...] a Espada liberta as percepções da teia da emoção. [...] As percepções em si são sem significado; mas as emoções são piores, pois elas enganam suas vítimas fazendo-as acreditar que tais emoções são significativas e verdadeiras.” – Liber ABA, Parte II: Adaga.
No entanto, existem os indiferentes que são preferidos. A gente prefere indiferentes como saúde, riqueza, etc. do que indiferentes como a doença, pobreza, etc. Indiferentes preferidos são aqueles que contribuem para o nosso bem-estar físico.
Epiteto introduz uma categorização ainda mais simples em seu Enchiridion. Para ele as coisas se dividem em duas: o que está sob o nosso controle o que não está sob o nosso total controle.
- Bom: coisas que dependem de nós, concepção, escolha, desejo, aversão, reação, etc.
- Ruim: coisas que não dependem de nós, riqueza, doença, propriedades, o congestionamento no trânsito, o mau humor do chefe, etc.
A única coisa sob nosso total controle é a escolha. Como agir, como reagir. Focando nas coisas que estão sob nosso controle, podemos assegurar a virtude.
“Somente na absoluta calma do laboratório, onde o observador se sente perfeitamente indiferente ao que pode acontecer, só preocupado em observar o que aquele acontecimento é, em medi-lo e pesá-lo por meio de instrumentos incapazes de emoção, pode-se começar a esperar por um registro fiel dos eventos. [...] Então que o Estudante praticante a observação daquelas coisas que normalmente lhe causariam emoção; e que ele, tendo escrito uma descrição cuidadosa do que vê, verifique com o auxílio de uma pessoa que tem familiaridade com tais coisas.” – Liber ABA, Parte II: Adaga.
Para os estoicos, as emoções são produto de julgamentos. Conforme a Lógica Estoica, nós recebemos uma impressão através de nossos órgãos dos sentidos; então nós disparamos um julgamento de valor automático, que causa uma reação (primeiro movimento); só então avaliamos a impressão, e se assentimos, causamos uma reação emocional.
Exemplo: você chega no prédio antigo onde você trabalha. Você entra naquele elevador suspeito (quando será que foi a última manutenção dele?) e aperta o botão “11”. O elevador dá aquela tremida usual e sobe. Lá pela altura do nono andar, a luz pisca e o elevador parece cair cinco centímetros, que para você pareceram dez metros. Você imediatamente sente um frio na barriga e pensa que o elevador vai cair. O susto passa e o elevador continua subindo, chegando em segurança no décimo-primeiro andar. Esse primeiro “susto” não é uma emoção genuína, foi só um primeiro movimento. Agora, se você assentir com esse primeiro julgamento sem avaliar a impressão adequadamente, você borra as calças.
Como emoções genuínas são o produto de um assentimento, e assentimentos estão sob nosso controle, as emoções estão sob nosso controle. É mais fácil falar do que fazer, mas através de contínua prática é possível fazer o cérebro ponderar as impressões com mais calma antes de assentir. Mesmo sem esse mecanismo, é possível pelo menos rever uma conclusão errônea para acabar ou minimizar uma emoção como a raiva, ansiedade ou tristeza.
“Toda emoção é uma obsessão; a mais horrível das blasfêmias é atribuir qualquer emoção a Deus no macrocosmo, ou à alma pura no microcosmo. Como pode aquilo que é auto-existente, completo, ser movido? [...] Mas se o ponto em si pudesse ser movido, ele deixaria de ser quem é, pois posição é o único atributo do ponto. Portanto o Magista precisa tornar-se absolutamente livre em respeito a isso.” – Liber ABA, Parte II: Adaga.
Um ser racional se preserva cultivando a virtude, buscando ações apropriadas, ou seja, aquelas que buscam os indiferentes preferíveis e as coisas relacionadas à virtude ou excelência. A virtude é identificada com a felicidade, e ela não depende de nada fora de nós.
Para viver virtuosamente é necessário viver de acordo com a natureza. Isso se aplica em três níveis:
- viver harmoniosamente consigo mesmo (livre de conflito emocional interno);
- viver de acordo com sua própria natureza (como um ser racional, ao invés de reagir passivamente a forças externas);
- colocar-se em harmonia com a Natureza como um todo (uma vez que nós somos uma parte da Natureza, não existe conflito entre viver de acordo com sua natureza e a Natureza).
“Seu dever para consigo mesmo. [...] Explore a Natureza e Poderes de seu próprio Ser. Isso inclui tudo que é, ou pode ser para ti: e você deve aceitar tudo exatamente como é em si, como um dos fatores que compõe seu Verdadeiro Self. Assim este Verdadeiro Self por fim inclui todas as coisas, sejam quais forem; sua descoberta é Iniciação (a viagem em direção interna) [...] Não reprima e nem restrinja qualquer instinto verdadeiro de sua Natureza; mas devote tudo em perfeição apenas ao serviço de sua única e Verdadeira Vontade. – Dever.
Alguns Exercícios
A Revisão de Sêneca
Antes de ir dormir, faça uma avaliação de como foi o seu dia em seu Diário Mágico, avaliando sob cada um destes aspectos:
- o que eu fiz de bom, ou seja, voltado à excelência?
- o que eu fiz de ruim?
- o que eu deixei de fazer?
Lembre-se que aqui tratamos dos conceitos de “bom” e “ruim” segundo os estoicos, sem nenhuma conotação moral de “certo” e “errado”.
A Visão de Cima de Marco Aurélio
Quando tiver um problema ou estiver rabugento e de mal com a vida, pense em quão infinitesimal você é em comparação ao seu bairro, à sua cidade, ao seu país, ao seu continente, ao seu planeta, ao sistema solar, à galáxia, ao universo. Seu problema não parece tão importante agora, né?
Assista ao vídeo “Você sabe com quem está falando?”, de Mario Cortella: https://youtu.be/P3NpHryB-fQ
O Autocontrole de Epiteto
Durante o seu dia, sempre que surgir alguma situação com a qual você se sente mal, pergunte-se: “Que controle eu tenho sobre isso?”. Faça disso um hábito. Segundo Epiteto, apenas a escolha está sob nosso controle.
Premeditatio Malorum
Defina um objetivo. Agora acrescente “se der tudo certo”. Por exemplo: “vou pescar amanhã, se tudo der certo”.
Pense em todos os problemas que podem surgir entre você e o seu objetivo. Pode ser que chova, que sua vara quebre, que o barco afunde, que o carro enguice, que ocorra uma emergência no trabalho, que você fique doente, etc. Perceba como é natural que problemas aconteçam. Se não der certo, não se lamente.
“[...] a unidade de existência consiste em um Evento, um Ato de Casamento entre Nuit e Hadit; ou seja, a realização de um certo Ponto-de-Vista. [...] Cada Evento é um Ato de Amor, e assim gera Alegria: toda a existência é composta apenas de tais Eventos. Então como pode ser que exista até mesmo uma ilusão de Sofrimento? Simples; por tomar uma Visão parcial e imperfeita. [...] de fato, as ‘Sombras’ das quais o nosso livro fala são aquelas interferências com a Luz causadas pela parcialidade de nossa apreensão.” - Pequenos Ensaios em Direção à Verdade.
Conclusão
O filósofo estoico se dedica a aplicar os conceitos de sua filosofia ao dia a dia para tornar-se uma pessoa mais feliz. Ele não se preocupa em perder incontáveis horas discutindo somente para medir sua sagacidade e vencer argumentos. Para ele não importa o que uma pessoa fala, mas sim como ela se comporta, aquilo que ela faz. Ele acredita que tem mais valor uma pessoa com experiência, porém sem embasamento teórico, do que uma pessoa com farta bagagem intelectual e nenhuma experiência prática.
Essa atitude quase causou o fim do Estoicismo, porque muitos destes filósofos não estavam interessados em escrever livros e promover suas ideias, então grande parte do que temos hoje são escritos de alunos sobre seus mestres ou de outros filósofos criticando os estoicos. No entanto, um bocadinho de teoria sobreviveu até os tempos atuais e embasa a prática do Estoicismo.
Essa foi apenas uma breve introdução aos conceitos básicos do Estoicismo de acordo com a obra de John Sellars, que resume tudo o que foi dito pelos antigos estoicos, seus críticos e comentadores. Para saber mais sobre o Estoicismo e suas práticas, consulte a bibliografia a seguir, especialmente O Manual da Vida Boa (O Enchiridion), editado por Dr. Chakrapani, um texto breve e direto que provavelmente chamará a sua atenção.
AURELIUS, Marcus. The Meditations. Wisehouse Classics, 2015.
EPITETO. O Manual da Vida Boa: O Enchiridion de Epiteto. The Stoic Gym Publications, 2018.
SELLARS, John. Stoicism. University of California Press, 2006.
SENECA. Letters From A Stoic: All Three Volumes. Enhanced Media, 2014.
[1] εὐδαιμονία, que literalmente significa “eu habitado por um daemon”, um bom gênio.