quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Tarô Os Animais do Inconsciente

 Tarô Os Animais do Inconsciente


André Francioli Mardouro
 
Tenho utilizado um método de Alejandro Jodorowsky de modo frequente, vivendo momentos de grande intensidade junto a meus consulentes.
A técnica compreende a eleição de um animal para iniciar-se a consulta. Após evocar o animal o consulente participa da criação, junto com o tarólogo, do próprio esquema de lançamento, buscando figurar com as cartas a forma do animal.
Serpente - Piton - símbolo do Inconsciente
A serpente e o inconsciente
 
Esta forma de lançamento introduz um outro nível no jogo, que é a imagem do próprio animal evocado, e cujas qualidades devem ser consideradas na leitura, proporcionando um exercício criativo que confere outra dinâmica de relações.
O mais interessante aqui é que cada animal passa a ser entendido também como símbolo, expressão da própria situação do consulente naquele momento, seja em  relação a questões específicas ou a uma idéia de "situação geral".
A seguir descrevo dois destes lançamentos realizados, ambos originários do animal "cobra", porém muito diferentes entre si.
Exemplo I
No primeiro caso foram utilizadas 7 cartas. A primeira correspondia à cabeça, ligada às questões mentais e intelectuais, e foi dedicada ao naipe de espadas; a segunda, logo em seguida e no local correspondente ao coração, às questões sentimentais e ao  naipe de copas; a terceira casa, no estômago da cobra, foi dedicada ao naipe ouros e a questões financeiras e de saúde; a quarta, última antes da parte final da cauda, ligada ao naipe de paus e ao universo criativo e sexual. Como logo a seguir compreendemos que a cobra deveria ser venenosa, contemplando um princípio de dualidade.
Sua cauda então afinaria repentinamente ao final do corpo, definindo a quinta casa que apontaria para aquilo que se deixa para trás, ou o passado recente. A sexta e a sétima carta foram dipostas à frente da carta da cabeça, representando as presas, e sendo o veneno tanto mortal quanto a fonte de seu próprio antídoto estabeleceu-se que elas representariam um aspecto negativo e outro positivo relativos ao futuro próximo, ou seja, um alerta para o bem e para o mal, circunstâncias vindouras boas e ruins, obstáculos e apontamentos favoráveis, etc. Definido o esquema passou-se a tiragem das cartas pelo consulente - a princípio apenas os arcanos maiores, dispostos nas mesa a partir da ordem preestabelecida:
Lançamento Animais do Inconsciente - 1
Exemplo I: A tiragem inicial
Ilustração do Autor
De um modo muito resumido o jogo aqui revelou, com o Arcano X na casa 1, que o consulente passava por uma grande agitação mental, pois acabara de iniciar uma nova jornada (Arcano 0 na casa 5), deixando para trás uma vida profissional um pouco caótica (trabalhava como freelancer) para ingressar em um trabalho fixo, com boas perspectivas criativas e financeiras. A etapa seguinte compreendeu a escolha dos arcanos menores, buscando elucidar alguns pontos, e a seguinte composição foi formada:
Lançamento Animais do Inconsciente - 2
Exemplo I: O complementos dos Arcanos Menores
Ilustração do Autor
O que chamou logo a atenção é que a figura indicava agora uma cobra mais gorda, pesada, como que em processo de digestão. Sua agitação mental estava relacionada a esta “digestão” de alguns impasses relacionados ao campo afetivo, sexual e financeiro. Ainda resumindo, os apontamentos futuros foram ficando claros: viver o novo quadro profissional – por mais que às vezes a adaptação ao novo modo de trabalho seja difícil e até sofrida – buscando concentrar-se e equilibrar-se e eliminando a agitação mental (Arcano XII na casa VI); por outro lado, evitar transformações muito repentinas e radicais, não é o momento – o período é de paciência e estabilidade, condições que garantem uma “digestão” mais  bem sucedida das mudanças, sem precipitações e mal-estares.
Exemplo II
O segundo lançamento feito a partir do animal “cobra” realizou-se de modo absolutamente diverso. A cobra no caso tinha cor – era negra – e habitava sonhos frequentes do consulente. Tendo origem onírica, possuía olhos amarelos e grandes presas, além de uma cruz gravada na testa, evocando assim uma imagem extremamente forte para o início do jogo. O corpo da serpente, no sonho, aparecia sempre armado em bote, e a cabeça inclinada para frente sugeria ao mesmo tempo força, reverência e humildade (nas palavras do consulente) – um verdadeiro animal de poder.
O mais difícil foi descobrir como representar os elementos distintivos desta cobra: para além do corpo arqueado, a cruz na fronte, os olhos amarelos e as enormes presas. A estrutura do animal compreendeu 5 cartas, com posições cujas funções foram definidas após resolvermos a representação da cruz na testa com duas cartas cruzadas logo acima da carta da cabeça e que nos revelariam a essência, ou os segredos desta cobra; depois, foram mais duas cartas cruzadas para os olhos, que por serem amarelos foram associados ao naipe de ouros, entendido aqui no sentido alquímico – espírito e matéria a um só tempo; por fim resolvemos as enormes presas com outras duas cartas cruzadas, figurando como na primeira cobra um apontamento positivo e outro negativo.
Vale sublinhar que este tipo de solução só é possível pelo entendimento básico de que estamos diante de um esquema, o que permite um bom nível de abstração na forma da representação dos diversos animais. Assim houve uma significativa variação em relação à cobra do jogo anterior: a carta relativa a cabeça, abaixo da “cruz na testa”, foi associada ao plano mental/naipe de espadas; a carta seguinte aos sentimentos/naipe de copas; a próxima às questões sexuais e criativas/paus; a penúltima ao passado e a derradeira entendemos como uma carta de alerta, contabilizando 11 cartas ao total, que escolhidas foram abertas de acordo com a seguinte disposição:
Lançamento Animais do Inconsciente - 3
Exemplo II: Uma serpente com o corpo armado
Ilustração do Autor

O diálogo estabelecido com o consulente a partir desta tiragem foi sem dúvida muito interessante. Os arcanos XVIII e XII na cruz da testa revelaram todo o potencial mágico, de transformação, deste animal onírico. Em sorteio adicional agregou-se ao jogo o Ás de Ouros como síntese desta cruz na testa, o que para nós confirmou a potencialidade alquímica desta força. Tirou-se também o Sete de Espadas na casa 7 (alerta) e o Oito de Copas na casa 11 (síntese da polaridade entre negativo e positivo), configurando assim a forma final do jogo:

Lançamento Animais do Inconsciente - 4
Exemplo II: Uma serpente com o corpo armado e o complementos dos Arcanos Menores
Ilustração do Autor
Apenas para ilustrar, o consulente vivia uma espécie de obssessão com uma outra pessoa, uma relação que viria de outras encarnações, algo como um amor imemorial e espiritualmente interdito. Como busco conduzir o atendimento por uma perspectiva terapêutica e de autoconhecimento, encaminhei a leitura a partir do alerta da casa 7, com o Diabo e o Sete de Espadas indicando o perigo de deixar-se aterrar pelo lado negativo desta negra serpente: a narrativa reencarnacionista (real ou não, não sabemos, pois trata-se de um mistério) apresentava-se como fonte de enorme perturbação emocional (Papisa), da qual o consulente buscava se libertar racionalmente (daí a Estrela no plano mental).
Dito isto, o foco do encaminhamento foi: viver o presente desta vida! Nada de colocar as perturbações na conta de “vidas passadas”. Resolver-se no aqui e no agora! A própria idéia de alquimia compreende uma transubstanciação que se faz pelo cruzamento entre espiritualidade e ciência, misticismo e razão, autoconhecimento e equilíbrio mental: é necessário afastar-se desta idéia de “amor imemorial” (8 de Copas), advindo de vertiginosas reencarnações sucessivas (A Roda Fortuna) e abandonar o obsessor a partir da própria força da magia (O Mago), entendida como potencialidade de transmutação existencial presente no próprio consulente.
Uma tiragem densa, meio louca, iluminada e sombreada pela força da imagem evocada, cobrindo o jogo de uma atmosfera mágica e proporcionando uma experiência intensa e intrigante. É certo que jamais teria chegado a estas formulações de leitura sem a disposição do consulente em revelar este segredo íntimo, associado à imagem da cobra negra. A técnica de Alejandro Jodorowsky estabelece um desafio colaborativo e propõe uma relação criativa durante o atendimento, não só na definição do jogo, mas no encontro de cada caminho de individuação.
Contato com o autor:
André Francioli Mardouro www.diariotarot.blogspot.com.br
Outros trabalhos seus no Clube do TarôAutores