quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Banquete de Kiumba - por Douglas Fersan

 

Banquete de Kiumba - por Douglas Fersan


Sete velas pretas, sete velas vermelhas... – conferiu mais uma vez e lembrou feliz, ao ver que uma tinha se partido ao meio, que comprou uma vela a mais de cada cor, justamente para evitar que um contratempo atrapalhasse o trabalho.
           
            Um carro passou e ela se virou, dando as costas à estrada.  Não queria que ninguém a visse ali, na encruzilhada fazendo uma macumbinha.  Estava bastante convicta do que queria, mas não custava nada evitar ser vista, afinal o que diriam os conhecidos se fosse flagrada com aquela parafernália toda, despachando um “trabalho” na encruzilhada?

            Conferiu a lista mais uma vez: as velas, as bebidas, os charutos, os cigarros...  havia outras coisas também – geralmente mal vistas pelas pessoas, como uma galinha morta, uma língua de boi, um coração...  estava tudo ali.  Não havia esquecido também os pedidos escritos num pedaço de papel.  Já que ia à encruzilhada, resolveu pedir tudo que ansiava.  Pediu que aquela vizinha intrometida se mudasse para bem longe, que a falsa amiga mordesse e língua e se desse mal no trabalho, que aquela sirigaita que lançava olhares insinuantes ao seu namorado quebrasse as duas pernas e, obviamente, que ele, o namorado, ficasse sempre ao seu lado, submisso e escravo do seu amor, cego para outras mulheres e prisioneiro de seus caprichos.  Certamente os exus as pombogiras a ajudariam e ele seria sua propriedade exclusiva.

            _Sim, os exus e pombogiras me ajudarão – pensou novamente, convicta de que os estava pagando muito bem com tudo que aquilo que despejava sobre o chão da encruzilhada.

            Por um momento observou novamente todo aquele material e pensou no quanto gastou com aquilo.  Além do que aquela amiga “macumbeira” havia indicado, comprou outras coisas por conta própria, pois assim acreditava que reforçaria o trabalho. Rosas e cravos vermelhos certamente seriam bem aceitos pelos espíritos, além de um perfume (barato, é verdade) e um alguidar com farofa amarela, tudo colocado sobre uma toalha vermelha.  Se eles a ajudariam com a receitinha dada pela amiga, imagine então com tudo aquilo que acrescentou...  Vendo tudo aquilo, achou que sua oferenda estava acima dos padrões financeiros usados nas macumbas que se vê por aí e adicionou alguns pedidos à sua lista.  Pediu um aumento salarial, a desventura de outro desafeto, além de reforçar o pedido – quase uma exigência – para que o namorado ficasse a seus pés.

            Escondeu-se mais uma vez de outro carro que passava e colocou tudo aquilo sobre o chão.  Colocou de qualquer jeito, nem se deu ao trabalho de abrir as garrafas de bebidas – não comprou das mais baratas, fez questão de lembrar.  Foi aí que recordou que sua amiga “macumbeira” havia dito que os espíritos não conseguem abrir garrafas e nem acender cigarros ou charutos.  Tratou de realizar essa tarefa meio a contragosto e resolveu ajeitar os materiais sobre a toalha. 

            _Até que ficou bonito – disse baixinho.

            Em seguida bateu palmas próximo às velas, conforme a amiga havia ensinado, e chamou pelo nome dos exus e das pombogiras.  Não poupou ninguém: Exu Pimenta, Tranca-Ruas, Exu Veludo, Exu da Meia-Noite, Marabô, Morcego, Maria Mulambo, Maria Padilha, Dama da Noite, Sete Saias...  nomes famosos que permeiam o universo da Umbanda e da Quimbanda.

            Terminado o confuso ritual, deu três passinhos para trás, se virou de costas e tomou seu rumo, certa de que seria atendida em seus pedidos o mais breve possível.  Assim que saiu, um grupo de kiumbas, espíritos zombeteiros e trevosos da pior espécie, se aproximaram daquela bagunça que emporcalhava a via pública e passaram a se divertir com aquele banquete que lhes foi deixado.  Assim que terminasse sua festa, iriam atrás daquela tola menina, a fim de confundir seus pensamentos, dando-lhe falsas impressões de sucesso e esperanças, e em seguida paranoias e sensação de fracasso, que iriam confundir-lhe as ideias, causando medo, insônia, insegurança e toda uma gama de fatores que a fariam ouvir novamente conselhos de pessoas mal informadas, mal esclarecidas e até mal intencionadas como essa amiga “macumbeira”, e iria novamente a uma encruzilhada servir esses kiumbas obsessores vez após vez, até se tornar escrava de sua própria loucura.

            Um pouco distante, os verdadeiros exus e pombogiras, incansáveis trabalhadores do Astral, observavam tristes àquela cena.  Os (verdadeiros) exus da Meia-Noite, Pimenta, Marabô, Morcego, Tranca-Ruas, acompanhados das Senhoras Sete Saias, Maria Mulambo, Maria Padilha e Dama da Noite não interferiram de imediato, pois algumas criaturas não ouvem bons conselhos, não aprendem pelo caminho mais fácil, precisam trilhar o caminho da dor para que o conhecimento sobre a moral espiritual seja compreendida.  Sabiam que aquela pobre coitada teria que sofrer para deixar de ser egoísta.  Teria que sentir os efeitos do mundo espiritual para aprender a respeitá-lo.  Eles sabiam que, após toda aquela bagunça que ela chamava de “trabalho” e de “despacho”, seria perseguida pelos kiumbas e que isso sim a faria procurar um lugar sério, onde eles seriam afastados dela e enfim ela se tornaria também uma trabalhadora da espiritualidade na terra, auxiliando outras pessoas para que não cometessem o mesmo erro.  Ou então, se insistisse na sua teimosia e egoísmo em querer manipular as coisas e as pessoas com a ajuda de espíritos, acabaria se decepcionando por não atingir seus objetivos escusos e se afastaria definitivamente daquilo que ela erroneamente acreditava ser Umbanda.  Não passando pela peneira da Umbanda talvez se convertesse a uma religião da moda e passasse a se autointitular “ex-mãe-de-encosto”...

Douglas Fersan
Julho de 2