Sobre as lendas das Mouras Encantadas
Se foram muitas as lendas nativas de Portugal que se foram perdendo ao longo dos séculos, as das Mouras Encantadas ainda nos chegaram. E, na verdade, a termos de eleger uma grande figura lendária nacional, ela teria de ser, sem qualquer menor dúvida, esta, por ser completamente característica do nosso país e nos ter chegado num numero enorme de histórias. Infelizmente, elas também são tantas - poderão ler algumas numa tese de que cá falámos anteriormente, ou na obra As mouras encantadas e os encantamentos no Algarve de Ataíde Oliveira - que se torna impossível resumi-las a todas numa só publicação, mas é notável que elas tendam, quase sempre, a seguir um padrão previsível. Assim, na impossibilidade de contar a totalidade das suas histórias, começamos aqui por apresentar esse grande padrão que as caracteriza:
- Uma pessoa vai a um local de difícil acesso, como um ribeiro ou uma caverna, ou a um sítio que os locais tendem a evitar;
- Encontra por lá uma mulher misteriosa e muito bonita (ou, menos frequentemente, um homem ou criança - o Mouro Encantado e o Mourinho);
- Esta nova personagem pede-lhe que realize uma determinada tarefa, prometendo-lhe que terá uma boa recompensa;
- A pessoa tenta realizar essa tarefa, mas por uma qualquer razão acaba quase sempre por falhar (há excepções, em particular nas versões mais antigas das lendas);
- Se não for salva, a figura misteriosa desaparece, para - acredita-se muitas vezes - não mais voltar a ser vista por essa pessoa.
São estes os cinco grandes passos que tendem a caracterizar grande parte das lendas das Mouras Encantadas, mas eles permitem realizar um grande número de histórias. Por exemplo, quando estas figuras apareciam ao pé de água, elas frequentemente tomavam a forma de peixes (como a lampreia), que se desencantavam para uma forma humana somente num único dia do ano (quase sempre o de São João), e que pediam ajuda para deixar de estar "fadadas", i.e. encantadas, o que podia ser realizado se, por exemplo, uma dada pessoa levasse um pequeno embrulho para algum lado sem o abrir. Movida pela curiosidade, a pessoa lá o abre, condenando novamente a figura que procurava ajuda. Numa outra história do mesmo tipo, uma pessoa come os vistosos figos que viu numa árvore, apenas para depois se aperceber que eles eram o ouro encantado de uma destas figuras. Até podemos dar aqui um exemplo mais concreto, provindo da tese que já referimos acima, e que parece ter sido reportado oralmente:
A- Há, disseram-me, no "sítio da Canada" e dentro de um algueirão, uma moura encantada. Tem aparecido a algumas pessoas, e até houve um rapaz do tempo dos nossos avós que tentou desencantá-la.
B- Como foi isso?
A- Passando em certa ocasião por ali próximo, o tal rapaz, apareceu-lhe a moura e prometeu-lhe riquezas sem conto se a desencantasse. "O que devo fazer?", perguntou o rapaz, que era muito corajoso. "Lutar com um dragão e com um toiro." "E o dinheiro, onde está?" "Além." E a moura mostrou ao rapaz uma grande esteira de figos ao sol. "São figos..." "Parecem-te figos, mas não são - o que ali vês são dobrões em ouro." E neste momento ouviu o rapaz o rastejar de um grande bicho, mas não pôde dominar o próprio medo e fugiu para não mais aparecer.
Mas de onde vêm estas histórias? De onde nasceu toda a ideia de Mouras Encantadas? Algumas das suas lendas revelam-no da seguinte forma - no tempo da Reconquista Cristã, esse período que foi fonte de infinitas lendas nacionais, quando muitos castelos algarvios estavam prestes a ser conquistados, algum mago islâmico decidiu lançar alguma espécie de feitiço para proteger as suas "posses", que iam desde ouro e pedras preciosas até mulheres e filhas. Depois, com o passar do tempo, essas figuras enfeitiçadas quiseram livrar-se do seu triste destino, mas para isso precisavam de ajuda externa, que nunca se importavam de agradecer e recompensar.
A ideia é quase puramente nacional, mas também tem um problema - a serem verdade, se alguém as conseguisse mesmo desembruxar teria muito rapidamente acesso a uma vasta fortuna. Ou seja, hoje andava a pastar ovelhas, amanhã tinha propriedades dignas de um rei. O que daria muito nas vistas, como é claro, e por essa razão a tarefa proposta pela figura mística ou acaba por ser falhada, ou sofre imperativamente de um qualquer precalco para se poder justificar a ausência da recompensa, ou - em último caso - a lenda é localizada num passado já distante, não existindo portanto testemunhas vivas.
O curioso em tudo isto é que algumas pessoas acreditavam mesmo que tinham vistos estas tais Mouras Encantadas. Há provas disso mesmo. Por exemplo, uma tal Rosa Maria, que viveu em finais do século XVIII em Vale do Peso, afirmou isso mesmo - em troca, acabou por ser presa pela Inquisição durante três anos e açoitada publicamente. Compreende-se - se alguém nos viesse dizer, hoje, que viu uma dessas figuras, também muito dificilmente a levaríamos a sério, não é?! Nesse sentido, há até uma ideia na obra de Ataíde Oliveira já mencionada acima que capta bem este problema, e mesmo o porquê de muitas destas lendas se terem perdido:
Antigamente falava-se muito de Mouras Encantadas; hoje quando falamos disso põem-se a rir. Gosta-se mais do bruxedo : acha-se-lhe mais graça.
Mas, ao mesmíssimo tempo, a Moura Encantada e o (raro) Mouro Encantado são figuras lendárias nacionais que ainda conhecemos, por oposição a entidades como os Olharapos, Olharapas e Olhapins, ou mesmo o Secular das Nuvens e o Homem das Sete Dentaduras. Chegaram-nos centenas, talvez até milhares, dessas histórias - bastará pensar que cada "Cova da Moura" do nosso país parece ter uma para si! Portanto, cabe a cada um de nós a tarefa de não deixar que estas histórias das Mouras Encantadas se percam. Contem-nas, seja aquela que apresentámos ali em cima, as dos livros, ou até possíveis relatos da vossa região - porque, caso contrário, também elas acabarão por desaparecer, mais cedo ou mais tarde, e ficaremos com uma mitologia nacional ainda mais pobre do que já a temos...