domingo, 15 de maio de 2022

Quando ela morreu não acreditei. O som do disparo cortou a barulheira Do salão como uma navalha. A bala que varou seu peito Manchou as cortinas já rubras Em um tom mais vivo de vermelho.

 Quando ela morreu não acreditei.
O som do disparo cortou a barulheira
Do salão como uma navalha.
A bala que varou seu peito
Manchou as cortinas já rubras
Em um tom mais vivo de vermelho.


Nenhuma descrição de foto disponível.Quando ela morreu não acreditei.
O som do disparo cortou a barulheira
Do salão como uma navalha.
A bala que varou seu peito
Manchou as cortinas já rubras
Em um tom mais vivo de vermelho.
Por um segundo ouve gritaria e
Alguma Correria
Mas logo tudo se aquietou.
Os rapazes arrancaram as toalhas das mesas
E improvisaram uma padiola,
Saíram do salão do cabaré subindo as escadas,
E Maria Mulambo ali sendo carregada,
Ensanguentada.
Quando a colocaram na grande cama de dossel
Do seu quarto cheio de bugigangas
Foram correndo chamar o doutor
E eu fiquei ali com ela
Segurando suas mãos que lentamente esfriavam.
Ela tentou dizer alguma coisa,
Tossiu querendo cuspir as palavras
Mas eu não pude entender.
As mãos gelaram de uma só vez, duras como mármore
E os olhos abertos se tornaram opacos.
Fiquei ali sentada ainda de mãos dadas com ela
Mesmo quando Rosa Vermelha entrou e disse
"Não adianta mais Desirée, ela partiu."
Meus lábios se moveram mudos balbuciando "não acredito."
Quando ela morreu eu fiquei muito frustrada
Porque ela sempre me levou junto
Mas dessa vez teve a ousadia de partir sozinha.
Era a ultima lendária,
A ultima das três Marias.
O doutor chegou com sua maleta de couro
A examinou brevemente,
Tocou-lhe o pescoço, entre os seios e nos pulsos.
O doutor não disse nada, apenas moveu a cabeça
Meneando como quem afasta as borboletas da esperança.
Fiquei com ela até amanhecer.
Muita gente entrou no quarto,
Meia duzia de homens, umas tres dezenas de mulheres.
Choraram, espernearam, a abraçaram e partiram.
Rosa Vermelha que sempre foi a mais firme da casa
Veio com um balde de água e algumas toalhas
Mas eu tomei de suas mãos, eu iria fazer aquilo.
Limpei o sangue com toda a delicadeza
E fechei seus olhos
Enquanto Rosa Vermelha abria o armário
Atrás de um vestido para por na morta.
A menina Ana entrou no quarto perguntando
Se a companhia funerária chegaria logo
Eu abri a boca para explicar mas Rosa Vermelha
Tomou a frente para dizer que mulheres como nós
Não vão para a funeraria, não éramos embalsamadas
E não podíamos ser sepultadas no cemitério,
A igreja não permitia.
Ana saiu triste ao perceber que a humilhação
A ela também cabia.
Rosa Vermelha me tocou no ombro
E pediu que eu me afastasse para ela
Vestir Maria Mulambo.
Eu não me movi então ela me puxou com força
Me pondo em pé em um tranco
Mas quando falou comigo a voz estava branda
"Desirée eu sei que é horrivel, mas esse é o nosso mundo, essa é a nossa vida."
Assenti e me afastei, fiquei aos pés da cama
Observando ela desamarrar o cadarço do espartilho
Do cadáver na minha frente como se
Ja tivesse feito aquilo varias vezes antes.
Acredito que sim.
Quando soltou o último cordão
Dona Mulambo falou, tenho certeza que disse algo
Mas Rosa Vermelha me olhou com tristeza
E disse que era apenas o ar dos pulmões saindo,
A ultima lufada que a abandonava.
Minhas mãos se agarraram com força
No pano da minha saia e então não suportei mais
Chorei como uma condenada,
Pois de fato era isso que eu era,
Condenada a estar sem ela.
Cai no chão sem forças nos joelhos
E chorei por mais de meia hora
Esperando Maria Mulambo vir ralhar comigo
Como sempre fazia quando me via
Se rendendo ao drama.
Mas ela não disse nada, o silêncio era total.
Rosa Vermelha me mandou observar,
Disse que nós é que dávamos conta
De nós mesmas e por isso
Eu tinha de aprender como se faz
Pois provavelmente da proxima
Se não fosse eu morta na cama
Seria eu a vestir alguma de minhas irmãs.
Ela virou o cadáver repetidas vezes
Tirando as roupas manchadas
E vestindo um belo vestido negro de lantejoulas bordadas.
Ao ver o esforço dela me refiz rapidamente,
Apanhei na penteadeira a escova e o óleo
E penteei os cabelos dela.
Serafina trouxe a chave do armário
Onde achei as maquiagens, pintamos ela como uma boneca.
Ela ficou pronta e passou o dia ali deitada
Como muitas vezes havia feito após uma noite de bebedeira.
Quando escureceu os rapazes trouxeram a carroça.
Desceram Mulambo pelas escadas enrolada em uma manta dourada
Das mais caras do guarda roupa que Maria Quitéria havia
Deixado para ela como herança.
Quando sai na rua foi que me dei conta
Do tamanho da comoção,
Além das vinte e tantas moças
Da nossa casa haviam mais uma centena de mulheres
Vindas dos outros cabarés.
O cavalo foi em marcha lenta e nós atrás em fila
Sem direito nem de fazer uma reza ou elevar um cântico
Sem direito de acender velas
Pois isso a igreja também proibia.
Putas não tem direito nem ao pranto.
Fomos todas em silêncio de braços dados
E quando chegamos na clareira no meio da mata
Fiquei horrorizada ao ver que além da cova já cavada
Havia para mais de uma centena de monturos de terra
Revelando outras de nós que jaziam ali de baixo.
Antes de enterrar o corpo
Os rapazes abririam a manta
E então em uma fila organizada
Todas nós fomos até ela e a beijamos uma ultima vez.
O corpo foi atirado no buraco
E após alguns minutos
Maria Mulambo havia realmente
Deixado esse mundo.
Voltei para o cabaré,
Rosa Vermelha que como esperado
Nos lideraria dali por diante nos deu o luxo de um mês
De portas fechadas.
Mas um mês passou rapido
E logo eu estava no salão sorrindo para os homens
Como se toda a dor não fosse nada.
Naquela primeira noite um dos porcos
Que eram os clientes da casa
Me elogiou dizendo que eu estava
Com uma cara boa.
Mal sabe ele a desgraça atrás da máscara.
Mas eu ainda ria e dançava
Exatamente como Maria Mulambo havia me ensinado um dia.