segunda-feira, 23 de maio de 2022

*Sedna, o mito da deusa mutilada* Filha de um grande caçador de uma comunidade litorânea, Sedna era uma jovem formosa e já em idade de casar.

 *Sedna, o mito da deusa mutilada*


Filha de um grande caçador de uma comunidade litorânea, Sedna era uma jovem formosa e já em idade de casar.


Pode ser uma imagem em estilo anime de uma ou mais pessoas e texto que diz "v Martins"*Sedna, o mito da deusa mutilada*

Filha de um grande caçador de uma comunidade litorânea, Sedna era uma jovem formosa e já em idade de casar. Diversos moços de sua aldeia já se haviam apresentado como pretendentes, mas ela recusara todos. O pai manifestava preocupação, pois estava ficando idoso e não poderia manter Sedna indefinidamente.

O melhor destino que uma jovem esquimó pode esperar é casar-se com um caçador jovem e forte, capaz de sustentá-la com os frutos da caça e da pesca. Mas Sedna não se interessava por nenhum pretendente, parecendo esperar por alguém especial.

Um dia apareceu na aldeia um visitante bem apessoado, de aparência sedutora e vestido com belas peles. Prometeu a Sedna que, se ela o aceitasse em casamento, teria sempre uma tenda limpa e confortável, peles macias para dormir e a melhor carne que o Ártico pudesse dar. Disse ainda que garantiria o sustento de seu pai, enviando-lhe periodicamente a caça que a velhice já não lhe permitia obter com a mesma fartura de outrora.

Encantada, Sedna aceitou a proposta e foi levada por seu novo marido para uma ilha distante. Lá, descobriu a dura verdade: o homem que parecia tão bonito e simpático despiu-se do disfarce de peles e mostrou ser um fulmar (ave de rapina do Ártico).

O marido-pássaro era cruel e de péssimo caráter, mantendo Sedna praticamente prisioneira. Dava-lhe para comer apenas restos de peixe cru e, como casa, uma tenda terrivelmente suja e cheia de furos por onde entrava o vento gelado. Sedna chorava todos os dias, e o vento levava seus lamentos para muito longe.

*A traição paterna*

Um dia, ao ouvir os gemidos de Sedna que chegavam com a ventania, seu pai resolveu visitá-la. Desconfiava que algo não andava bem, já que nunca recebera os alimentos que o marido-pássaro um dia prometera. Saiu então, em seu caiaque, remando pelo oceano gelado, em busca da ilha para onde a filha fora levada.

Ao chegar perto, ouviu nitidamente os lamentos de Sedna e apressou as remadas. Chegando lá, encontrou a filha infeliz e maltratada. Como o marido-pássaro estava longe, o pai aproveitou para fugir com Sedna no caiaque, remando rapidamente para a aldeia nativa. Contudo, a viagem era longa. Em dado momento, pai e filha ouviram gritos e ruflar de asas. Era o marido-pássaro que, tendo descoberto a fuga, vinha furioso, seguido por outras aves de rapina, para buscar a esposa de volta.

O pai tentou remar mais rápido, mas de nada adiantou: o marido-pássaro atacou o caiaque com violência e, tocando o mar com a ponta da asa, ordenou que ondas gigantescas se levantassem, tal como nas piores tempestades.

A situação tornou-se desesperadora. Em pânico, o pai de Sedna percebeu que a única forma de salvar a pele seria livrando-se da filha, já que era a ela que o marido-pássaro queria. Então, para surpresa de Sedna, o velho caçador empurrou-a no mar, para que o marido a pegasse.

Todavia Sedna não tinha nenhuma intenção de morrer, nem de voltar para o terrível marido: com toda a força, agarrou-se com as mãos à lateral do caiaque, num esforço para voltar para bordo. O marido-pássaro ficou furioso e invocou novas ondas, ainda maiores.

O pai, cada vez mais desesperado, sacou então seu facão de caça e começou a cortar os dedos de Sedna, num esforço para obrigá-la a soltar o barco. Os dedos decepados da jovem foram caindo ao mar, um a um, e transformando-se nas espécies que até hoje habitam as águas do Ártico. Assim surgiram os peixes, as baleias, as focas, os elefantes-marinhos e os outros animais que servem de alimento para o povo Inuit.

Depois de perder todos os dedos, Sedna não conseguiu mais manter-se agarrada ao caiaque. Lentamente afundou nas águas, enquanto as ondas se acalmavam e seu pai conseguia fugir. Mas Sedna não morreu. Desde então vive nos abismos do oceano profundo, onde se transformou na Deusa dos Mares. A fauna do Ártico é sua companhia constante.

*A reconexão com Sedna nos rituais xamânicos*

Quando os homens atentam contra a natureza, quando se deixam levar pelo ódio e pelos interesses mesquinhos, quando n

ão amam seus semelhantes, o peso dos pecados do povo Inuit chega ao coração de Sedna, que se põe a soluçar.

Solidários, todos os animais do Ártico se postam em torno dela, no fundo do oceano, o que faz faltar comida para os caçadores e pescadores. As ondas se levantam, agitadas, e o vento traz tempestades. Vem então uma época de desolação e fúria dos elementos, trazendo a fome para a comunidade.

Para que as coisas voltem ao normal, faz-se necessário um ritual de purificação. É quando entra em cena a xamã da comunidade (uma mulher sábia e conhecedora dos segredos da natureza) que promove um rito em que todos confessam seus erros, penitenciando-se e fazendo promessas de não mais maltratar a terra em que vivem.

Então, a xamã entra em transe e vai em busca de Sedna no fundo do oceano. Conversa docemente com a deusa, relatando o arrependimento e as promessas de seu povo. Depois desembaraça e penteia os cabelos negros de Sedna, retirando deles com cuidado as algas e os caranguejos.

A deusa das águas vai se acalmando aos poucos e para de chorar. Compadecida com os homens, libera mais uma vez os animais marinhos para que subam à superfície e se ofereçam como alimento.

POR FERNANDO FERNANDSE