quinta-feira, 24 de março de 2022

O PRIMEIRO RELATO SOBRE A UMBANDA Por: Leal de Souza Jornal: A Noite, nº 4.470 Data: 7 de maio de 1924

 O PRIMEIRO RELATO SOBRE A UMBANDA
Por: Leal de Souza Jornal: A Noite, nº 4.470
Data: 7 de maio de 1924


Nenhuma descrição de foto disponível.O Centro Nossa Senhora da Piedade
A falange da rua Laura de Araujo.
Um louco em uma sessão espírita.

Atravessando em procura do arrebalde das Neves, a cidade de Niterói, perguntávamos , no bonde, a quanto passageiro ficava ao alcance de nossa voz:
– Conhece, por ventura , nas Neves, a farmácia do Sr. Zélio?
– Não.
– E o centro espírita Nossa Senhora da Piedade ?
Quase ao termo da viagem, porém, ouvimos, formulada pelo Sr. Eurico Costa, a dupla resposta afirmativa, e, em companhia desse gentil cavalheiro, cujo destino, nessa noite, era o nosso, fomos, primeiro, à farmácia do presidente daquele centro, e, em seguida, com o farmacêutico, à sede da associação procurada.
Varando, por um corredor, filas compactas de gente, conseguimos aproximarmo-nos da mesa mediúnica, ocupando uma cadeira, à esquerda do presidente, ao lado de uma senhorita que vigiava os médiuns, pronta a socorrê-los, ou auxiliá-los, em caso de transe violento. Não conhecíamos uma só das pessoas presentes, e a nossa entrada não foi vista pelo diretor da reunião, Dr José Meirelles, que, no momento, de olhos fechados, fazia uma prece. Apenas ocupamos o lugar designado pelo nosso condutor, ao findar a oração do dirigente, a senhorita Zaira Heintze, num grande pulo, e em transe, tentou levantar-se e sair, mas os seus movimentos eram desordenados e incoerentes. Auxiliou-a a senhorita de vigia, e a médium, atirando a cabeça para trás, sacudia, como um penacho, os cabelos cortados, e batia com as mãos sobre a mesa, e, a babar-se, continuou a bater com as mãos. Nessa incômoda posição permaneceu por mais de meia-hora, discutindo, por vezes, com o Sr. Meirelles. As suas frases, porém, não passavam de repetições pejorativas ou raivosas das do diretor.
– És um espírito infeliz!
– Qual infeliz, seu hipócrita.
Em meio desse combate, entrou em transe o Sr. Zélio de Moraes e, saudado como sendo o Caboclo das Sete Encruzilhadas, Chefe Espiritual do famoso centro, fez, em linguagem enérgica, uma vibrante exortação, suplicando e ordenando a intensificação da fé. O médium, nesse transe, parecia dividido, em seu corpo, em duas partes, pela desconexão de seus movimentos. Tinha ereto e firme o busto, alçada a cabeça, o rosto torneado em desenho vigoroso, os braços agitados em gestos apropriados às expressões de seus lábios, mas da cintura pra baixo, um temor convulsivo, abalando-o, fazia-lhe bater com os pés nas taboas do chão, produzindo um rumor apressado de caixa de guerra em célere ruflo. Surpreendendo o Dr. Meirelles, o médium pediu para apertar-nos as mãos, e, sob olhar espantado da assistência, acercando-nos o Sr. Zélio, ouvimos:
– Pode dizer que apertou a mão de um espírito. A minha esquerda, está uma irmã que entrou aqui como tuberculosa e à minha direita um irmão vindo do hospício. Curou-os, aos dois, Nossa Senhora da Piedade. Pode ouvi-los. Junto ao senhor, naquele canto, está o espírito de uma senhora, que diz ser sua mãe.
– Deve ser engano. Nossa mãe, graças a Deus, vive e goza saúde.
Era a terceira vez que, numa sessão espírita, médiuns em transe acusavam a presença, a nosso lado, de uma senhora que afirmavam eles, dizia ser nossa mãe. O “Caboclo das Sete Encruzilhadas”, porém, bradou:
– Quem é então? Tem de falar! Há de incorporar e dizer quem é. Despertou-se então o Sr. Zélio de Moraes e o Dr. Meirelles recomeçou o seu esquisito debate com a senhorita Zaira. Ao fim de minutos, caíram em transe simultâneo aquele médium e uma moça clara, de bom corpo, vestida com elegância. Esta saltou com fúria e tombou de flanco, batendo rijamente a cabeça no solo, onde, por momentos, ficou estendida. Tornaram-se mais bruscos, então, os movimentos da senhorita Zaira.
Iniciando, com calma, a conversa com o Sr. Meirelles, o médium Zélio, entrou, depois, a queixar-se de violências que lhe estavam fazendo, dizia caboclos e pretos invisíveis para nós, e, acendendo-se em cólera contra a nossa pessoa, chamando-nos “careca”, disse que, com os seus companheiros ali incorporados as duas médiuns, anda a seguir-nos, com o intuito de prejudicar o nosso serviço e a nossa vida, desde que fizemos, nesta reportagem, uma injustiça ao centro da rua Laura de Araujo.
O Dr. Meirelles, começando a compreender quem éramos, convidou a entidade presente a definir a injustiça por nós praticada. A resposta foi que havíamos dito que, naquele centro, o trabalho espírita é remunerado.
– Mas é ou não verdade ?
– Não é !
Arriscamos, então uma frase em nossa defesa , contestando-nos o médium:
– Ninguém é obrigado a dar. Dá quem quer.
– Foi o que noticiamos.
– Mas não devia ter noticiado! - objectou o médium.
– Por quê? O jornalista não cometeu uma injustiça. Disse uma verdade.
– Mas essa verdade prejudicou o Centro fazendo com que muita gente o abandonasse.
A moça clara, de pé, debatia-se em fúria, segura, pelos braços, por dois cavalheiros e a senhorita Zaira protestava:
– O Encruzilhada não é aquele que esteve ali. Sou eu!
O médium em transe, dirigindo-se ao diretor dos trabalhos, considerava:
– Você acha que o espiritismo não pode ser pago. Mas quem não tem emprego, como é que há de fazer espiritismo?
E, continuando, desenvolveu, em favor do centro da rua Laura de Araujo, argumentos semelhantes aos que ouvimos, no Centro José de Araújo, à rua Dr, Bulhões, formulado por um dos dirigentes daquela associação. Dirigiu-se, em seguida, às duas moças, chamando-as, respectivamente, João e Eduardo. Acalmou-se a senhorita Zaira, e a outra, a clara, escapando-se dos braços que a amparavam, caiu sentada na cadeira.
– Bem. Vou-me embora ! Vamos, João!
- Vamos, Eduardo! - convidou o Sr. Zélio.
Ergueram-se as duas moças, mas o Dr. Meirelles declarou:
– É inútil ! Não saireis daqui em estado de perseguir alguém. Escutai-me, e proferiu uma prece comovedora.
– Sou Sofia, disse o Sr. Zélio. Se for para nosso bem, iremos. Se formos enganados, pagarás. Vamos, João. Vamos Eduardo.
Despertaram-se, então, os três médiuns. Pediu concentração o diretor, e o Sr. Zélio, novamente em transe, curvado, numa linguagem deturpada, dizendo ser Pai Antônio, tomou as mãos de um enfermo, e, acompanhado pelos presentes, começou a cantar:

“Dá licença, Pai Antônio,
Eu não venho visitar,
Eu estou bastante doente
Venho pra me curar”.

Findo esse ato, e depois de um transe quase mudo da senhorita Severina de Souza, havendo o guia, como se disse, mandado que se realizasse um trabalho especial em benefício de um louco fugido do hospício e ali presente, declarou-se encerrada a sessão. Retirando-se a assistência, foram afastados os bancos da sala e iniciados os preparativos para o trabalho especial. Só ficaram no recinto os médiuns, o louco, três homens que o acompanhavam e nós. Uma senhorita, com um defumador fumegante, percorreu a sala, envolvendo cada pessoa em ondas de fumaça aromática, e a cantar, acompanhada pelos circunstantes,uma canção cujo estribilho era:

“Quem está de ronda é S. Jorge,
S. Jorge é que está de guarda!”

Entregou o defumador a um cavalheiro, que saiu para fora a agitá-lo, caminhou em duas direções e, voltando fechou a porta.
O Sr. Zélio, assumindo a direção do trabalho, ocupou, ao lado de seu pai, perto da parede, a cabeceira da mesa, ficando um médium. Por detrás do enfermo, “fechando a concentração”, sentaram-se o Dr. Meirelles e uma senhorita, e, formando a terceira fila, os três companheiros do doente, ladeavam a mesa as médiuns Severina de Souza e Maria Isabel Morse, enfrentando a senhorita Zaira e a elegante moça clara. A jovem que empunhara o defumador e nós que ocupamos lugares à esquerda da mesa. Falando ao louco da mesa, disse o Sr. Zélio – Vamos fazer um trabalho para o senhor ficar bom. Pense em Deus. Como os senhor não pode fazer uma ideia de Deus, veja se consegue reproduzir na mente a imagem de Jesus.
Fez, com fervor, três orações; a Deus, a N.S. da Piedade, e ao Caboclo das Sete Encruzilhadas, e, convidando para começar, cantou, acompanhado pelos demais:

“Santo Antônio é ouro fino.
Arria a bandeira.
Vamos começar! ”

O canto, monótono, melancólico, desdobrando-se em toada embaladora parecia acariciar as almas. Não faltava majestade ao ambiente. O louco, de súbito, rompeu numa cantoria de sons inarticulados, e entraram em transe, atuadas, - disseram-nos, por protetores, as médiuns Isabel e Zaira. Esta informou, então, ao Sr. Zélio que, no momento, duas entidades agiam sobre o doente.
– Deixa o aparelho e faz incorporar em um deles. Manda o outro para outra máquina. Conto contigo.
Instantaneamente, recobrou-se e caiu em novo transe a senhorita Zaira. Sacudindo-se, a vociferar, quis deixar a cadeira, mas foi dominada pela senhorita de vigia. Ao mesmo tempo, dando uma ruidosa gargalhada, a moça clara, num pulo, atirava-se de costas no solo, enquanto o louco, asserenando a face, emudecida. Entraram em discussão a senhorita Zaira, que dizia haver sido ” o padre Alfredo, vigário do Méier”, e o Sr. Zélio. Sustentava aquela que perseguir alguém e encaminhá-lo, pelo sofrimento, para o progresso espiritual; e sofria ardente contestação de parte do último. De pronto abriu o presidente “novo ponto” cantando o coro “Santo Antônio é Santo maior”. Erguendo-se a pouco e pouco do chão, a moça clara ocupou a cadeira, e, olhos fechados, encarando Zaira, acusou:
– Mentiste! Nunca praticaste a caridade! Não te acompanho mais! Tu me arrastaste!
Falando aos protetores, pediu ao Sr. Zélio que levassem aqueles irmãos, “para o raio de luz” e o cântico entoado pelo coro reproduzia aos nossos ouvidos uma canção da macumba. Sobre esse coro, cantando a meia voz, em tom arrastado, pairou, por alguns momentos, grave, em tom forte, vibrando, um canto que saia dos lábios de Zaira, e começava:

“Oremos. Glória in excelsis Déo!”

Variou, ainda uma vez, o coro, a senhorita Zaira gritou que iria, mas voltaria; a moça clara, em gemidos lamentosos, implorou perdão, e, as duas, quase tombando, saíram de transe, enquanto todos bradavam:
– Viva Deus
Mas, sem demora, encurvaram-se em novo transe as duas médiuns. Ambas são moças muito gentis, mas, de face subitamente deformadas, com os maxilares avançando, ficaram quase horríveis. Caminhando dobradas em passos arrastados, com a cabeça abatida na linha dos joelhos, percorreram a sala e fizeram passes no louco. Zaira, que descalçara os pés, e, por estar em transe, não havia, em estado consciente, assistido na primeira sessão, ao caso mediúnico relativo à rua Laura de Araujo, agora, na segunda, conversando conosco, fazia referências aos três espíritos então reputados presentes. Tornadas as duas médiuns ao estado de vigília, o Sr. Zélio perguntou ao louco se estava melhor.
– Estou bem, respondeu ele serenamente.
– Bem. Vamos encerrar, disse o presidente, e o coro rompeu:

“Santo Antônio é ouro fino,
Suspende a bandeira,
Vamos encerrar”.

LEAL DE SOUZA