sábado, 17 de dezembro de 2022

Houve um tempo em que os deuses achavam que o fogo era muito perigoso para ser usado pela humanidade. Naquela época, os rom jal a drom (peregrinavam pelas estradas).

 Houve um tempo em que os deuses achavam que o fogo era muito perigoso para ser usado pela humanidade.  Naquela época, os rom jal a drom (peregrinavam pelas estradas). 

You are currently viewing A busca pelo fogo – Ciganos

A busca pelo fogo – Ciganos

Houve um tempo em que os deuses achavam que o fogo era muito perigoso para ser usado pela humanidade.  Naquela época, os rom jal a drom (peregrinavam pelas estradas).  E, se viajavam felizes por todo o verão, quando chegava o inverno, eles quase morriam de frio.

Um belo dia, uma tribo de ciganos aproveitava despreocupadamente o calor do fim da jornada, espreguiçando-se sobre algumas pedras próximas do atchin’tan. O contentamento da puridai (mãe tribal) com o brilho do Sol era tanto, que, de repente, ela falou:

— Se eu pudesse ter, nem que fosse um só pedaço desse Sol, não haveria quem ficasse sem se aquecer pelo ano inteiro!

Ao ouvir as palavras da velha puridai, o jovem Bokka, que era o filho mais novo de quem fazia as rodas dos vardos, logo retrucou:

— Deixa comigo, pois vou procurar os deuses e pedirei para que eles me dêem um pedacinho do Sol!

Embora os seus prals (irmãos) mais velhos tivessem iniciado um deboche geral em cima dele, a velha puridai deu o seu assentimento ao desejo do rapaz, completando-o assim:

— Isto seria ótimo!

O jovem Bokka pegou imediatamente com sua mãe alguns suprimentos e partiu em sua jornada.  Atravessou montanhas e vales, cruzou grandes rios e pequenos regatos, desbravou densas florestas, e percorreu extensos campos, até chegar o dia, quando estava passando por um velho celeiro de uma fazenda, em que escutou subitamente uma voz a lhe chamar bem baixinho:

— Por favor, meu bom rapaz, me ajude!

Bokka estancou seus passos e olhou para dentro do celeiro, local de onde vinha aquela voz.  A construção estava abarrotada, pois ali o fazendeiro estocava seus cereais.  Então, ao se aproximar, ele pôde ver um grande número de armadilhas.  E, aprisionado em uma delas, deparou-se com um enorme rato preto.

— Foi você que me chamou? — indagou Bokka.

O rato mexeu afirmativamente a cabeça, e disse:

— Esta armadilha do fazendeiro me pegou. — E seguiu dizendo: — Por ser um romani, você deve saber muito bem o que significa a liberdade.  Por isso lhe pergunto: você gostaria de ficar preso numa armadilha?

— É claro que não!  Mas desde logo vou lhe dizendo que dificilmente eu seria preso — contestou o rapaz.

Em seguida, Bokka deu uma olhada na pilha gigantesca de grãos e cereais, e inquiriu o rato:

— Quer dizer que você estava pegando os grãos do fazendeiro, hein!?

Mas a criaturinha deu prontamente sua resposta:

— Você não está vendo que neste celeiro tem grãos para dar e vender? Sem falar nas sementes que na verdade pertencem a toda gente, porque, afinal, não foram os deuses que nos deram tudo isso de presente?  Penso, portanto, que o fazendeiro não tem o direito de me privar da pequena parte que me cabe.

O jovem cigano ficou pensativo por alguns instantes, até que deu sua anuência às palavras do rato e, ato contínuo, desarmou rapidamente a armadilha e soltou o animal.

— Muito obrigado, meu gentil rom.  Meu nome é Yag, e saiba que serei eternamente grato a você.  Deixe-me então que o acompanhe, empoleirado no seu ombro, porque talvez eu possa ajudá-lo de alguma maneira na sua jornada.

Bokka o pôs sobre o ombro, e daí os dois prosseguiram  felizes pelo caminho.  Depois de um certo tempo pela estrada, por gostar demais de uma boa conversa, ele começou a explicar para o rato o motivo pelo qual viajava.  E confidenciou-lhe a sua tentativa de encontrar os deuses para pedir um pedacinho do Sol. Enquanto o escutava, Yag ia pensando com seus botões que aquele moço precisaria mesmo da sua ajuda.

Assim foram caminhando até que chegaram ao atchin’tan dos deuses, já com a noite avançada.  De mansinho, Bokka foi espiando tudo aquilo que podia ver por lá.  Os vardos coloridos e brilhantes formavam um círculo no meio de uma enorme clareira da floresta.  E os deuses se reuniam com muita comida, bebida, risos e lindas canções.  De repente, o rapaz se deparou com um pedaço do Sol no meio do círculo, deixando-lhe deslumbrado por toda aquela irradiação de luz e calor sobre o solo.  Para completar o seu êxtase, os deuses haviam colocado sobre o fogo uma panela com água que já borbulhava e mais vários sushis (coelhos) e hotchiwitchis (porcos-espinhos) espetados numa estaca, que cozinhavam lentamente sobre o calor.

Ao sentir o indescritível aroma daquela comida, o cigano ficou com a boca cheia d’água e, mesmo escondido atrás das árvores, sentia no seu corpo o aconchegante calor que vinha daquele pedacinho de sol.

Não contendo a sua ansiedade, Bokka dirigiu-se ao seu novo amigo nestes termos:

— Não tenho outro jeito senão pedir aos deuses um pedaço do Sol para levar à minha tribo.

Yag sorriu, e disse:

— Você enlouqueceu, eles não vão lhe dar coisa alguma!

— Mas você não vê que o Sol é como as sementes, os cereais, as nozes e os frutos das árvores? Por isso ele pertence a todo mundo! — foi a réplica do moço.

— Então, por que é que você não vai lá pegar um pedaço do Sol? — rebateu o rato.

Nesse instante, Bokka ficou amuado, sem qualquer reação ao estímulo de Yag.

—Bem, eu acho que não vai doer nada, se você for até eles para fazer o seu pedido — prosseguiu o rato, fitando o jovem cigano que a essa altura já estava começando a ficar deprimido.

Tão logo ouviu essas palavras, Bokka se encheu de coragem e saiu correndo na direção do acampamento dos deuses, que se surpreenderam com aquela visita inesperada.

— É imenso o meu prazer em conhecê-los, ó poderosas criaturas! — disse ele com voz empostada e a cabeça inclinada em sinal de reverência.  — Estou aqui para lhes pedir um pedaço de Sol, pois quero levá-lo de presente para a minha tribo.  E isso porque o meu povo está sofrendo com o frio, e o seu maior desejo é ter um pouco desse calor para que aqueça o seu acampamento.

Foi nesse momento que a velha puridai dos deuses, uma anciã muito sábia que já tinha vivido algumas centenas de anos, falou para ele:

— Dou-lhe toda a liberdade para comer e beber conosco, mas, quando você for embora, não poderá levar, de jeito nenhum, qualquer coisa nossa.

Bokka, que estava morrendo de fome porque quase não tinha comido durante a jornada, não se fez de rogado e comeu todos aqueles quitutes, que pouco antes lhe deixaram de água na boca.  E Yag, por sua vez, deu um pulo assanhado no ombro do amigo para também se deliciar com algumas raízes e legumes, enquanto os deuses observavam os dois com um silêncio divertido.

Depois de muito comer e beber, o rapaz deu mais uma investida com seus olhinhos cheios de esperança:

— Vocês têm certeza de que não posso levar um pedaço do Sol comigo?

E mais uma vez a anciã replicou:

— Certeza absoluta, meu bom rapaz!

Foi o bastante para que Bokka, com tristeza, se despedisse dos deuses, saindo cabisbaixo do local.  Diante do ar melancólico do amigo, Yag correu até a fogueira e se apossou de um talo de erva-doce em brasas.  Ao verem aquele ratinho carregando um talo da planta, os deuses soltaram muitas gargalhadas e disseram para o cigano:

— Pelo jeito, o seu amiguinho ainda deve estar com muita fome.  Por isso permitiremos que ele vá embora com o talo.

Logo que se viu sozinho de volta à mata, e longe dos olhares dos deuses, Bokka deixou que uma lágrima rolasse na sua face.  E não era para menos, já que o sentimento que o dominava era o de ter falhado.  Ainda mais porque, depois de partir com tantas esperanças, ele acabara de ver todas elas desmoronando.

Sem falar na zombaria que teria que suportar dos seus irmãos mais velhos quando retornasse à tribo.

Foram necessários muitos dias para que ele chegasse à sua tribo, e se visse face a face com aquele círculo de vardos e todos os rostos familiares dos amigos e parentes.  Nesse instante, o tristonho rapaz respirou fundo, uma vez que havia chegado a hora de falar com todos e admitir o seu fracasso.

Entretanto, no momento em que já estava quase preparado para enfrentar a situação, ele ouviu uma voz lhe chamando baixinho:

— Ei, aqui! Dá isso pra eles!

— Dá o que pra eles? Hein…então é você, meu amigo!? — foi a reação de um Bokka surpreso, por ter visto o companheiro que desaparecera depois da despedida no acampamento dos deuses.

— Vamos parar com a conversa fiada e faz logo o que eu lhe disse! — replicou Yag.

Somente nessa hora, Bokka percebeu que o rato lhe ofereceu o talo de erva-doce que ainda ardia.  Ele o agarrou com rapidez e correu para chamar os pais, irmãos, a puridai e todos os outros membros da tribo, que aguardavam a sua chegada.

— Olhem aqui o que eu tenho! — gritava o jovem cigano, segurando o talo com firmeza.  E não houve quem deixasse de fitar admirado aquele talo que soltava uma fumaça cinza-azulada de sua extremidade.  A essa altura, é preciso que se diga que a erva-doce, como também o sabugueiro, têm nos seus núcleos uma substância que sustenta a brasa e que por isso, quando são abanados, produzem uma pequena chama muito vívida e parecida com o Sol.

Pois bem, o restante da tribo logo providenciou para que o talo de erva-doce ficasse no meio de uma pilha de gravetos, e então cada um deles se incumbiu de soprar o pequeno ponto de onde saía a fumaça.  Em pouco tempo, aquele monte de madeira já ardia como um Sol no centro do acampamento, observado pelos olhares extasiados dos ciganos.

Contentíssimo por ter dado à sua tribo um pedaço do Sol, Bokka seguiu na direção do rato e lhe perguntou:

— Como poderei agradecer-lhe, meu bom amigo?

— Isso foi em troca do que você fez por mim no celeiro — respondeu Yag.

Dizem que, a partir desse dia, o termo yag foi escolhido pelos rom para expressar o fogo, e que além disso aquele ratinho, que se chamava Yag, foi depois proclamado o Rei dos Ratos.

No solstício de verão, que é conhecido como Shanti, as tribos ciganas têm o costume de erguer uma fogueira especial.  Na véspera desse evento — intitulado “A Noite do Solstício” —, todos os ciganos se entregam à meditação e à escuridão, e sem que ninguém acenda um único foco de fogo, justamente para recordar aqueles dias em que ainda não havia fogo, aquecimento, conforto nem qualquer modo para cozinhar os alimentos.  Nessa noite, tudo ao redor fica em silêncio e quietude.  Não se canta nem se festeja.  E as horas adentram pela madrugada até que, no primeiro raio de luz da manhã seguinte, o rei cigano acende a fogueira.  Um menino retira dela um feixe em brasas e vai, de vardo em vardo, acendendo o fogo das lareiras.

Depois é servido um maravilhoso café da manhã, repleto de bolos, pães, doces, mel, leite, cereais e chás aromáticos.  E, a partir desse momento, os ciganos se dedicam à dança, à música e a todas as alegrias de uma grande celebração.

—————————————————————————–

do livro Magia e Feitiçaria dos Ciganos de Raymond Buckland – editora Bertrand Brasil