A RECONCILIAÇÃO
(O filho que retorna para o pai, na mesma existência)
Texto longo mas um grande aprenduzado
Psicografado por Vera Lúcia Marinsek de Carvalho.
PELO ESPÍRITO RAUL:
O POÇO
Acordei com um torpor estranho. Por uns instantes não sabia onde estava, tudo parecia confuso. Os últimos acontecimentos desorientaram-me. Fui tomando consciência aos poucos. Com muito esforço comecei a abrir os olhos e tentei ver onde eu estava. No alto, vi a luz, a claridade do Sol. Tentei mover-me, não consegui, senti dores agudas, doía-me todo o corpo. Só consegui mover os olhos, mas a claridade do alto tonteava-me.
Lembrei-me então do poço. Estava dentro dele! Conhecia-o bem, costumava brincar sempre perto dali, com meus amigos. Era um seco e velho poço abandonado. Deveria ter uns cinco metros de profundidade e não era estreito, tendo uns dois metros de diâmetro. Agora, dentro dele, parecia-me muito mais fundo e assustador. Com muito esforço, devagarzinho, consegui virar a cabeça um pouquinho para o lado direito, aumentando a dor que sentia, e então a vi. Mamãe ali estava, caí em cima dela, o seu corpo amortizara minha queda! Vi-a do busto para cima, estava toda suja de sangue, imóvel e com os olhos fechados. Vendo-a, além das dores horríveis, senti medo e desespero. Concentrei-me, reuni todas as minhas forças e consegui sussurrar:
"- Mãe..." - Ela não se mexeu. "- Deve estar desmaiada" - pensei. "- Quando acordar me ajudará."
Não me mexi mais, preferi ficar olhando para ela, dava-me mais segurança. Agora, com a cabeça mais virada, não vi mais a boca do poço, e sim as paredes de terra e pedra, e minha mãe, que não se mexia, demorando para acordar do desmaio.
"- Nos momentos difíceis, ore!" - Parecia-me escutar minha avó. Vovó Margarida sempre me dizia isso. Lembrei-me dela, recordei com perfeição como era ela. Senti mais saudade ainda; senti falta do seu carinho, do seu jeito meigo de consolar-me quando me doía algo. Meus pensamentos estavam descoordenados, tinha dificuldade de me concentrar para repetir as orações que decorara. As dores eram contínuas e fortes; sentia o suor molhar-me e deveria estar também ensangüentado, como minha mãe. Abri os olhos e olhei-a, era tão bonita! Agora estava esquisita, os cabelos soltos em desordem, toda suja e não se mexia. Era de tarde, logo viria a noite, ficaria escuro e seria bem pior. Esfriaria e à noite ninguém passaria por ali; e ainda mais olhar para o poço. Se ao menos pudesse gritar! Sentia que estava em cima do corpo de mamãe e não notava nela nenhum movimento.
O CRIME
Mamãe 'caiu' primeiro! Vi quando papai a pegou, enfiou a faca no seu peito e depois a jogou dentro do poço. Fiquei olhando assustado, não entendi, não queria acreditar. Quis gritar, não consegui, fiquei parado. Papai olhou para mim, estremeci de medo. Veio em minha direção, tentei escapar, comecei a correr, mas logo me alcançou. Segurou-me com força pelo braço, arrastou-me alguns metros, levando-me para perto do poço.
"- É preciso!" - falou forte e baixo. "- Você também!"
Quis gritar, mas de novo não consegui. Estava horrorizado! Vi-o erguer a outra mão, sua direita, e a faca veio em minha direção. Aflito, desesperei-me para escapar, mas sua mão, que parecia uma garra de ferro, não me largou. Errou o alvo! A faca feriu-me o ombro esquerdo em lugar do coração. Que dor horrível..! Uma dor aguda que me tonteou. Senti quando retirou a faca, erguendo-me pela cintura. Eu quis fazer algo, gritar, soltar-me, não consegui, e então me jogou no poço. Senti-me cair, desmaiei na queda, devo ter ficado alguns minutos inconsciente. Uma estranha fraqueza foi se apoderando de mim, parecia que tudo rodava. Meus pensamentos vinham independente de minha vontade. Fatos acontecidos comigo invadiam minha memória. Recordava minha infância (ainda estava nela), ia completar 12 anos no mês que vem. Sempre pensei que não tinha muito o que contar de minha vida, e agora lembrava de tantos fatos e com tantos detalhes que pensara ter esquecido.
Recordava-os como se os vivesse! A fisionomia de minha avó enchia-me a mente, amava-a muito. Foi ela a pessoa que mais carinho e amor me dera. Morei com ela até meus oito anos. Foi ela quem me criou, ensinou-me a orar... Era tão boa, tão meiga e tão querida por todos que a conheciam. Enquanto morei com ela fui muito feliz. Raramente ia à casa dos meus pais e só recebíamos visitas da mamãe e das minhas irmãs. Eu era o mais velho, depois vinham Taís e Telma, que moraram sempre com meus pais. Vovó morreu de repente! Não entendia bem o que significava "morrer". Senti que nos separávamos e que minha felicidade acabara! Fui morar com meus pais.
A fazenda da Vovó ficava perto da cidade, onde residiam meus pais e foi vendida, depois que vovó se foi. Fiquei muito triste por ter de deixar a fazenda para ir morar com meus pais. Fui assustado, meu coração saltava no peito. A casa era grande e boa e a cidade, pequena, onde todos se conheciam. Meu pai tinha um armazém não longe de casa, perto da igreja. Mamãe era bonita e delicada, seus olhos grandes e azuis estavam sempre tristes. Taís e Telma eram uns amores, quietas, delicadas, obedientes. Morava conosco também Maria, a empregada que chamávamos de Pretinha, por ser de cor negra, bem negra, e miúda. Gostei dela logo que a vi, era muito amiga de mamãe e ambas trabalhavam muito.
Logo percebi que meu pai não gostava de mim. Quando ele chegava em casa, Taís e Telma corriam para abraçá-la e ele mimava-as, pegava-as no colo, ria para elas. Eu não ousava me aproximar, ficava olhando. Ele não me dirigia a palavra; ignorava-me, parecia que não gostava nem de me ver. Comecei a ter medo dele; parecia que eu o irritava. E passou a me xingar, a surrar-me por qualquer motivo e, até mesmo, sem motivo. Não entendia, não conseguia entender por que ele procedia assim. Mamãe, carinhosamente, tentava explicar-me que "ele está cansado, trabalha muito... que isso passa..." Fiquei triste, mas tratei de obedecer à mamãe. Às vezes ficava pensando sobre "o por quê de ele ficar nervoso só comigo?"
Agora eu indagava: "Por quê? Por quê???" Não entendia, não conseguia entender. Pensando nele, não sentia raiva. Parecia-me que ele tinha motivos para fazer o que fez. Nem medo dele eu tinha mais, e não sentia nem um pouco de ódio.
O SOCORRO
Senti-me mais tonto ainda! Estava estranho, as dores suavizavam e um frio invadiu-me. Pensei nele; lembrei com detalhes o rosto de meu pai, sua expressão ao me segurar. Odiava-me e eu não sabia o porquê. "Tentou" matar-nos, ferindo-nos tanto! E eu, ainda assim, o perdoava, perdoava de coração:
"- Perdôo-lhe, papai !" - disse em prece "- Perdôo-lhe e não vou querer mal ao senhor, não vou!"
Pararam as lembranças por uns instantes. Fiquei como que 'vazio'.
"- Venha, querido, dê-me sua mão!"
Pareceu-me ser a voz de minha avó. Quis obedecer, esforcei-me e ergui a mão, com mais facilidade do que pensava poder fazer.
Virei a cabeça, já sem esforço, para cima e a vi. Vovó estava sorrindo ao meu lado, segurava uma das minhas mãos que estendi. Senti-me tonto, com a sensação de que ficara leve de repente e que me erguera do chão, do fundo do poço. Olhei para baixo, percebi que estava de pé e deitado também, ao mesmo tempo. Vi-me com nitidez: virado, todo sujo de sangue e imóvel.
"- Não olhe para baixo, venha para meus braços!"
Vi então que, com minha avó, estavam mais duas pessoas que não conhecia. Parecia que elas me soltavam de alguma coisa, e esta 'coisa' parecia ser eu mesmo, meu corpo. Olhei com muito amor para vovó, era bom demais tê-la comigo, nessa hora em que eu sofria e precisava de carinho e proteção.
"- Vovó! É a senhora mesmo?" - falei com facilidade. "- Incrível !!! Não sinto mais dores, veio ajudar-me? A senhora não tinha morrido?"
"- Ninguém acaba no mundo, só porque teve seu corpo morto. Quando amamos, estamos sempre juntos! E eu amo você. Tem medo?"
"- Não, senhora, nunca iria ter medo da minha avozinha!"
"- Venha comigo! De agora em diante, não terá mais dores! Venha para os meus braços!"
Fui sem medo, amava demais minha avó! Lembrei-me então de mamãe, que também carecia de socorro. Olhei para baixo e ela estava do mesmo modo, como 'eu' também. Nós 'dois', imóveis, quietos, machucados.
"- Sou 'dois' agora, vovó?" - indaguei.
"- Não, Raul, você é um só. Você é este que 'sente', que conversa comigo, que está nos meus braços. O 'outro', que está imóvel, é só o seu corpo. Não se assuste, meu neto. Uma nova vida começa para você. Não quer ficar comigo?"
"- Sim, quero! O que mais quero é morar com a senhora novamente!"
"- Sabe, eu 'morri' para o mundo físico e material. Agora eu moro em outro lugar!"
"- Não faz mal, 'se eu morri'. Eu quero é estar com a senhora!"
"- Vou carregá-lo, vamos sair do poço."
"- E mamãe? Vem conosco? A senhora e seus amigos vão tirá-la do poço?"
"- Raul, sua mãe virá mais tarde! Não se preocupe com ela."
Não me preocupei. Sempre confiei em vovó, senti-me bem, acomodei-me nos seus braços carinhosos e um suave sono invadiu-me. Adormeci profundamente...!
NO MUNDO DOS ESPÍRITOS
Acordei bem disposto, espreguicei, sentindo-me muito bem! Depois olhei para os lados procurando por Pretinha. Pensei estar acordando no meu quarto. Mas era um quarto grande com várias camas, lugar claro, agradável. Respirei fundo, senti-me leve e disposto. Olhei pelo quarto todo, não conhecia aquele lugar! Olhei-me, não estava com minhas roupas e sim com uma de dormir, limpa e perfumada. Apalpei-me, estava como sempre, sem nenhum machucado. Lembrei-me do poço, dos acontecimentos.., de mamãe, senti medo. Vovó entrou no quarto:
"- Raul, meu querido!"
"- Vovó, avozinha!"
Abraçamo-nos, beijamo-nos.
"- Raul, meu neto, estaremos sempre juntos agora!"
O medo passou, sentei-me na cama e perguntei:
"- Estamos no céu, vovó? Mora aqui? Quem são seus amigos? Conhece o anjo Gabriel? Gostaria de vê-lo, acho-o tão lindo!"
Vovó sorriu.
"- Saberá de tudo aos poucos, meu neto. O céu como pensa não existe! Aqui é uma das moradas espirituais, linda e acolhedora. 'Anjos' são espíritos bons, que trabalham em ajuda à todos. Mas como se sente?"
Pulei da cama, sentia-me muito feliz com a presença de vovó. Não senti medo ou receio, ainda mais sabendo que agora eu ficaria com ela. Mas lembrei-me de mamãe, se estava 'viva' no corpo, deveria estar machucada. Ou, se estava 'morta', deveria estar também ali.
"- Vovó, e mamãe? Não está aqui? Foi mais ferida, caiu primeiro. Ainda está lá? Está sozinha?"
Vovó entristeceu-se por instantes, voltando a sorrir em seguida:
"- Ninguém está sozinho! Estarei sempre que possível com minha filha! Não se aflija, por favor. Deus é bom demais, Manuela ficará boa!"
Voltei a dormir, novamente. Mais tarde, acordei com Vovó me chamando e daí, me levou para a sua casa, pois eu estava no Hospital da Colônia. Ela foi me mostrando tudo pelo caminho. Ao mesmo tempo, foi me orientando, sobre "estar desencarnado". Foi com muita tristeza que eu fiquei sabendo, por ela, que mamãe não quis ser socorrida, porque desejava vingança contra meu pai. Vagava nas redondezas e julgava-se "viva"!
As novidades do "novo mundo" me encantaram: ruas limpas, planas, largas, arborizadas e com muitos jardins. Casas e muitos prédios, formando uma cidade, com pessoas simpáticas por toda parte. A casa da vovó era simples, mas confortável. Morava com outras quatro senhoras, que rapidamente me entrosaram.
O EDUCANDÁRIO
Fiquei sabendo que "adultos" trabalham e "crianças e jovens" estudam (semelhante à vida na Terra). No dia seguinte e, logo cedo, fui conhecer a escola com vovó. Andamos pelas avenidas, onde as pessoas nos cumprimentavam contentes. Ela me levaria e, depois, iria para o seu trabalho. Me pegaria no final do dia. Isso apenas hoje! Depois eu faria o trajeto sozinho.
Chegamos rapidamente ao "Educandário". Assim era chamada a escola de jovens e crianças. O prédio, muito grande, era rodeado de jardins floridos e parques com brinquedos espalhados.
Havia também alguns animais: cães dóceis, gatos, coelhos, esquilos e pássaros que pousavam "na gente", como se adestrados! Do lado direito, estão as classes dos jovens e, do outro lado, as das crianças. Há também berçários e muitos professores.
Fui designado para uma turma de 20 meninos, mais ou menos da minha idade, e todos com desencarnações 'incomuns'.
O professor era um só: Eugênio. Vim a saber, bem mais tarde, que ele é de "esferas Superiores" e que vinha à esta Colônia somente para esse propósito. Aos poucos, percebi que o professor Eugênio, além de bom orientador, ajudava cada um dos alunos, em seus dramas. Inicialmente, eu quis manter segredo, de eu ser assassinado pelo meu próprio pai. Mas vi que os outros colegas, tinham situações parecidas ou piores do que a minha. Entrosaram-me rapidamente e assim, passei a participar dos muitos aprendizados.
SALVANDO MAMÃE
De vez em quando, ouvia minha mãe me chamar e chorar. Na seqüência, lembrava-me que ela estava vagando e com as conseqüências dàqueles acontecimentos. E isso me perturbava muito. O professor Eugênio logo percebeu isso e tratou, com muito carinho e atenção, de me ajudar. Nesse momento, eu já estava melhor esclarecido da "vida espiritual". E ele fez questão de acompanhá-lo, numa tentativa de resgate, mas tendo em vista o livre arbítrio de minha mãe. Com muita alegria e esperançoso, no dia marcado, volitamos. Assim, eu vi a Colônia do alto, bem maior do que eu sabia. Chegamos à Terra e logo vimos minha mãe, sentada na sombra de uma árvore e com o mesmo aspecto, de quando a vi, meses atrás.
Eu queria que ela me visse e, sabendo que estou bem, perdoaria papai, para que ela pudesse vir conosco. O professor ensinou-me a baixar a vibração para tornar-me visível. Mas não deu certo! Quando ela me viu, julgou-me ser um falso "fantasma". Então o professor Eugênio inverteu e, ficando ele visível e plasmando a aparência de lavrador pobre, conseguiu falar com ela.
Desabafando, ela contou sua história, que eu não sabia: "- Quando jovem, namorei com Manuel e prometemos nos casar. Mas numa visita à uma parente doente, ao regressar, fui atacada por um homem e violentada. O meu pai, junto com dois empregados armados, caçaram o agressor e o mataram. Por ser "honesto", chamou Manuel e contou-lhe tudo. Mas também ofereceu uma boa quantia em dinheiro, para manter o futuro casamento. Aceitou e em dois meses estávamos casados. Nove meses depois, Raul nasceu. A partir daí ele mudou. Dizia que ele não era seu filho. Mas eu revidava: "existe nascimentos com sete meses e não com onze". Depois vieram as meninas e ele se afastou mais. Envolveu-se com a filha de uma nova família da cidade, mais jovem e com posses. Por isso, tratou de se "livrar" de quem não gostava. Na cidade, havia um "louco" que perambulava e este inocente, foi acusado e preso pelos crimes de Manuel."
Após a narrativa, mamãe chorou e o professor Eugênio, deu-lhe um passe para adormecê-la. Estávamos na escada externa, da porta dos fundos. Ao lado, havia uma entrada para o porão, onde tinha uma cama velha de solteiro. O professor Eugênio a colocou ali.
Enquanto isso, fomos visitar o Louco, na pequena cadeia da cidade. O professor deu-lhe um passe para adormecê-lo e, juntamente com ele, lemos suas lembranças:
Em 1610, na Europa, como um imponente comandante, atropelou com seu cavalo, acidentalmente, o filho de seu general, sendo flagrado pela mãe do menino, juntamente com a irmã, de apenas quatro anos. Instintivamente, José Felipe (o Louco hoje), fez "calarem-se", esfaqueando as duas e, mais tarde, botando a culpa em outro 'demente', que vagava. Nunca foi descoberto nem preso.
"- Paga, nesta existência, o que não foi possível na outra!" - concluiu Eugênio.
O PERDÃO
Já passava da meia-noite e mamãe dormia do mesmo modo que a deixamos. O professor deu-lhe um passe. Ela acordou, vendo apenas Eugênio, como "lavrador".
Nisso, passou meu pai em espírito, desligado pelo sono físico, embaixo da escada. Estava tranqüilo, parecia que passeava. Mamãe escondeu-se no vão da escada de novo:
"- É ele! Não quero que me veja. Tenho medo!"
"- Como quer se vingar dele, se tem medo?"
"- Ele matou e pode matar de novo!"
"- Está morta, então?"
"- Não sei, é tão confuso! Primeiro sinto a presença de minha mãe, que morreu há tanto tempo. Depois, vi meu Raul, o meu filhinho querido que morreu. Aqui, ninguém fala comigo, parece até que nem me vêem. Mas o senhor me vê, não é? Fala comigo..?"
"- Sim, vejo-a e falo com a senhora! Somos iguais, observe bem. Contudo, não somos iguais à Pretinha ou à Taís e à Telma. Há diferenças!"
Mamãe ficou pensando por uns instantes, encolheu-se no seu canto:
"- Você é morto?"
"- Meu corpo morreu há tempos! Sou vivo, somos eternos. O espírito continua a viver sem o corpo físico!"
"- Eu também morri?"
"- Contudo, está falando, sofrendo e chorando. Está 'viva' pelo espírito. Seu corpo morreu ao cair no poço e não se deu conta disso, pelo ódio que sentia."
"- Ohhh! Como é ruim morrer!"
"- Ter o corpo morto não é ruim! Ruim é ter sentimentos de ódio, rancor e vícios como companhia."
Mamãe chorou. E o professor continuou:
"- Manuela, você não se recorda dos ensinos de Jesus? Ele nos disse que, o que pedirmos com fé, receberemos. O que quer você, filha?"
"- Já que morri e meu filhinho também, queria estar com ele!"
"- Raul perdoou e esqueceu todo o mal que o pai lhe fez. Se quiser estar com ele, deve fazer isso também!"
"- Perdoar.., não sei. Manuel foi tão cruel conosco! Ajude-me, senhor! Se eu não castigar Manuel ele ficará impune? Acho que ele deve receber um castigo, não tanto por mim, mais pelo meu Raul."
"- Dona Manuela, somos donos dos nossos atos. O sofrimento virá para seu esposo, fazendo com que se arrependa, mas não cabe à senhora castigá-lo. Se não perdoa, pensando no Raul, está equivocada! Raul está bem, é feliz, porque perdoou e não quer mal algum ao pai."
Emocionado, vi mamãe ajoelhar-se! Olhou para o céu, coberto de estrelas, uniu as mãos, falou alto e compassado. Desta vez, com seqüência e com sentimento:
"- Oh, Jesus! Oh, meu Pai Celeste! Se morri, quero ir para o lugar aonde vão os 'mortos'. Quero estar com meu filhinho. Perdoa meus erros! Eu perdôo ao meu marido, perdôo e quero ser perdoada. Não quero mais vingança! Pai Nosso que estais no céu..."
Orou o Pai-Nosso soluçando baixinho.
Quando terminou, o professor estendeu as mãos sobre ela:
"- Filha, sincero e justo é seu pedido, ajudá-la-ei. Fique calma, descanse e durma. Levarei você até ele, seu filhinho. Quando acordar, estará com ele."
Mamãe, cansada, adormeceu tranqüila, ainda de joelhos, apoiada nele, meu mestre e amigo. E ele a pegou como se fosse um simples bebê.
"- Vamos, Raul, apóie-se em mim e voltemos à Colônia."
Lá, o professor deixou mamãe no Hospital, onde ficaria numa enfermaria para se recuperar.
"- Raul." - disse-me o professor - "Voltemos aos nossos afazeres: eu com minhas aulas, você com seus estudos. Manuela dormirá por algum tempo, se recuperando. Seus ferimentos sararam e, quando estiver para acordar, avisarão você e dona Margarida para estarem com ela. Agora vá para casa, vá descansar e contar à sua avó do êxito de nossa ajuda. Tenho de ir, até logo!"
Reconheci instintivamente, naquele momento, que o professor Eugênio é, verdadeiramente, de Planos Elevados. E certamente era para Lá que ele iria agora!
AS CAUSAS DO EFEITO
Algum tempo se passara, tudo voltou ao normal. Vovó com seu trabalho e eu atento, cada vez mais, interessado nos meus estudos. Visitava mamãe por instantes. Algumas vezes ela dormia, no começo um tanto agitada, depois foi se acalmando e, com o tratamento que recebia, seus ferimentos sumiram. Ela ficaria algum tempo internada.
Eu já estava ciente da Lei de Causa e Efeito, através dos estudos e ouvindo vários relatos dos colegas do Educandário. Aos poucos, vinham-me "flashs" de meu passado e eu não conseguia esquecer de meu pai. Passei a acreditar que "tudo" foi conseqüência de um passado, que ainda não conseguia recordar por inteiro. Pedi ao professor Eugênio que me ajudasse a recordar. Foi marcado então, um atendimento no Departamento de Reencarnação, com o Dr Saulle, médico e psiquiatra, e que fui acompanhado pelo prof. Eugênio. Lá, fui deitado num divã, com uma tela de vídeo, de uns 20 cm de diâmetro, onde seriam projetadas as recordações do meu passado.
De fato, havia sentido!
Estivemos eu, Manuel (papai) e Manuela (mamãe), juntos por pelo menos três encarnações, e sempre envolvidos pelo ódio. Éramos um triângulo amoroso! Manuela sempre frívola, fazia eu e Manuel disputá-la, até a morte. Na primeira das três existências, ele me matou, mas sem intenção, por causa dela. Então eu obsediei os dois até desencarnarem. Na segunda encarnação, sendo ele meu irmão, planejei e matei-o friamente, tomando Manuela para mim, mas abandonando ela depois. Fui perseguido por ele, durante toda essa vida, e depois por ela, quando desencarnou doente. E por duas vezes, após desencarnarmos, passamos anos no Umbral, um lutando contra o outro! Nesta última existência, houve reconciliação entre eu e Manuela, através do amor puro, sendo ela a minha mãe.
Após essa "sessão", ficou claro que faltava papai (Manuel) ser reconciliado. Se não fosse através do perdão, teria de ser pelo amor, para que fosse quebrado esse ciclo de ódio. Então eu passei a desejar voltar para papai, que ainda estava com 37 anos e estava quase casado com Margareth, o motivo de "tudo". Porém, ela não tinha culpa de nada! Sendo filho deles, teria uma chance de ele me amar e, assim, haveria reconciliação total.
O professor Eugênio me disse que recém desencarnados, como eu, dificilmente conseguiria autorização, e ainda mais nesses termos. Mas faria o pedido em meu nome e "advogaria" à meu favor, mesmo assim.
Uma semana depois, deu-me a notícia:
"- Raul, seu pedido foi atendido! Deve acompanhar-me, logo após a aula, ao Departamento das Reencarnações".
Então fomos lá, e logo o professor Eugênio localizou a pessoa que nos atenderia. Fomos apresentados à Mariana, alegre e simpática, que me disse:
"- Raul, analisamos seu pedido e pergunto-lhe: é realmente o que quer?"
"- Sim, é o que quero!"
"- Muito bem, dentro de três meses volta à Terra, como único filho varão do casal Manuel e Margareth. O casal terá outra filha, é um espírito doente, internado em nossas enfermarias. Sua irmãzinha não será perfeita, errou muito e destruiu um corpo perfeito (suicídio); agora, volta para harmonizar-se e reconciliar-se com sua futura mãe carnal. Raul, deve saber também que reencarna para um objetivo: reconciliar-se com seu pai. Estará
encarnado por poucos anos, devendo voltar logo, na adolescência. Está bem para você?"
"- Sim, está. Tudo o que quero, Mariana, é reconciliar-me com Manuel, para depois me oferecer com trabalhos e gratidão à Deus, nesta Colônia!"
"- Muito bem, marcarei outra entrevista para discutirmos alguns detalhes, porque logo deverá internar-se aqui."
"- Seria possível a minha aparência física ser igual ao meu pai?" - indaguei.
"- Sim, é possível."
Despedimo-nos como bons amigos. Contei para vovó e decidimos falar com jeito para mamãe. Meus colegas ficaram contentes e recebi muito incentivo. As semanas seguintes foram de preparação para a nova vida terrena. Diminui as idas à escola e aumentei as visitas no Departamento. Até que o dia chegou.
Houve muitas despedidas, com votos de êxito. Mas todos sabíamos que brevemente estaria de volta! Na porta do prédio, estava o prof. Eugênio me aguardando. Disse-lhe:
"- Sou-lhe muito grato, professor! Muito obrigado por tudo!"
"- Estou orgulhoso de você, Raul. Faz o que eu faria se estivesse em situação parecida. Foi um prazer conviver com você!"
Abraçamo-nos ternamente, saí quase a correr pelo jardim e, ao chegar à porta, olhei para trás, mas o professor Eugênio não estava mais lá. Esperançoso, entrei. Mariana estava à minha espera, alegre como sempre.
Logo mais, adormeci...!
PELO ESPÍRITO RICARDO (Raul):
A NOVA REENCARNAÇÃO
Aguardava ansioso a chegada de meu pai, para acompanhar-me à escola, era meu primeiro dia de aula. Completara SETE anos na semana anterior e recordava com alegria minha festa de aniversário. Estávamos na sala, sentara-me no tapete para esperar meu pai. Pretinha arrumou-me e eu fiquei pronto bem antes da hora. Mamãe Margareth e Pretinha estavam sentadas no sofá conversando, e Valquíria, minha irmã, estava deitada no chão, quieta, com uma de suas bonecas quebradas. Valquíria quebrava todos os seus brinquedos, até os meus se os pegasse; parecia que gostava de vê-los quebrados, principalmente as bonecas. Pretinha disse à mamãe:
"- Ricardo é lindo, dona Margareth!"
"- É verdade, Pretinha! Não é só bonito, como também educado e bondoso! Sou muito orgulhosa do meu filho! Quando fiquei grávida de Ricardo, Manuel ficou nervoso, não queria menino. Quando nasceu, até temi que ele não gostasse do filho. Taís e Telma 'apaixonaram-se' pelo irmão, lembra-se, Pretinha? Não ficaram com ciúme e todos, ao ver o nenê, diziam que era 'parecidíssimo' com o pai. Manuel ficou tão estranho, desconfiado, não conseguia entendê-lo, não queria nem pegar o menino. De tanto insistir, ele o pegou. Ricardo chorava e ficou quieto no colo do pai. Manuel gostou de ter o menino nos braços! E assim foi, toda vez que Ricardo chorava, o pai o pegava, ele parava. Sorria sempre para o pai. A primeira vez que bateu palminha foi para ele, como as primeiras sílabas foram 'pá-pá'. Graças a Deus, Manuel esqueceu a antipatia pelo menino e, com o tempo, passou a gostar de Ricardo. E agora ele faz tudo que o filho quer!.. Queria que Valquíria fosse como ele. Ainda bem que ela está quieta hoje, assim terminarei esta toalha do enxoval de Taís, que casará no mês que vem. Ela será feliz, Márcio a ama tanto!
"- Dona Margareth!" - disse Pretinha "- Taís e Telma gostam tanto da senhora e dos irmãos! A senhora é boa madrasta e vivemos bem todos esses anos...!"
"- Tem razão, Pretinha, deu certo! O que nos impede de sermos totalmente felizes é Valquíria. É tão feia, esquisita (síndrome de down). Confesso, que às vezes tenho vergonha dela. Acho que irá ficar cada vez mais feia. Olho para ela e dói-me o coração."
"- A senhora não deve se envergonhar de sua filha, dona Margareth. Valquíria é doente, Deus sabe o porquê. Deve ser justo e é para o bem dela. Devemos amá-la como ela é!"
Mamãe e Pretinha passaram a falar do bordado da toalha. Observei minha mãe: era linda, estava sempre bem arrumada e bem vestida. Ia freqüentemente ao cabeleireiro e à costureira, saía para visitar amigas e participava de festas. Pretinha era quem administrava a casa, tomava conta de tudo, principalmente de nós, minha irmã e eu. Tínhamos três empregadas para fazer todo o serviço e, mesmo com Valquíria fazendo muita bagunça, a casa era muito bem arrumada. Em casa, não havia brigas, tinha duas irmãs mais velhas à quem eu amava muito, eram lindas e bondosas. Taís, a mais velha, ia se casar logo, e Telma namorava firme Carlos, que estudava medicina. Elas não eram filhas de minha mãe! Só de meu pai, com sua primeira esposa, que havia morrido.
Finalmente papai chegou. Corri para beijar Valquíria, ela sorriu! Sorria sempre pra mim. Depois beijei mamãe e Pretinha, e segurei firme a mão que meu pai carinhosamente me estendeu. De mãos dadas, com papai percorremos o curto trajeto até a escola. Senti-me confiante e orgulhoso dele! Deixou-me na porta da escola e despediu-se, beijando-me a testa. Entrei na classe confiante: a escola parecia satisfazer todas as minhas expectativas de aprender. Decepcionei-me com o passar do tempo, ela não era bem o que ansiava encontrar. Parecia que eu esperava 'uma escola melhor' e mais reluzente.
O tempo passou, crescia forte e sadio, em casa tudo ia bem. Taís e Telma casaram. Já tinha 10 anos quando, numa tarde, escutei Taís, ao visitar-nos, comentar que ia ao cemitério visitar o túmulo de sua mãe. Insisti com ela para que me levasse! Acompanhei ela, na visita ao cemitério e achei tudo muito estranho, nunca tinha ido lá. Paramos na frente de um túmulo e li os dizeres da placa de bronze. Ali estavam sepultados Manuela e Raul. Taís colocou flores e orou. Observei tudo, curioso.
"- Por que vem aqui, Taís? Nada tem aí, só esqueletos!"
"- Ora, Ricardo, é costume, venho orar!"
"- Não é melhor orar em casa?"
Taís não respondeu e pensei: "Não volto mais aqui. Que lugar sem graça! Acho que nem a mãe de Taís, nem Raul, estão aqui!"
"- Taís, conte-me o que aconteceu com eles!"
"- Ricardo, papai não gosta que falemos desse assunto."
"- Por quê?"
"- Acho que sofreu muito e não gosta de recordar. Ele fez de tudo para que Telma e eu sofrêssemos o menos possível. Foi uma tragédia!"
"- Papai não está aqui, nem precisará saber!" Taís, conte, vamos!"
"- Está bem, vou contar. Era muito pequena nem lembro direito. Um dia, Telma e eu fomos ao ensaio do coral e Pretinha foi levar-nos. Mamãe ficou com Raul. Não sei por que, ninguém sabe o que pode ter acontecido, pois saíram, foram mortos e jogados num poço."
"- Que poço?" - interrompi.
"- Não existe mais, taparam-no logo após. Quando o ensaio terminou, não os encontramos em casa. Procuramos por toda parte e nada. Chamamos papai no armazém, já era de noite, ele chamou a polícia e todos saíram a procurá-los, os vizinhos, parentes e amigos. Por dois dias consecutivos de aflição, os procuramos. Eles haviam fechado a casa, não levaram nada. Em casa não havia sinais de violência, não faltava dinheiro e não tínhamos pista alguma. Até que um lavrador, ao passar perto do poço, sentiu um cheiro desagradável; olhou para dentro dele e os viu. Foi tudo muito triste!!!"
"- E o assassino? Foi o danado do 'Louco'?"
"- Sim, ele os matou e jogou-os ali, no poço."
"- Você o conhece, Taís?"
"- Eu??? Que pergunta, Ricardo! Claro que não. Ele é um assassino cruel!"
"- É também um homem, filho de Deus!"
"- Ricardo !!!"
"- Não tem curiosidade de saber como é ele, odeia-o?"
"- Não odeio, perdoei como todo cristão deve perdoar. Não tive vontade de conhecê-lo. E por que o faria? Ele matou friamente minha mãe e nosso irmão. Raul seria um homem, agora!"
"- Se ele não morresse, eu não estaria aqui!"
"- Por que, Ricardo?"
"- Ora, se meu pai não ficasse viúvo, não casaria de novo e eu não nasceria!"
"- É... De fato é isso mesmo!"
Não falei mais nada, sabia que havia um Louco preso na cadeia da cidade, por conversas na escola. Por ser uma cidade pacata, imaginei que só poderia estar preso por causa dàqueles crimes. Mas algo me dizia que ele era inocente!
O REGRESSO
Completei 16 anos, e eu era motivo de alegria e orgulho para meus pais, principalmente para meu pai. Sentia uma alegria que não conseguia entender, ao sentir que meu pai me amava, e não entendia bem o porquê.., de querer tanto que ele me amasse e de ter sempre necessidade de agradá-lo, e de fazer tudo o que ele queria, com carinho.
Tomávamos café naquela manhã de sábado, estava contente, acordara feliz e tranqüilo. Pretinha disse:
"- Ricardo, já é tempo de pensar o que irá estudar, terá de ir para outra cidade!"
"- Você deve estudar para ser doutor!" - disse mamãe. "- É estudioso e inteligente, que tal ser médico como o seu cunhado Carlos, filho?"
"- Não sei !" - respondi, desinteressado.
"- Não sabe nada este menino!" - resmungou Pretinha.
"- Ora, não resolvi. Não sei se continuo a estudar ou fico ajudando papai no armazém."
Papai sorriu:
"- Ricardo, meu filho, estou forte ainda e, não sendo velho, posso tomar conta de tudo sozinho. Você tem de pensar no seu futuro e fará o que achar melhor."
"- Obrigado, pai. Quero pensar bem para resolver!"
"- Tem tempo, faltam dois anos para se formar."
Meus pais saíram e Pretinha voltou a insistir:
"- Ricardo, não consigo entendê-lo! Às vezes você parece tão estranho..! Já notou que não fala no 'futuro'? É como se ele não existisse para você. Não faz planos, não quer casar, nem pensa em namorar... Por quê?"
"- Sei lá! Não queira respostas que não sei dar. Por que acha 'estranho'? Só porque não sei, se vou continuar a estudar ou não? É como papai disse: tenho tempo para pensar. Quanto à namorar, eu acho, Pretinha, que não me convém agora. Sinto-me menino ainda. Depois, quando eu 'for embora', não quero deixar garota nenhuma sofrendo por mim."
"- 'For embora'??? Por que diz sempre isso, Ricardo?: 'Vou embora', 'quando partir'..?"
"- Eu sei lá, Pretinha! Você está me confundindo com tantas perguntas!"
Saí da cozinha, fiquei na varanda esperando pelo meu pai para irmos ao armazém. Aos sábados, abríamos o escritório só pela manhã, e à tarde estaria de folga. Fomos ao escritório e regressamos para o almoço; estava um dia muito quente que prenunciava tempestade. Papai almoçou, saiu e logo voltou e disse:
"- Ricardo, vou à um sítio aqui perto, quer vir também? Ofereceram-me para comprá-lo. Quero ver o local e se as terras são boas. Ajudará a opinar, voltaremos logo! Joaquim e Pedro irão conosco, venha!"
Joaquim e Pedro eram empregados de papai e amigos, gostavam de sair com ele. Eu também! O convite entusiasmou-me:
"- Quero, vou sim!"
Fomos de jipe, conversávamos animados. Logo chegamos, demos uma volta pelo local e papai observava tudo o que o sítio possuía.
O calor aumentava; o ar, que parecia parado, começou a se movimentar com o vento, que
ficava cada vez mais forte. Grossas e escuras nuvens cobriam o céu. Paramos na sede. Tinha pouca coisa ali. Parecia tudo abandonado fazia tempo. Havia uma casa, uma estranha e velha casa, pintada de amarelo. Era uma construção comprida e, de onde estávamos, só víamos uma porta e poucas janelas, todas fechadas.
"- Não dá para aproveitá-la, está em ruínas!" - disse Joaquim. Papai respondeu:
"- Vou vê-la antes da chuva, tenho a chave da porta!"
"- Vou junto!" - eu disse.
"- Não, Ricardo! Você fica, está de tênis! E com tanto mato perto dela, pode ter bichos, cobras. Fique aqui e não saia do jipe, volto logo. Que falta de gosto, construir uma casa comprida assim!"
Papai entrou na casa e relâmpagos fortes começaram a riscar o céu, seguidos do barulho dos trovões. Um relâmpago clareou-nos mais forte e fez com que estremecêssemos.
"- Caiu perto, Ave Maria!" - disse Pedro.
"- Fogo, fogo!!!" - disse Joaquim.
O trovão nos ensurdeceu. O raio caíra na parte da frente da casa e o fogo se alastrava rápido pelo telhado.
"- Papai !!!" - gritei.
Pulei do jipe e corri, entrei na casa, vi as labaredas no telhado e a fumaça tomando conta do local, impedindo-me de enxergar direito. A casa não estava totalmente vazia; havia móveis velhos, cestas... Gritava por papai e não encontrava. Quando o vi, estava tentando levantar-se: um pedaço do telhado caíra sobre ele. Estava sujo, empoeirado, feriu a cabeça e seu ferimento sangrava. Ajudei-o a levantar-se:
"- Vamos, pai, saiamos rápido daqui, logo o telhado vai desabar. A porta dos fundos? Podemos ir por ela?"
"- Não! Está trancada. Temos que voltar pela frente!" - respondeu com dificuldade, a fumaça começava a sufocar-nos.
Abracei papai e fui arrastando-o para a saída. Quando chegamos ao cômodo da frente, senti-me quase aliviado e tive medo. O fogo ali era maior, reuni minhas forças e gritei:
"- Joaquim, Pedro!!!"
Estávamos quase chegando à porta, faltavam poucos passos. Uma parte do telhado em chamas desabou. Só tive tempo de dobrar o corpo e proteger meu pai. Senti a pancada de uma viga cair, em chamas, sobre minhas costas e cabeça. Não consegui me mover, mas não perdi os sentidos. No mesmo instante em que senti a pancada, ouvi dizerem:
"- Aqui estão, vamos tirar as vigas de cima deles, apaguemos o fogo!"
Joaquim e Pedro chegaram em nosso socorro. Senti que tiravam os pedaços de telhas e as vigas de cima de mim e, com suas roupas, apagaram o fogo das minhas. Arrastaram-nos para fora. Deixaram-nos deitados no chão à poucos metros da casa. O ar fresco acabara com meu sufoco, embora minha respiração não estivesse normal. Ouvi meu pai tossir e sentia que se mexia, recompondo-se ao meu lado. Começou a chover. Grossos pingos refrescaram meu rosto e comecei a sentir dores, dores atrozes nas costas e cabeça. Senti que papai se ajoelhara ao meu lado. Vi-o, estava sujo e ensangüentado, a água da chuva ajudara-o a sair do torpor em que se achava momentos antes. Notei-o preocupado, olhava-me aflito e pôs-se a gritar:
"- Ricardo, Ricardo!!! Responda-me filho, está bem???"
Esforcei-me, descontraí meu rosto, lutando contra a dor que sentia e a vontade de gritar, consegui sorrir para ele! Raciocinei: "Ele está bem! É isso o que me importa, fala, levantou-se... ele está bem!"
Tentei mover-me, não consegui, senti que estava muito queimado. Algo estranho foi, então, acontecendo comigo! Parecia que me desdobrava. Que eu estava me transformando em "dois". Estava tendo uma visão e, ao mesmo tempo, via e escutava meu pai ao meu lado:
"- Meu filho, meu Ricardo!!! Salve-o, meu Deus! Por quê? Por quê??? Não devia ter ido me socorrer, meu filho. Sente dor? Fale!!!"
E uma visão nítida foi me passando, como num filme: eu estava ferido dentro de um poço, sentia dores também, estava agonizando.
"- Ricardo, Ricardo!!!" - chamava meu pai, chorando em soluços.
A visão acabara e as dores também!
Meu pai calara-se e vi-o, ainda, a olhar-me aflito, agoniado. Pareceu-me, então, que ele levara um choque, depois nada mais vi ou senti. Adormeci profundamente!
Acordei depois de algum tempo, abri os olhos devagarzinho. Apalpei-me lentamente, os braços e pernas, mexendo só com as mãos. Vi o teto branco, olhei receoso para os lados, movendo só os olhos, e vi que estava deitado num leito. Lembrei-me do raio, das chamas, de papai, das queimaduras e da dor. Ah, a dor!!! Estranho, não sentia agora dor nenhuma!
"- Ricardo!" - disse uma voz harmoniosa e 'desconhecida' - "Como se sente?"
Instintivamente movi a cabeça e olhei para o lado de onde viera a voz. Vi duas senhoras
simpáticas a sorrir para mim. Não as conhecia, porém senti que as amava.
"- Chamo-me Margarida e esta é Manuela."
Observei a outra senhora e achei-a parecidíssima com minha irmã Taís. Nem sei por que falei:
"- Manuela? Mãe de Taís?"
Ela sorriu, eu sentei-me, movi-me com facilidade e também a voz saía sem esforço. Apalpei-me todo e alegrei-me; não tinha ferimento nenhum, fiz um rápido exame da minha situação e falei o que pensava:
"- Estou perfeito, não tenho dores, apesar de ter sido tão queimado! Por que 'estou bem'? Será que morri?"
"- Seu corpo queimado e com fraturas, sim. Você, não! Está aqui conosco e o amamos muito." - disse 'dona' Margarida.
Senti medo do desconhecido e da situação diferente que eu estava agora. Fiquei olhando para elas. Eram tão simpáticas! Pude sentir que me amavam e confiei nelas. Observei o local em que eu estava e pareceu-me familiar. O medo passou. Logo estava fora do leito, a passear com elas, pelos lindos jardins do Hospital e, depois, pela Colônia, e me encantei com tudo. Bem rápido, entendi que estava vivendo sem o corpo físico e que ali, a Colônia, era uma das moradas da casa do Pai Celeste. 'Dona' Margarida era minha cicerone, levou-me a conhecer todos os lugares permitidos da Colônia, assim como respondia à todas as indagações que lhe fazia. Perguntei ainda:
"- 'Dona' Margarida, será que não poderia ver meu irmão, que há tempos desencarnou? Chama-se Raul. A 'dona' Manuela é mãe dele! Ela deve saber onde ele está. Gostaria de tê-lo comigo!"
Minha 'amiga' sorriu e mudou de assunto, dando explicações sobre as flores que eu achava lindas. Fui levado para o Educandário, onde eu ficaria alojado e freqüentaria aulas, numa grande escola de jovens e crianças, muito bonita, bem arrumada e organizada. Encantei-me!
Finalmente encontrara a escola que sempre almejava "antes"! Passei a morar em quartos coletivos com jovens da mesma faixa etária. Ali todos se respeitavam. Reuníamo-nos e conversávamos muito. Mas nem todos se adaptavam facilmente. Ali havia muita disciplina, horário e ordem. Os ensinos eram claros e bem explicados. Quando tive aula sobre reencarnação, senti-me fascinado pelo assunto e entendi que sabia muito, e que estava só 'recordando'. Após essa aula, fiquei no jardim pensando no assunto, enquanto aguardava a visita de 'dona' Margarida e de 'dona' Manuela. Acabei andando e indo para outra ala da escola, que não conhecia. Mas ali, porém, tudo me era familiar, recordava com precisão cada detalhe.
"- Ricardo!!!"
"- Professor Eugênio!"
Abraçamo-nos, porém fiquei em dúvida se o conhecia bem ou não. Indaguei timidamente:
"- De onde conheço o senhor?"
Ele sorriu, já não me importei se o conhecia ou não. Entendi que ele me era querido.
"- De outros tempos! O que importa é que se recordou do seu velho mestre! Até me chamou pelo nome!"
"- Foi meu mestre, antes que eu reencarnasse como 'Ricardo', não foi? Por que não é meu mestre agora?"
"- Oriento, meu caro, meninos que tiveram desencarnes não tão comuns. E que poderiam não se sentir muito à vontade entre jovens como você, agora."
"- Faz tempo que orienta jovens assim?"
"- Faz um bom tempo! Amo muito o que faço."
"- Foi meu mestre, então?!! Lembro-me do senhor, que lhe quero bem, e é só! Que nome eu tive antes?"
"- Raul."
Bastou ouvir o nome e recordei: "Fui Raul !!! Sim, Raul, meu irmão!"
Exclamei:
"- Que legal... EU, fui o meu irmão!!!"
"- Teve duas existências, tendo o mesmo pai. Reencarnou antes e teve o nome de Raul, depois de Ricardo."
"- Lembro-me agora, porém não com detalhes!" - disse-lhe.
"- As lembranças virão com o tempo!"
"- Professor Eugênio, fui e sou-lhe muito grato, ajudou-me tanto..! Alegro-me tanto em revê-lo, professor! Sabe o que aconteceu comigo?"
"- Sim, fiquei contente por você ter tido êxito, como Ricardo, e um retorno tão feliz entre nós."
"- Ao senhor devo isso! Se não posso ser seu aluno, serei sempre seu amigo! Agradeço novamente e, engraçado, que pareço dois agora, Raul e Ricardo ao mesmo tempo!"
"- Com o tempo, será só você: um espírito eterno, recordando suas existências."
O professor Eugênio foi chamado e nos despedimos, com a promessa de nos reencontrar. No jardim, onde nos encontrávamos todos os dias, Vovó e mamãe Manuela esperavam-me, e senti meu coração bater mais forte!!! Emocionado, gritei:
"- Vovó Margarida! Mamãe Manuela! Lembrei de tudo! Como eu as amo!"
Abraçamo-nos felizes e não conseguimos segurar as lágrimas. Conversamos animados por muito tempo. Convidaram-me então para ir morar com elas. Aceitei e iria, logo que recebesse autorização. No outro dia, aguardava a visita delas, mas só Vovó veio. Após cumprimentar, disse séria:
"- Ricardo, a história ainda não terminou! Seu pai, Manuel, sofre muito e não se perdoa. A dor dele foi tão grande, ao ver você morto, que o resto não significa mais nada para ele. Com o decorrer dos dias ficou calado, alimentando-se pouco, não se barbeou mais e desinteressou-se pelo trabalho. Márcio é quem está cuidando de tudo. Manuel começou a ir muito ao cemitério e ficar horas diante de seu túmulo. Depois, vai visitar o mausoléu de Manuela e Raul, roído pelo remorso. Passou a pensar que fora castigo: matara um filho que não gostava e Deus tirara-lhe o que amava, e pensou que merecia receber sua punição. Foi à delegacia, confessou seus crimes, mas o delegado, como todos, não acreditaram nele. Concluíram, então, que Manuel ficara com a saúde mental abalada por ter perdido seus dois filhos de maneira trágica." Vovó fez uma pausa e concluiu:
"- Ricardo, meu neto, seu pai acha que não é mais possível viver assim, pensa em suicidar-se! Sim, quer matar-se, seu remorso pesa-lhe muito, julga-se o pior dos seres humanos e espera uma oportunidade para pôr fim à sua vida física."
E assim, com as devidas autorizações, fomos eu e Vovó auxiliar papai e os outros familiares que muito sofriam. Conseguimos evitar o suicídio de papai, mas vimos a necessidade de assistir aquele lar, até harmonizar-se por completo. Para isso, eu ficaria um tempo na Terra, trabalhando num Centro Espírita e auxiliando, também, no meu ex-lar.
O ARREPENDIMENTO
Aos poucos, tudo foi se ajeitando. O tempo passou. Minhas irmãs estavam bem, assim como Pretinha. Mamãe dedicava-se mais à Valquíria, que definhava, estava magra e mais feia fisicamente. Soube que ela não passaria pela puberdade! Papai melhorava aos poucos, insistia muito com ele, por pensamentos, para que orasse, e começou a pedir perdão à Deus, à mamãe Manuela, à Raul e ao Louco. Ao pensar em Raul, chorava sentido, amava agora o filho que antes odiava e que assassinara, e o remorso doía-lhe profundamente. Depois de algum tempo, sofreu um derrame cerebral e foi constatado também doença de Chagas. O derrame deixou-lhe seqüelas, ficara com dificuldades de movimento e de falar. Tratado com carinho e fisioterapia, meses depois estava caminhando, amparado numa bengala; não saiu mais de casa e recebia poucas visitas. Dores, o sacrifício dos exercícios, as medicações, nada disso fazia papai reclamar. Estava contente e dizia "merecer" tudo.
Houve um segundo derrame e então não saiu mais do leito.
Completava naquela manhã quinze anos que eu desencarnara. Como sempre, mamãe e Pretinha fizeram a higiene diária em papai e ele, pacientemente, suportara as dores que sentia, ao serem medicados seus ferimentos, causados pela imobilização ao leito. Tinha feridas pelo corpo, principalmente nas costas, nádegas e pernas, que exalavam odores desagradáveis. Sentia muitas dores e cansaço. Lembraram-se os três, da data, e comentaram os tristes fatos ocorridos há quinze anos. Éramos felizes e este dia marcou a todos, levando-os a conhecer a dor e o sofrimento. Deixaram papai no leito, e ele começou a recordar os acontecimentos daquele dia com clareza. Depois passou a recordar outros fatos, sem ordem, de sua vida. Seu corpo enfraquecia, respirava com dificuldade, logo ia ter seu terceiro derrame cerebral. Mamãe e Pretinha, ao vê-lo, preocuparam-se e chamaram o médico. Logo ele chegou e examinou-o:
"- Manuel não está bem, dona Margareth."
Mandaram chamar Taís e Telma e eu chamei Isaías, meu colega do Centro Espírita em que eu trabalhava.
"- Ricardo!" - disse-me Isaías - "Seu pai desencarna. Os socorristas logo estarão aqui para desligá-lo do corpo; o senhor Manuel será levado para um Posto de Socorro. Seu pai muito errou, muito sofreu, aprendeu a amar e, o mais importante, aproveitou seu sofrimento para aprender e modificar-se."
A família em prece acompanhou sua agonia, estavam silenciosos. Isaías adormeceu o espírito de papai, que parou de sofrer. Os Socorristas o desligaram e o retiraram do corpo e, assim, ele morreu.
O REENCONTRO
Estava para partir, para um Plano mais elevado e continuar meus estudos, quando fui avisado que papai "despertou".
Após um mês internado no Hospital da Colônia, fui vê-lo e encontrei vovó Margarida e mamãe Manuela visitando-o. Papai segurava a mão de mamãe Manuela e dizia:
"- Manuela, seu perdão me faz tanto bem, obrigado!"
"- Manuel, há tanto tempo que lhe perdoei. Esqueçamos os fatos tristes. Alegremo-nos!"
"- Papai! Mamãe!" - exclamei.
Abraçamo-nos. Mamãe Manuela levantou-se e foi ficar perto de vovó, que estava em pé do outro lado da cama. Sentei-me onde ela estava, numa cadeira ao lado da cabeceira de papai e segurei sua mão:
"- Como está, papai?"
"- Bem, filho! Manuela veio visitar-me e perdoou-me!"
Papai apertou-me a mão, fechou os olhos e, emocionado, continuou a falar:
"- Só falta ver meu Raul, queria tanto vê-lo! Pedir.., implorar seu perdão! Meu filhinho Raul, amo-o tanto agora!"
Então eu quis ser Raul: concentrei-me e modifiquei minha imagem. Adquiri as feições que tinha antes, e meu perispírito plasmou a aparência que eu tinha como Raul. Papai olhou-me e exclamou, assustado:
"- Raul??? Você é Ricardo?"
Vovó tranqüilamente esclareceu:
"- Raul e Ricardo são um só espírito! Teve duas reencarnações como seu filho, porque muito o ama!"
"- Meu Deus! Raul e Ricardo são uma só pessoa, ou seja, um só espírito! Como pode? Matei você, Raul, e voltou como meu filho novamente?"
"- Perdoei-lhe como Raul e, como Ricardo, fiz com que me perdoasse!"
"- Perdoar-lhe??? Pelo o quê? Não fui eu, a matar seu corpo como Raul?"
"- Em outras reencarnações estivemos juntos, meu pai. Isso recordará mais tarde. Odiava-me, porque o ofendi muito."
"- Que nos importa o passado? Não quero recordá-lo ou pensar nele, há muitas tristezas. O importante para mim é saber que todos os que eu ofendi me perdoaram, e a prova tenho de Raul, que até voltou para ser meu filho novamente. Amo você, Raul! Amo você Ricardo!"
Modifiquei-me novamente, voltando a imagem perispiritual de Ricardo, e nos abraçamos.
"- Ricardo, meu filho!" - disse emocionado meu pai -, "Dona Margarida e Manuela contaram-me o que fez por mim, durante todos esses anos que eu estive doente, sou-lhe grato. Quero que saiba, Ricardo, que não lhe darei mais preocupações. Quero, o mais rápido possível, passar à servir e deixar de ser servido. Obedecerei, cumprirei com precisão as ordens que me derem. Estou bem e estarei melhor à cada dia. Não quero que se preocupe comigo. Já fez muito por mim. Vá, filho, e cuide agora de você, de seus sonhos e objetivos."
"- Papai, como é bom vê-lo assim, determinado e com vontade de melhorar-se! Virei sempre visitá-lo, quero sempre escutar do senhor palavras de otimismo."
Vovó e mamãe Manuela despediram-se, fiquei a conversar por mais algum tempo com papai. Contente, ele contou-me seus planos e o incentivei. Realizaria meu sonho.
Anoitecia e, do jardim do Hospital da Colônia, olhei o firmamento, a imensidão do universo.
Tenho muito o que aprender!
Acho-me agora pronto para fazê-lo e ser útil. A fazer minha obra de amor, minha oferta ao Altar da vida, de reconhecimento ao Senhor, meu Pai Eterno, Criador de todas as coisas!!!
Reconciliara-me com o meu próximo!
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Adaptação da obra "Reconciliação", de Antônio Carlos, totalmente psicografado por Vera Lúcia M. de Carvalho.