Eu a amava, ela não.
Nunca me enganei
Eu sabia que era só mais um
Em uma longa lista de amantes
Mas me contento com a importância
De ter sido o último.
Eu a amava, ela não.
Nunca me enganeiEu sabia que era só mais um
Em uma longa lista de amantes
Mas me contento com a importância
De ter sido o último.
Farrapo... que mulher intensa...
Era vinte anos mais velha que eu
Mas não me importava, era linda.
Naturalmente seria um escândalo na época
Uma senhora se enamorar de um garoto,
Mas nós já éramos marginalizados,
Não existem convenções entre os rejeitados.
Me lembro como se fosse hoje,
Ela estava doente de novo,
Muitas vezes tinha adoecido
Pelas friagens.
A mulher era louca,
Vivia nas madrugadas bêbada,
Se ela me amasse tanto quanto amou o álcool
Eu teria sido um homem feliz.
Nunca se alimentou bem,
Muitas vezes tinha de escolher entre
Comprar comida ou comprar cachaça,
E ela sempre dava lucro ao alambique.
Mas dessa vez a doença era diferente,
Estava de cama havia três semanas
E tinha perdido muito peso,
Seu corpo voluptuoso
Se tornou pele e osso,
As faces encovadas a deixaram mais envelhecida
Porém ainda assim era linda.
Uma noite sentado ao lado da cama
Enquanto a alimentava
Com mingual de aveia
Que era a unica coisa que parava
Em seu estômago,
Notei que ela estava distraída,
O olhar perdido na janela
Mirando a lua.
Puxei de leve um mecha de seu cabelo,
"O que foi meu anjo?"
Ela se virou pra mim com
Uma expressão que nunca tinha visto,
Ela costumava ser debochada
Ou ácida mas naquela noite
Me mostrou olhos cheios de medo.
Eu não compreendi aquilo e ela falou
"Me faça um favor, vá até o cabaré e chame a Rosa Vermelha, diga que é urgente."
Fiquei muito surpreso
Pois pelo que constava
Farrapo não se dava com
As mulheres do cabaré
Porém não questionei, corri até o cabaré
E avisei uma das moças
Voltei para o barraco de Farrapo
E esperei com ela.
Não demorou muito e ouvi os cascos do cavalo
E o ranger das rodas da carruagem,
Abri a porta do barraco e vi duas mulheres,
Uma jovem que vinha de braços dados
Com uma idosa que reconheci
Ser Rosa Vermelha pela flor no cabelo.
Ela vinha encurvada amparada pela moça
Mas mesmo sendo velha
Usava um deslumbrante vestido vermelho
Que a fazia parecer uma pintura.
Quando entrou na casa
Foi logo falando ríspida
"O que foi bruxa velha? Que Diabo quer comigo e pra quê urgên..."
Ela parou quando os olhares das duas
Se encontraram.
"Ah Farrapo... Já?"
"Como já? Já é tarde Rosa, é a minha vez."
O ar de rispidez desapareceu de Rosa Vermelha
Ela sorriu para mim e me pediu
Para esperar do lado de fora um minuto,
Me retirei e fumei pelo Menos quatro cigarros
Enquanto esperava,
Então a porta abriu e elas saíram,
A moça mais jovem agora amparando
Farrapo que vinha cambaleante de fraqueza
Mas totalmente vestida como uma dama,
Os cabelos grisalhos cheios e rouge nos lábios.
Rapidamente assumi o lugar da moça
Passando o braço péla cintura de Farrapo
E a guiando até a carruagem de Rosa Vermelha.
Entramos, o cocheiro fez um muchocho
E o cavalo puxou o carro,
Demoramos um bocado
Até eu ver pelas janelas a mata densa da baixada.
"Ora essa, Praia?"
Farrapo perguntou se animando
E Rosa Vermelha sorriu.
Não fomos a praia e sim para o cais do Porto
Onde marinheiros descarregavam navios
Mesmo já sendo madrugada.
Desci e improvisei um banco com caixotes,
Rosa Vermelha se sentou com Farrapo
E eu me sentei no chão ao lado.
"Porque o cais?" Eu perguntei.
As duas riram e começaram a tecer memorias
Foram horas de conversa,
Elas relembraram histórias de uma época
Que não vivi,
Surgiram inúmeros personagens fascinantes,
Falavam de alguns homens sim mas as
Protagonistas das histórias eram sempre mulheres,
Maria Padilha, Maria Quitéria, Rosa Caveira,
Sete Saias, Figueira, Menina, Dama da Noite,
Mas principalmente Maria Mulambo era citada
Pois Rosa Vermelha acusava Farrapo desta morte,
Farrapo nem admitia nem negava, apenas ria.
Entre tantas histórias entendi o motivo
De terem ido para o cais, Farrapo havia aprontado
O diabo naquele lugar,
O cais do porto foi palco de tantas
Confusões, escândalos e guerras
Que eu ouvia com atenção imaginando
Como seria possível aquela mulher ter vivido
Tantas coisas fantásticas.
Foi muito tempo, as vezes
Me virava para ver as duas,
Farrapo com os cabelos esvoaçando
Na brisa fresca da noite,
Era linda mesmo tão pálida e profundamente abatida.
No meio das histórias ela parou
E perguntou a companheira
"Porque veio quando chamei?"
"Ora, vim porque me chamou! Não chamou?"
"Achei que me odiava."
Rosa Vermelha processou aquilo por um tempo
Mas respondeu
"Não sou sua maior fã. Mas estamos entre ultimas de uma época Farrapo, somos as ultimas. Não interessa se somos amigas ou inimigas, a verdade é que sempre seremos ligadas, eu, você e todas as outras que já se foram e que ainda irão. Todas as mulheres são irmãs, principalmente nós que sofremos mais que as outras."
Farrapo suspirou e observei
Ela encostar a cabeça no ombro de Rosa
"Sempre fui corajosa, peito de aço pra tudo, mas agora cofesso que estou com medo."
Rosa Vermelha anuiu
"É normal ter medo no fim... Mas eu vou ficar com você até a hora chegar."
Continuaram a contação de causos até
O sol dispontar no horizonte
Tingindo o céu negro em tons de safira e ametista,
Escutei delas coisas absurdas,
Vezes que pegaram em armas
Vezes em que amaram os homens errados,
Vezes em que sobreviveram as piores barbáries,
Historias muito tristes seguidas de outras
Extremamente cômicas que me faziam rir só de ouvir.
A brisa mais quente da manhã soprou sobre nós
Com cheiro do sal do mar.
As duas mulheres emudeceram por um longo tempo
Não interferi pois achei que miravam o nascer do sol,
Mas o silêncio durou demais
Então me virei e olhei para elas,
Farrapo estava com os olhos fechados
Com uma expressão tranquila no rosto
Encostada no corpo de Rosa Vermelha.
A principio achei que havia se rendido ao sono
Mas notei sua pele morena estava
Branca como carrara.
Rosa Vermelha olhou para mim
E sorriu triste
"Ela se foi, era a hora certa."
Assenti, não foi uma surpresa,
Eu já sentia que isso ia acontecer.
Peguei ela no colo, era leve como uma boneca de pano.
Foi sepultada na Mata
No cemitério das putas
Junto com todas as demais de sua época,
Rosa Vermelha cheia de ironia
Mandou cavar a sepultura bem ao lado
Da que repousava a tal Maria Mulambo.
Na minha vida tive muitas mulheres
Mas nunca me esqueci dela, Maria Madalena
Que era conhecida como Maria Farrapo.
Depois da morte dela ouvi boatos
De gente que viu seu espírito,
Boatos de que ela em sua forma de moça amalucada
Continuava por zanzar por essas bandas.
Muitas moças afirmavam ter visto
Mas eu mesmo nunca.
Ah como ansiava por uma visita dela...
Mas pelo visto ela se esqueceu de mim.
Ah Maria Farrapo... Que saudade...
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"Contos das muitas Marias", Felipe Caprini.
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Espero que tenham gostado, quem quiser encomendar desenhos pode me chamar no whatsapp 11944833724
Muito obrigado