Aquela noite foi tão estarrecedora
Que marcou como a mais nitida das lembranças.
Quando os soldados a trouxeram o
E um deles a carregando no colo
Todas nós tivemos a noção
Do que ela realmente era...
Uma criança.
Aquela noite foi tão estarrecedora
Que marcou como a mais nitida das lembranças.Quando os soldados a trouxeram o
E um deles a carregando no colo
Todas nós tivemos a noção
Do que ela realmente era...
Uma criança.
Júlia chegou no cabaré no início do ano
Veio maltrapilha e com marcas
De violência nos braços.
Algumas das moças
Tentaram enxotar ela dali
Mas era muito teimosa
E fez pé firme até que a levaram
para falar com Dona Maria Padilha.
Ninguém deu muita atenção,
Era uma fedelha miuda
Mal tinha seios.
A princípio ela jurou ter dezoito anos
Mas ninguém sustenta mentiras diante
Da expressão seria de Maria Padilha
Então acabou confessando ter quatorze.
Por ser tão nova a apelidaram de Menina
E era assim que era chamada.
Dona Padilha a aceitou na casa.
Todas as moças foram chamadas
Para saber desta novidade
E juntas no salão ouvimos Padilha anunciar
Menina como mais uma de nós.
Houveram contrariedades,
Rosa Vermelha discordava com veemência
"Não, que Cabaré é este que põe uma infanta como prostituta? Isso é errado!"
Padilha ouviu a todas
Mas após muita discussão
Encerrou a conversa ao responder:
"Se eu não aceitar essa Menina aqui ela vai acabar se vendendo em alguma esquina ou no Porto para os marinheiros, com certeza algum criminoso vai fazer mal a ela. É mais seguro que fique aqui. Sei que se vender não é coisa pra criança mas o mal ja foi feito, agora o que posso fazer é deixar que ela faça isso sob as minhas vistas."
Menina caminhou timida até o Centro do salão
Com seus cabelos em cachos delicados
Trajando um vestido Rosado
E sorriu para todas nós como um pedido silencioso
De aceitação.
Muitas desviaram o rosto, era horrível.
Menina era extremamente bonita
Mas era sim absurdamente horrível
Olhar nos olhos dela
Pois naquele olhar nós que já eramos velhas
Reconhecemos aquele fundo amargo
No olhar de uma mulher
Que já sofreu na mão dos homens.
Uma noite quando estávamos para fechar as portas
E os últimos clientes saiam cambaleando de bêbados
Encontrei Menina sentada
Nos degraus da escada dos fundos
Tentando ler um bilhete.
Pobrezinha, mal sabia juntar as letras.
Me aproximei dela
"Menina quer que eu leia pra você?"
Ela se virou me olhando assustada
E tentou enfiar o papel
No decote do vestido
Porém eu fui mais rápida
E tomei dela antes.
Li o bilhete, nele haviam galanteios
E muitas juras de amor.
"Menina quem te escreveu isso?"
Ela nada respondeu.
"Menina se não disser eu entrego isso para Padilha."
Ela deu um suspiro nervosa
E com a voz fraquinha contou
"É um moço da cidade, ele quer casar comigo."
Olhei pra ela com espanto.
"Alto lá, você acreditou nisso? Menina os homens são perversos, ele está mentindo pra você. Pare com essa besteira, você só vai se machucar."
Ela me olhou tristonha
Enquanto eu lhe devolvia o bilhete.
Meses se passaram
E eu acabei por me afeiçoar a ela,
Ficamos amigas em pouco tempo.
Menina era risonha, esperta
Conseguia ganhar tanto dinheiro
quanto o resto de nós.
Era segunda feira, dia que o cabaré não abria,
Dona Padilha e Rosa Vermelha
Como de costume se trancaram no quarto
Para calcular os ganhos da semana
E o restante de nós fazía a faxina.
Eu estava ajoelhada no meio do salão
Esfregando o assoalho para tentar
Remover uma mancha
Quando Serafina tocou no meu ombro.
"Dinorá onde está a Menina Júlia?"
Eu respondi que não sabia.
Enquanto esfregava ouvi o tropelo na escadaria
E uma das outras vir correndo
E contar a Serafina que Menina tinha fugido.
Deixei meu serviço e corri para o quarto dela,
De fato estava vazio
E sobre a cama uma carta,
Apanhei o papel e li a
Escrita com a sofrível letra
De quem tem pouca instrução
"Desculpe-me, tive de partir."
Antes que eu pudesse me virar
Maria Padilha tomou o bilhete
Das minhas mãos,
Ao me virar me deparei com ela
E Rosa Vermelha dentro do quarto.
Padilha me encarou seria
"Dinorá você sabe de alguma coisa, sei que sabe. Onde ela está?"
A voz cheia de autoridade de Padilha
Me fez recuar alguns passos.
Contei sobre o bilhete cheio de galanteios
E Padilha suspirou aborrecida, então disse
"Se ela fugiu com esse homem reze para voltar inteira."
Indaguei o motivo de dizer isso e ela disse mais
"Com certeza ela levou todo o dinheiro que ganhou nestes ultimos meses, não duvido que a intenção deste tal homem é roubar tudo e deixar ela para trás. É de praxe esse tipo de vagabundo enganar moças."
Pedi a Padilha para mandar alguém procurar menina
Mas como não tínhamos pistas de seu paradeiro
Não havia onde buscar.
A noite caiu e com ela uma chuva intensa,
Os relâmpagos iluminavam
Os trovões faziam a casa tremer.
As nove de noite se ouviu alguém
Batendo na porta com força,
Rosa Vermelha de carabina em punho
Mandou alguém abrir enquanto mantinha
A mira pronta, se fosse algum engraçadinho
Ia levar chumbo.
Me coloquei ao lado dela
Já com o punhal na mão
Enquanto Padilha descia as escadas
Também pronta para defender a casa
Quando a porta foi aberta
E três soldados de milícia entraram.
Os dois primeiros estavam encharcados
E o terceiro trazia Menina nos braços.
Era tão minúscula sendo erguida contra
O peito daquele homem que
De imediato meu coração se encheu de dor.
A água que respingava no chão vindo dela
era vermelha, era sangue.
Um deles ergueu o queixo para falar
Com Padilha que estava parada no meio da escada.
"Senhora nós a encontramos ferida proxima a entrada da cidade. Tentamos levar até o hospital mas as freiras se recusaram a atender uma... uma..."
"Uma de nós." Padilha completou.
Ele assentiu, o soldado que a carregava
A levou para o andar de cima, para o quarto,
Os passos dele fazendo barulho
Conforme pisava nos degraus.
Padilha os agradeceu com uma boa quantia
E eles partiam.
Ela entrou no quarto e eu fui atrás
Menina estava deitada na cama
Muito pálida e tremendo
Os lábios brancos.
Me sentei no chão e segurei sua mão
Mas Logo notei abaixo dos seios
Um furo no espartilho
Que minava sangue.
"Facada?"
Eu perguntei e Padilha respondeu
"Sim. Pelo que o soldado falou ela estava acompanhada de um homem, ele roubou a bagagem dela, a mala onde levava o dinheiro. Ela tentou reagir mas ele a esfaqueou e fugiu."
Menina abriu os olhos,
Seus cílios brilhando de umidade.
"Fui burra... Ele disse... que me amava..."
Ela falou com voz fraca.
Padilha sorriu para ela
"Não tem problema, vai ficar tudo bem, você vai achar outro amor logo."
A ouvir essas palavras meu queixo tremeu,
Padilha era muito severa conosco,
O natural seria ralhar com Menina
Mas se estava sendo gentil era por um só motivo,
Não valhia a pena.
Menina continuou a falar com lágrimas escorrendo
Pelos cantos dos olhos
"Desde que nasci ninguem nunca me amou... Eu creditei naquele homem... Eu... Me perdoem..."
Padilha se sentou na cama e com
As costas das mãos acariciou o rosto dela
"Não há porque pedir perdão. Nenhuma mulher devia viver o que você viveu, nenhuma criança devia viver isto. Aqui é sua casa e vamos ficar do seu lado até que... melhore."
Houve uma pausa na fala da padilha quando
Disse "até que... melhore", era nítido que
Lhe custava mentir naquela hora.
Menina não ia melhorar.
Alguém pigarreou e quando virei a cabeça
Vi Rosa Vermelha na porta do quarto.
"As moças querem falar com ela."
Padilha assentiu e as moças lotaram o quartinho,
Eram tantas que se espremiam ombro a ombro
Em torno da cama,
Algumas já soluçando de tanto chorar.
Todas tinhamos o mesmo sentimento,
Era terrivelmente cruel aquela criança
Morrer daquele modo
E era ainda mais cruel pois Menina
Servia de espelho para todas nós,
Todas também tivemos a infância destruída.
Padilha olhou para as moças e pediu
Que cantassem alguma música alegre
Para espantar o clima triste.
Elas se entre olharam sem entender
O motivo de cantar naquela hora
"Ela gosta de música" eu falei
Então longo começaram a cantar,
O coro das muitas vozes femininas era como
O ressoar da chuva nas telhas de barro,
Menina esboçou um sorriso para nós
O peito subindo e descendo em uma respiração lenta
Até que sem previo aviso o peito baixou
E não tornou a subir.
Ela manteve um leve sorriso nos lábios
Mesmo quando seus olhos fitaram o teto opacos.
A cantoria parou e o que seguiu foi um silêncio absoluto.
Ela foi enterrada na mata junto com a maioria de nós.
Todas nos vimos nela.
Todas carregamos a culpa de não te-la protegido.
O mundo não é justo para as mulheres,
Nem mesmo quando se é Menina.
Muitas vezes muitas de nós
Viram mesmo que por relance
Menina dançando no meio do salão
Nos dias em que o cabaré estava fechado.
Ela morreu cedo demais
A alma ainda anda por ai, risonha e faceira,
Para sempre uma menina.
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"Contos das muitas Marias", Felipe Caprini.
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Espero que tenham gostado, quem quiser encomendar desenhos pode me chamar no whatsapp 11944833724
Muito obrigado