EVANGELHO DO APÓSTOLO TOMÉ
Escaneamento de uma das páginas do manuscrito do Evangelho de Tomé
Conjunto de ensinamentos esotéricos atribuídos a Jesus, o Evangelho de Tomé faz parte da chamada Biblioteca de Nag Hammadi, uma coleção de textos descoberta, em 1945, perto da cidade de Nag Hammadi, no Alto Egito.
Doze códices de papiro encadernados em couro, guardados em um vaso de argila selado, foram “casualmente” encontrados naquela ocasião por um camponês local, Muhammad Ali al-Samman, quando arava a terra.
Os códices contém 52 tratados, de inspiração principalmente gnóstica, mas também incluem três obras pertencentes ao Corpus Hermeticum e uma versão parcial da República de Platão.
O estudioso inglês James Robinson sugeriu que os códices possam ter pertencido a um mosteiro, sendo enterrados quando o bispo Atanásio condenou o uso de livros não-canônicos, em 367.
Os textos dos códices foram escritos em língua copta, a partir de obras originais em grego. A data da composição do texto original do Evangelho de Tomé situa-se no intervalo compreendido entre 50 d.C. e 80 d.C. Os manuscritos enterrados em Nag Hammadi são datados dos séculos III e IV.
Como também ocorre em relação aos quatro evangelhos considerados canônicos (Marcos, Mateus, Lucas e João), é pouco plausível que o próprio Tomé tenha sido o autor do texto final do chamado “Quinto Evangelho”. O mais provável é que a redação última seja obra de um discípulo, que colocou por escrito uma tradição bem estabelecida no círculo de seguidores de Tomé.
Segundo a Tradição, Tomé foi um dos 12 apóstolos, que compunham o círculo mais íntimo dos discípulos de Jesus.
O Evangelho de João refere-se a ele como “Tomé, também chamado de Gêmeo (Didymus, em grego)”. E o próprio Evangelho de Tomé inicia-se com a seguinte afirmação: “Estas são as palavras secretas que Jesus vivo disse e que Didymus Judas Tau’ma escreveu”. Existe, nesta frase, uma repetição, pois Tau’ma também significa “Gêmeo”, em aramaico (a língua corrente, falada na Palestina nos tempos de Jesus).
Essa insistência faz supor que o nome próprio do apóstolo fosse Judas, e que a palavra Tau’ma, da qual derivou o inglês Thomas e o português Tomé, constituísse um epíteto ou cognome. A questão, que ainda não foi respondida, é se tal epíteto correspondia à mera descrição de uma condição biológica (sempre valorizada na Antiguidade, quando poucos gêmeos sobreviviam ao nascimento) ou a um título espiritual (designando a conquista de um status específico no processo de autorrealização). Neste caso, ele poderia até ser pensado como um “gêmeo” espiritual do próprio Jesus, conforme dá a entender o lógion 13 de seu Evangelho:
“Disse Jesus a seus discípulos: Comparai-me e dizei-me com quem me pareço eu.
Respondeu Simão Pedro: Tu és semelhante a um anjo justo.
Disse Mateus: Tu és semelhante a um homem sábio e compreensivo.
Respondeu Tomé: Mestre, minha boca é incapaz de dizer a quem tu és semelhante.
Replicou-lhe Jesus: Eu não sou teu Mestre, porque tu bebeste da Fonte borbulhante que te ofereci e nela te inebriaste.
Então levou Jesus Tomé à parte e afastou-se com ele; e falou com ele três palavras. E, quando Tomé voltou a ter com seus companheiros, estes lhe perguntaram: Que foi que Jesus te disse? Tomé lhes respondeu: Se eu vos dissesse uma só das palavras que ele me disse, vós havíeis de apedrejar-me – e das pedras romperia fogo para vos incendiar.” (1)
Após a morte de Jesus, Tomé viajou extensamente pelo mundo antigo. Afirmações parciais de vários autores, todos eles renomadas autoridades da Patrística, possibilitam reconstituir seu possível – e, em alguns casos, bastante provável – roteiro: Palestina, Síria, Partia (que incluía, entre outros territórios, os atuais Irã, Afeganistão e Paquistão), Noroeste da Índia, Sudoeste da Índia (Costa Malabar, no atual estado de Kerala), Sudeste da Índia (Costa Coromandel, no atual estado de Tamil Nadu), talvez Malásia e China, e novamente Sudeste da Índia, onde o apóstolo teria sido martirizado.
A chegada de Tomé à Costa Malabar é tradicionalmente datada em 52 d.C., quando se acredita que o apóstolo aportou, em companhia do mercador judeu Abbanes, em Kodungallur. Na Índia meridional, diz a tradição, Tomé fundou “sete igrejas e meia”.
Instalado no Reino de Milapore, hoje um grande bairro da cidade de Chennai (antiga Madras), e muito bem-sucedido no trabalho de evangelização, inclusive com a conversão de vários membros da realeza, Tomé teria incorrido na ira dos brâmanes, que viam nos ensinamentos do apóstolo uma ameaça à sua doutrina social, rigidamente baseada no sistema de castas. Instigado pelos brâmanes, o rei de Milapore supostamente ordenou, em 72 d.C. a execução de Tomé.
Existe grande controvérsia sobre o local onde se encontram os restos mortais do grande apóstolo. Segundo várias correntes cristãs indianas, as relíquias estão guardadas em um túmulo lacrado na cripta situada sob o altar-mor da moderna igreja de São Tomé, em Milapore, Chennai (2).
Nasranis
A comunidade cristã sírio-malabar nasrani constitui um grupo étnico-religioso, com expressão no atual estado de Kerala, Índia, vinculado às várias igrejas associadas à tradição de Tomé. Os nasranis são descendentes de judeus que se estabeleceram em Kerala em época muito anterior ao ano 70 d.C., quando Tito, futuro imperador de Roma, ordenou a destruição de Jerusalém e promoveu a segunda diáspora judaica. Essa comunidade foi cristianizada por Tomé, preservando, no entanto várias tradições e costumes judaicos.
Supõe-se que a palavra nasrani derive do termo nazareno, utilizado pelos judeus-cristãos do Oriente Médio, que acreditavam na messianidade e divindade de Jesus, mas se mantinham fiéis aos preceitos legais e religiosos estabelecidos na Torá.
A comunidade nasrani associa elementos judaicos aos costumes sul-indianos e enfatiza sua fé no cristianismo ensinado pelo apóstolo Tomé. Utiliza correntemente a língua malayalam (falada pela população do estado de Kerala), mas emprega o siríaco (dialeto do aramaico) na liturgia. Parte de suas tradições foram perdidas após a invasão portuguesa da Costa Malabar, nos primórdios do século XVI, quando os nasranis sofreram brutal repressão da Inquisição católica.
Segundo o célebre historiador judeu Flávio Josefo, a região litorânea do sudoeste da Índia corresponderia ao reino de Ofir, mencionado no Antigo Testamento. A área era tradicional exportadora de artigos de luxo (madeiras de lei, marfins, especiarias, pavões) para Israel, especialmente durante o governo de Salomão, quando a realeza judaica alcançou seu apogeu. Muziris, atual Pattanam, perto de Cocchin, era o principal porto e mantinha intenso contato comercial com portos do Mar Vermelho.
Acredita-se que comerciantes judeus tenham se fixado na Costa Malabar em épocas tão recuadas quanto o século VI a.C. Após a destruição do segundo Templo de Jerusalém, em 70 d.C., a imigração judaica para a região se intensificou.
As perseguições da Inquisição e do padroado português provocaram a divisão dos nasranis. Uma ala (Igreja Católica Sírio-Malabar) subordinou-se ao catolicismo romano; outra (Jacobitas) aproximou-se da Igreja Ortodoxa Síria, adotando vários elementos da teologia e da liturgia de Antióquia. Os nasranis reúnem, atualmente, cerca de 6 milhões de pessoas.
Notas
(1) Trecho citado conforme a versão em português do Evangelho de Tomé realizada por Huberto Rohden (1893 – 1981). Rohden produziu sua versão a partir da edição francesa de Phillipe de Suarez, que traduziu diretamente do manuscrito em língua copta. Há outras versões mais recentes – inclusive a produzida a partir da tradução francesa comentada de Jean-Yves Leloup.
(2) Tive a oportunidade de visitar essa cripta em minha primeira viagem à Índia, em 2007.