O Eterno Giro do Presente - VIII - VII -
Que é a vida, afinal? Respostas a esta inquirição nunca faltaram através dos laços do tempo. E nesse fugidio presente em que vivemos a inquirição continua e continuará encoberta pela essência da essência do que seja a própria vida. Inúteis as palavras, pois a razão de nossa razão sobre todas as coisas está exatamente na intransferível e íntima leitura daquilo que achamos o que somos e daquilo que nos rodeia. É o máximo onde chegamos em nosso eterno giro do presente.
Certa vez fui sugerido a um debate presencial que seria agressivo pelas defesas que fizera de alguém de reconhecido valor moral e honestidade, ali injustamente criticado. Precisaria viajar por milhares de quilômetros e me haver com todas as despesas sobre tudo o que incorreria naquele deslocamento. Evidentemente sequer cogitei da viagem. Porém, dias depois, numa madrugada enquanto dormia, vi-me conduzido a uma situação que me remetia a uma prova de coragem ou a um tipo de ordália.
Num espaço escuro de uma floresta do astral, ainda assim visível, a poucos metros de onde eu andava, uma serpente pulara de uma árvore, cruzava o caminho diante de mim e desaparecia na folhagem marginal. Mesmo assim prossegui, chegando a um lugar em meio à mata onde era possível divisar uma habitação parcialmente coberta por sombras. Caminhando sem parar percebi lateralmente, um pouco afastadas, duas pessoas, parecendo-me jagunços, e os ouvi debochar de minha presença ali e das exigências que fizera para atender ao inusitado convite do referido debate.
Andei mais uns poucos passos e parei para melhor orientar-me, percebendo enorme e negra aranha que rapidamente descia por um fio de teia e pousava em meu ombro esquerdo. Sem temores, toquei-a com o dorso da mão, afastando-a de mim, prosseguindo. E me vi diante de um negro cão que latia ferozmente, fremindo as mandíbulas, vindo ameaçadoramente em minha direção. Achei que imitando os seus latidos e olhando-o fixamente, o confundiria, fazendo-o desistir de me atacar.
O cão pareceu não estranhar minha inicial atitude e automaticamente levantei a cabeça vendo diante de mim em plano mais elevado, um barranco, de onde três pessoas vestidas com roupas pretas, me observavam. Uma delas me fez sinal negativo para que não fizesse aquilo diante do cão e prosseguisse em frente, ignorando-o. E nada mais vi, acordando e memorizando a visão. Com toda a certeza esta foi uma situação atípica em tempos de vida normal, que precisei contorna-la com destemor.
E para que fique bem clara a verossimilhança com episódios a que candidatos são submetidos nas suas buscas por avanços iniciatórios, relato agora uma das muitas provas que venho passando há anos – esta ainda perfeitamente retida na memória – entre erros e acertos nesta minha caminhada espiritual.
Antes preciso ressaltar que os tempos são outros em tudo. E modelos de provas iniciatórias elaborados no distante passado por mentores, são agora experienciados em cenários montados no plano astral ou vividos mais intensamente em nossos lares, nas ruas, em nossos ofícios profissionais, nas escolhas de nossos estudos esotéricos, nos apuramentos de bons e profícuos hábitos, na educação, conversas, cortesias, críticas, amor, serviços, sexualidade etc. O campo de trabalho é imenso.
Entretanto não há mais tempo como antes. Urge velocidade no cumprimento de importantes requisitos para uma vida espiritualizada, tanto para as almas já experientes nessa esfera como para neófitos em tudo. Nas obrigatórias provas a se submeter não há lugar para estilosos de intensas vidas sociais, desejosos de ser notados e comentados, pois há nisso flagrante incompatibilidade que só satisfaz a egos fortalecidos nas ilusões, ao contrário daqueles humildes que objetivam exatamente o oposto. Tudo em nós está conectado com um modelo ou arquétipo principal e nele devemos exercitar bons e melhores valores, segundo nossas capacidades. O contrário das nossas boas intenções só nos vem causar seguidas derrotas, amarguras ou prejuízos; por isso a necessidade de seguidas autoanálises e catarses, a fim de sempre estarmos a nos passar a limpo.
Bem, numa dessas provas fui levado de novo ao astral, desta vez a um lugar que me fazia lembrar a plataforma de antiga estação de trem no interior do Brasil. Era noite, a luz ali era fraca e eu andava pela plataforma da estação. Vi então a um canto sob um véu de sombras noturnas, encostados à parede, montes de algo protegidos por sacos de panos que sequer me despertaram qualquer curiosidade.
Ao passar diante daquilo, os montes mexeram-se e os sacos foram arremessados para trás, surgindo homens usando capuzes que lhes cobriam as cabeças e faces, que se levantando vieram ameaçadoramente em minha direção. Embora assustado, investi também contra eles disposto a lutar. Mediante minha reação eles pararam e retiraram os capuzes, e aquele que se adiantara sorriu amigavelmente. Lembro-me perfeitamente de sua fisionomia e ele parecia comandar toda aquela ação. A isso se seguiram gritos de comemoração por todos e uma salva conjunta de palmas tão forte que eu, ao acordar imediatamente, retendo por uns segundos na memória aquela última cena, ouvia ainda ao longe o eco das palmas. Fantástico.
Nada significativamente chega de modo aleatório aos que buscam, sejam esses os eleitos provindos de muitas tradições gnósticas ou esotéricas, sejam recém-iniciados nos caminhos dos segredos ocultos. A cada um segundo as suas obras. Assim em Sorman uma recordação lhe fora paulatinamente ativada na alma e uma presença lhe vinha agora insistentemente lembrar-lhe do cumprimento de algo. Pois tanto a velha vendedora de essências, antes a provocar-lhe com o enigma quanto agora a própria imagem dele - Sorman - a implorar-lhe por sua própria e pessoal ação, reacendiam-lhe na alma a necessidade do cumprimento dos desígnios de sua vida. Impossível ter paz sob a injunção da dualidade a polarizar cada lado do ser diametralmente ao seu oposto. Eis como Sorman começa a manobrar com esse crucial momento:
“ Naquele dia em que permanecera em casa, e no dia seguinte, a imagem o deixou. Mas ainda que em descanso, a tensão vinha operar em si algo estranho, provocando-lhe uma ansiedade que o impelia a pensar. A exemplo de uma sensação dirigida era puxado lentamente para cima, trazendo sua atenção e reflexão para diferente ângulo. Era como - comparava - iniciar a concentração nos tempos do ashram, onde os sentidos ficavam adormecidos, a consciência se tornava volátil e com redobrada lucidez, e as imagens mentais produzidas ou observadas separavam-se dos pensamentos e dos agregados emocionais.
Partindo desta reflexão, pôde compreender que existia mensagem significativa de que precisava inteirar-se, no entanto, pelas turvações de seu íntimo não conseguiria percebê-la. A leitura continuaria impossível se a condução de sua vida seguisse os mesmos padrões de agora. Algo realmente necessitava ser feito!
Pressentiu então que deveria ficar sozinho, distante de todos. Desta maneira, anunciou aos pais a decisão de viajar para a casa que possuíam ao pé da serra, onde por tempo indeterminado permaneceria. Olga quis ir junto, desejava assisti-lo, providenciar coisas, estar sempre por perto. Sorman negou-lhe tal assistência: precisava estar só, necessitava da solidão, e eles conhecendo-o e a sua determinação, acabaram por ceder. Pelo menos saberiam onde ele se encontrava, podendo ir visitá-lo.
Ao aproximar-se da bela casa e abrir o portão um oculto instinto o fez, especialmente, contemplá-la. Viera acompanhado de estranha premonição que lhe deixava na percepção intuitiva um reflexo de luz. Aquilo, supunha, vinha indicar-lhe a trajetória de um possível caminho, talvez concreto, mas que neste exato instante se mostrava unicamente imaterial. Tinha quase imperceptível rastro, como da cauda de um velocíssimo cometa que já tivesse passado distantemente. Mostrava ainda a prova de sua presença através de pequenas e esmaecidas luzes, a exemplo de vaga-lumes em ordenados voos noturnos. Sorman, no entanto, não queria estar só naquelas evidências quase irreais; assim, por uma razão qualquer, invocava duas principais testemunhas: ele mesmo e a própria casa!”.
Rayom Ra
http://arcadeouro.blogspot.com
Como entender uma história de vida sem ilusões? As ilusões são inconsistentes, elas existem enquanto as mantemos vivas em nossas almas. A infância é bela por estamos completamente imersos nas ilusões; mais tarde, quando a correnteza do rio da vida nos arrebata, nos prende e nos mantém nela, bebemos seguidos goles de amargores e vertemos lágrimas que nunca realmente nos consolam.
Viver a vida é viver a única realidade neste mundo, que são as ilusões, umas após outras. A principal insistência dos mestres orientais quando discorrem a neófitos são justamente as ilusões. Pois o grande problema é estarmos atrelados diariamente a elas. As ilusões são véus, sim são véus e adversárias que temos de abatê-las hoje e de novo amanhã e depois e depois. São nossas causas que o próprio mundo nos ensinou a cria-las – e amá-las durante muito tempo. E a maior de todas as ilusões é justamente não desejarmos nos separar delas. Mas como vivermos neste mundo sem um dia nos bastarmos completamente a todas as ilusões, e finalmente aguardarmos para ser içados definitivamente para as bordas de um divino?
Caminhemos mais um pouco juntos com Sorman.
“Dois anos decorreram. Sorman se dividia entre o trabalho e a faculdade. A convivência com os colegas era a melhor possível, e participativa. A vida estudantil tinha encantos: as conversas dos jovens, seus sonhos de vida, a força da juventude, todas estas coisas Sorman absorvia e externava, embora sob uma ótica peculiar. Não se furtava de ir a encontros, festas, passeios, namorar com belas moças. Em análise metafísica, aquilo, na verdade, era a projeção de um momento mental e emocional; sendo preciso exercitar qualidades, ampliar o campo de ação daquele eu que em si procurava externar-se. Era inteligência legítima sem contestação, que buscava âncoras no próprio ego para mais claramente poder manifestar-se. E que melhor maneira de se compreender a vida, senão vivendo?”.
(...) “- Boa tarde, jovem, deseja comprar essência? - a velha senhora aproximou-se com sorriso nos lábios rosados, quebrando aquele momento solitário. Sorman, reconhecendo-a apesar dos anos, meneou negativamente a cabeça lamentando intimamente a intromissão - vou ao campo segar milho e trago três belas espigas, porém são sete que tenho para dar a comer. Volto ao campo e tomo mais quatro, mas as aves de rapina roubaram-me as três. Se tenho quatro como dar a comer a sete? Já descobriu?
- Por que insiste neste enigma, senhora? A mulher riu descontraída.
- É seu enigma, sua vida. Ainda não desconfiou disto apesar da brilhante inteligência? Mas pense nele, desnude-o antes que seja tarde e todo o processo venha a regredir.
- De que fala?
- Vou então dizer-lhe mais, ouça bem: se os três estão famintos, aos quatro querem juntar-se para comer. Se os quatro a tudo comerem, os três com fome ficarão, porém se resolverem dividir de suas partes, os três com eles estarão. Lembre-se que as espigas são corpos e alma - dizendo isto ela começou a afastar-se.
- Espere! Que tenho a ver com tudo isto?
- A transformação continua. O maior deseja conduzir ao menor; mas há grande perigo por que ele irá novamente ressurgir forte. Isso acontecendo, as águas se levantarão de lado a lado e estrondarão no choque inevitável. Não se deixe arrastar por nenhum dos lados, pois as águas não encontrando solidez, deixarão atrás de si unicamente a destruição. Deus seja louvado!
- Quem é a senhora, afinal? - havia agora alteração em sua voz.
- Somente uma velha vendedora de essências”.
Enigmas existem ou os fazemos existir? A resposta nos parece óbvia demais, pois está encadeada em polos sobre polos, para simplesmente recair de volta no sempiterno, por quê? Ao adentrarmos no mundo interior do esoterismo ou gnose nada nos satisfaz nem nos tranquiliza, e buscamos sempre mais e mais sem nunca chegarmos a um termo final. Seremos um dia um Buda completo, mas não estancaremos, pois nem mesmo o grande Senhor Maitréia desejaria que fosse assim. E respostas nunca nos satisfazem completamente. Nem poderiam.
(...) “O enigma desta feita mexera com Sorman. As palavras da estranha mulher ecoavam-lhe na mente; ele buscava deslindar o seu significado. “Os três estão famintos e aos quatro querem juntar-se para comer”. Os sete, claro, eram a totalidade do ser - o homem cósmico - o setenário de corpos, os upadhis. Por que, no cristalino significado metafísico, estariam famintos se eram justamente o manancial, os provedores, ao contrário dos quatro, insaciáveis? Aos quatro a esfinge conhecia-os muito bem, sorria deles. Os quatro lados do universo material, as quatro faces do homem: o leão, o touro, a águia, o homem, como não associá-los ao enigma - homem conhece-te a ti mesmo? Admitia ter conhecido a este enigma, tê-lo realizado em si mesmo, mas não integralmente. Ainda faltava muito; a substância vai mais além do entendimento humano, não bastando unicamente provar o enigma. É necessário mais; é preciso viver a imanência. E voltava, ao postulado anterior. Os três estão famintos, e por quê?”
(...) “Sorman vou partir!”. Sorman olhava-o atônito.
- Quem é você? - a surpresa era intensa, aquilo não podia ser real!
“Vou partir - ele sorria-lhe - é preciso. Agora é novamente sua parte, a conquista pessoal!”
- Espere! - Sorman corria em sua direção, ele pairava sempre adiante, acima do chão. A réplica exata de si, então desaparecia”.
Sorman acordou e sentou-se na beira da cama. A última cena ainda vivia-lhe revigorada e nítida, como uma projeção congelada em tela. Ele sacudiu a cabeça e de nada adiantou; levantou-se e foi tomar banho. Este sonho se repetiu exatamente igual por três vezes.
Por mais que se esforçasse, Sorman não conseguira apagar as cenas da memória. Eram excessivamente vivas, por demais nítidas, e as palavras soavam. Se antes buscara ignorar uma possível abstração em direção ao enigma da velha vendedora, obtendo sucesso nisto, agora não se repetia - estava além de suas forças! Bastava relaxar um pouco, afrouxar as rédeas do pensamento, e sua própria imagem voltava a lhe falar, repetindo sempre: “Sorman vou partir, é preciso!”. Apesar disto, ele procurava não se impressionar, pretendendo fingir que nada estaria acontecendo, entregando-se ao trabalho com maior denodo.
E como sua capacidade em absorver-se e se concentrar fosse grande, exagerava na dose. Quanto mais isso acontecia mais ele duplicava esforços, conseguindo nestas horas de dedicação esquecer-se temporariamente e a seu íntimo, escalando patamares que o deixavam próximo de perder-se na realidade dos fatos sobre si mesmo. Eduardo, que no princípio vira aquela atitude como prova de amor e digna dedicação ao trabalho, com o decorrer dos dias já se preocupava. Sorman chegava cedo à mesa de trabalhos e de lá somente saía para atender assuntos externos, ou participar de reuniões na própria empresa. Pouco conversava, se alimentava mal. Escrevia laudas, fazia extensos e detalhados relatórios, concebia difíceis projetos tecnicamente perfeitos. Mantinha frequentes contatos com clientes e fornecedores. Ao visitá-los, aproveitava para pesquisar junto a órgãos e associações, sobre estatísticas, índices diversos e atuações de concorrentes no mercado. Retornando à sala, retomava as tarefas e ali permanecia até tarde. Era o último a deixar a empresa, mesmo após Eduardo. Transformava-se, assim, num titã, um gigantesco homem de negócios: imbatível na sua energia, perspicácia e produtividade, com ilimitada capacidade para gerar sempre novas e perfeitas soluções. Isto o tornara respeitado e temido, e reconheciam: era a escalada de um gênio em processo de gestação!
Os sinais de fadiga e emagrecimento, já eram notados por Olga que em vão o alertava de seus excessos. Até Javan numa de suas esporádicas visitas ao escritório, pode atestar com preocupação a transformação que se processara no amigo. Malgrado suas tentativas, não conseguira demovê-lo de sua têmpera, ou convencê-lo a saírem para se distrair.
“Sorman vou partir, é preciso!”. Aquilo já era um agente obsessivo; algo forte e real a persistir sempre. Sem tréguas, entregando-se febrilmente e cada vez mais ao trabalho, ele mesmo não se reconhecia - estava indo longe demais! Falhara na tentativa de apagar aquela aparição, fazer calar a sua voz. Como resultado, perdia a paciência, irritava-se com facilidade; a custo continha-se nas suas explosões. Finalmente, quase esgotado, teve um momento de lucidez convencendo-se de que exagerava e recolheu-se para descansar. Olga atendeu-o, cobrindo-o de cuidados. Apesar de tudo a tensão povoava-lhe o íntimo”.
Rayom Ra