sexta-feira, 28 de outubro de 2022

O Eterno Giro do Presente - IX

 

O Eterno Giro do Presente - IX


  Aquele que caminha na escuridão nem sempre busca pela luz. Mas aquele que mesmo na escuridão busca pela luz, por certo a encontrará. O homem inconsciente a quem nada faz verdadeiro sentido, caminha de um lado a outro ao desempenho de suas atividades diárias, sem sentir o significado da vida. O espírito nele está embotado e nada o estimula, senão existir com os seus próprios sentidos.

  O escultor pelo cinzel, o artista pelo pincel, por suas naturezas, procuram ver ou sentir as angústias ou a iluminação da alma. O escritor, o ator, o arquiteto, buscam externar a alma através de seus instrumentos de ofícios. O místico, o gnóstico, o esotérico se lançam para as realizações sobre o que ouvem, estudam ou idealizam. Assim são os sensíveis e verdadeiros, a dar passos desafiadores ao convencional, onde incontáveis infelizes-felizes em impressionantes humanas massas permanecem letárgicos, iludidos e estáticos ao eterno giro do presente.

   No fervilhante mundo místico a alma age e reage imprimindo sua presença mais absorvedora e angustiante, mas nem sempre ainda a transmitir a linguagem que oculta. O místico, aquele que necessita estar em união com toda a natureza – e que ainda não está – precisa passar por um estado d’alma tanto mais profundo quanto seja sua necessidade naquela vida. Em periódicos tempos, em anos da juventude ou na madureza de sua vida, ele morre simbolicamente para o mundo exterior. E começa a perder-se em muitas de suas antigas referências ao mergulhar diretamente em seus íntimos e pessoais conflitos.

  Deus salve os eleitos porque suas necessárias presenças neste mundo estão sempre envoltas por muitos véus que os oprimem e os vergastam. Impossível ainda entendermos as torturantes angústias de um Cristo ou um verdadeiro Buda em dimensões mais sutis, onde em seus momentos de meditação permanecem ao aguardo de uma revelação que ainda não lhes chega.  Mas aqueles que descem aos infernos para grau a grau irem depois subindo aos céus – esses somos nós mesmos – que a isso necessitamos fazer, conforme fizeram e fazem os eleitos sob o peso de inevitáveis cruzes,

  Sorman parte para mais uma busca em direção ao autodescobrimento. Vejamos uma passagem:

  “ (...)Cansado de ali permanecer Sorman resolveu sair. Experimentava certo dissabor; nada obtivera. O cenário que se descortinava em seu íntimo pouco lhe valera. Sons, cores, imagens ou vozes não lhe provocavam qualquer reação, não lhe acendiam a alma! Praticamente em vão rememorara os mantras, as invocações mágicas, a técnica milenar de chegar ao samadhi. Anestesiara a mente, calara os pensamentos, abrira a percepção para a voz superior. Seu corpo ficara dormente, os membros inertes. Já superara a torturante dor física dos primeiros dias de práticas; jejuara e seguira todos os preceitos de que a memória ainda detinha registros.

   Deixando os limites do agradável vilarejo, ingressou por estrada de terra. Em certo ponto encostou o carro. Ao pisar o solo e circunvagar o olhar, observou a placidez do local. Às margens da estrada, árvores se entrelaçavam bem ao alto proporcionando interessante integração e continuadas sombras. Outras árvores, mais interiorizadas, mostravam os raios solares infiltrados nos entremeios de seus galhos, e no chão nódoas longas ou salpicadas formavam desenhos! Estava calor, apesar da atmosfera vigorosa do lugar e ausência do peso químico poluente das cidades!”.

  Aqui Sorman conhece alguém enigmático que ele precisava conhecer nesta sua caminhada para reencontro com seu íntimo. Ambos constroem interessante e revelador diálogo. Vejamos partes:

  “ (...)O negro voltou-se para o portão deparando-se com Sorman. Houve hesitação; Sorman procurava o que dizer; o negro antecipou-se:

       - Boa tarde, deseja algo?

       - Para dizer a verdade, não. Passeava pelo lugar e acabei chegando aqui.

  O homem olhou-o com maior curiosidade; isto causou ao jovem certo embaraço, fazendo-o sentir-se invasor.

       - Entre! - falou simplesmente.

       -Ora - surpreendia-se Sorman - não sei se devo. Estaria incomodando, atrapalhando o seu serviço.

        - Entre! – repetiu num convite quase imperativo. Sorman adiantou-se; o cão fez súbito movimento de lançar-se à frente - quieto, Deucalião, deixe o moço entrar! – ordenou o homem sem virar o rosto.

  O cão ganiu nervosamente, sentando-se sobre o traseiro, ficando a observar. Sorman deu três passos e adentrou, empurrando levemente o portão atrás de si.

      - Meu nome é Sorman, passo dias na vila e resolvi conhecer estes lados.

      - Meu nome é Bruno, moro aqui.

       Já próximo Sorman absorvia o forte odor que exalava das rachas da madeira.

       - Faz sempre isto?

       - Cortar lenha? Oh, é um excelente exercício, além de útil. Faço isto regularmente; trouxe esta tora e resolvi cortá-la aqui mesmo. Temos um fogão de lenha que vez por outra utilizamos - Bruno desceu a cabeça do machado ao chão e girou o longo cabo, virando o fio do corte para fora, - além do mais - prosseguiu apoiando levemente um antebraço no cabo do machado que segurava com a outra mão, inclinando o corpo adiante com suavidade - faz-nos atrair de dentro forças que dormitam. A própria mente satisfaz-se com as energias que passam então a circular com maior liberdade - ele sorriu mostrando belos e alvíssimos dentes.

  Sorman sentiu estranha sensação. Olhando Bruno, pressentia-lhe algo sutil a expandir-se de seu corpo. Ao volver o rosto para os arredores obteve nova surpresa: alguma coisa fantasticamente forte obstava-lhe a mente. Quis ir adiante na observação, mas a mente não lhe obedecia, e recuou.

       - Que se passa neste lugar?

       - Que se passa em sua mente? - redarguiu Bruno com leve sorriso.

       - Algo muito forte. Uma energia que não localizo cerceia-me. De onde vem?

       - Tente de novo, projete-se mentalmente - disse Bruno, endireitando o corpo, retirando o braço de apoio do cabo do machado.

       - Não..., não consigo! - Sorman falou tenso.

       - Laya, iyê, iyê! - pronunciou energicamente o negro - agora solte-se!

       - Agora, sim, posso observar todas as direções! - falou com certo alívio, após a bem sucedida tentativa. Bruno riu descontraidamente. Seus dentes mostraram-se com maior alvura; ele jogou a cabeça para trás.

        - Ótimo! Ótimo! - comemorou ainda sorrindo - Vejo que não teme ao desconhecido. Excelente autocontrole. Outro qualquer já teria corrido espavorido.

  Sorman coçou a cabeça e suspirou. Na verdade, estava ainda em estado de alerta, com nervos tensos.

       - A quem ou a quê comandou? - perguntou secamente.

       - Forças mágicas, acredita nisto?

       - Acredito naquilo que a razão possa compreender. É algo explicável?

       - Naturalmente, jovem. Tudo se explica, embora nem tudo seja inteligível. A razão das coisas é a própria ação que nelas decorre. Se nos apercebemos de uma ordem universal, cujo movimento flui perenemente e neste mecanismo inserimos nossa vontade, a razão do fenômeno absorve-se em nossa mente. Mas se conseguimos o seu controle, pelo menos em certa dimensão ou proporção, então particularizamos, comandamos ou criamos. Eis o aspecto mágico, a geração do fenômeno através da mente humana.

  Sorman mirou-o com admiração. Seus negros olhos mostraram indisfarçável brilho e um quantum de aguçamento.

       - E que ordem universal é essa que o senhor comanda: coisa adstrita a dogmas, empirismo ou alcançada em quintessência?

       - São forças naturais, mágicas, como disse. Na mente intelectual humana elas só existem em valores conceituais. Mas elas são o que são como se costuma dizer nos axiomas do ocultismo. Porém, o conhecimento verdadeiro é a apropriação que se obtém da imanência de ser e existir. Exemplificando: as forças de que tratamos jamais se condicionam, antes fluem livremente sob a égide de leis que regem a ordem universal, não obstante submetem-se parcialmente a uma vontade mais poderosa”.  

  Enigma eu: https://arcadeouro.blogspot.com/2015/07/enigma-eu.html

Rayom Ra

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