domingo, 4 de setembro de 2022

Ahriman: O Diabo antes do Diabo

 

Ahriman: O Diabo antes do Diabo


“E então veio Angra Mainyu, que é todo Morte…”

Anteriormente, algum tempo atrás, eu fiz uma pequena explanação sobre a definição da magia yatukih aqui pelo blog. Portanto agora, falemos um pouco mais da Divindade cerne do culto Yatukih, e princípio opositor dentro da religião Zurvanista (ou Zoroastrismo).

Podemos dizer que o culto Yatukih foi modernizado e popularizado especialmente pelo célebre autor Michael W. Ford, cujos livros podem ser adquiridos pela editora Via Sestra, em ótimas edições e traduções. No entanto, a origem primordial desse culto se deu na antiguidade, dentro da antiga Pérsia. Os zoroastristas possuem um compêndio de escrituras, semelhante a bíblia, denominado ‘Zend Avesta’. O Avesta se divide em: I) Yasna, que contém as sagradas liturgias e rituais; II) Khorda Avesta, que contém as orações diárias, liturgias das horas e orações aos Ahuras (Anjos); III) Visperad, que possui liturgias; IV) Vendidad, o livro que possui as narrativas mitológicas da tradição zurvanista. E é neste último que Ahriman se torna nosso ponto de interesse, tomando papel do principal antagonista.

O Vendidad está dividido em capítulos, que narram a Lei de Ahura Mazda (Ormazd) e as contra-criações de Angra Mainyu (Ahriman). Muito antes do cristianismo, o Zoroastrismo é tido como uma das primeiras religiões na existência a contrapor ‘bem e mal’. Portanto, ao contrário do que pregam alguns autores, o ‘Diabo cristão’ não foi inspirado em Pan ou outra divindade bruxesca. Ahriman e seu conceito de ‘Deus Sombrio’ invadiu o cristianismo ainda na época das Heresias e contra-heresias do cristianismo greco-romano, e forneceu o arcabouço para formar a figura de ‘Satã’ como a concebemos ao longo da história até a modernidade. Destaquemos alguns pontos de feitos relevantes de Ahriman dentro do Vendidad.

       Vendidad: Fargard 1

    O primeiro capítulo (Fargard) da narrativa apresenta as dezesseis belas criações de Ormazd, enquanto Ahriman cria, em contraponto, dezesseis pragas contra a Criação: 

  1. Ormazd cria a bela terra de  Airyana Vaeja, próxima ao rio Dâitya. Então ‘veio Ahriman, que é todo morte, e criou a serpente no rio e o Inverno. 
  2. Ormazd cria a bela planície de  Sughdha. Então veio Ahriman, que é todo morte, e criou a praga das Moscas(Skaitya) que trouxeram morte aos rebanhos. 
  3. A terceira criação de Ormazd foi a terra forte de Môuru. Então, Ahriman criou o pecado da luxúria.
  4. Ormazd cria as terras de Bahkhdi, com suas altas bandeiras. Por sua vez, Ahriman cria as formigas que devoravam o milharal. 
  5. A quinta terra de Ormazd foi Nisaya. E Ahriman criou por sua vez o pecado da Descrença.
  6. A sexta terra de Ormazd foi Harôyu, com seu belo lago. E Ahriman criou o lamento pelos mortos. 
  7. Ormazd cria as terras de Vaekereta. E Ahriman cria as Pairikas, as mulheres que espalhavam idolatria aos Devas (Demonios). 
  8. Ormazd criou as terras de Urva, com seus ricos pastos. E Ahriman contra-criou o Orgulho.
  9. Ormazd cria as terras inabitadas de Verkhanas. E Ahriman cria o ‘pecado não-natural’ (homossexualidade).
  10. Ormazd cria as terras de Harahvaiti. E Ahriman cria o pecado do enterro dos mortos. (No Zoroastrismo os mortos não são postos a terra, pois a morte a ‘polui’.) 
  11. Ormazd cria a gloriosa terra de Haetumant. E Ahriman cria o pecado da Feitiçaria Yatukih. E onde os Yatûs uivam, os mais sombrios trabalhos de magia negra são feitos. 
  12. Ormazd cria a bela terra de Ragha. E Ahriman cria o pecado da dúvida interna. 
  13. Ormazd cria as terras de Chakra. E Ahriman cria o pecado da queima dos corpos. (Os Zoroastras não queimavam os corpos, pois isso profana o fogo sagrado).
  14. Ormazd cria as terras de Vaerena, onde nasceu Thraetona, que derrotou e baniu Azi Dahaka. Então veio Ahriman e criou a opressão dos bárbaros e os problemas anormais nas mulheres (leia-se Menstruação). 
  15. Ormazd criou os Quinze Rios, e Ahriman criou o calor excessivo. 
  16. Por fim, Ormazd cria a bela terra de Rangha. E Ahriman cria o Inverno excessivo, como criação mágica dos Daevas. 

      Fargard 19 

 Este capítulo possui uma relevante questão que influenciou o modo como os funerais são realizados dentro do Zoroastrismo. Nele, Ahriman comanda que venha do Norte uma Demônio fêmea cujo toque polui como o dos cadáveres, para que mate Zoroastro. Este, consegue se livrar através de orações, e acaba tentado pelo próprio Ahriman. Trata-se de Druj Nasu, a Demonio dos Cadáveres, que também possui importante papel iniciático na magicka Yatûkih. 

‘Druj’ remete a ‘Demonio’ no feminino, e ‘Nasu’ remete a cadáver, e ela seria portadora de uma ‘morte invisível’ (doença). Sua associação com cadáver fez com que sua representação mais habitual fosse a de uma mosca.

No Zoroastrismo se crê que cadáveres são corruptos e causam doenças. A terra onde jaz um cadáver é conspurcada e o fogo que queima um cadáver é impuro. Os enterros são feitos em ‘Torres de Silêncio’, estruturas que podemos considerar como ‘cemitérios verticais’, denominadas Dakhma.

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     Fargard 20 

Esse capítulo trata de Thrita, o Primeiro curandeiro. Zoroastro pergunta a Ormazd quem era o maior dos espíritos bons na Terra, e Ormazd lista os feitos deste ‘médico’ primordial. Dentre eles, estava expulsar os espíritos malignos, dos quais podemos citar 11 interessantes: Indra; Sâuru; Naunghaitya; Taurvi; Zairi; Aeshma (familiar com o nome?); Akatasha; Zaurva; Druj Nasu; Driwi e Kasvi. E claro, Angra Mainyu o ‘Daeva dos Daevas’. Talvez eu fale sobre eles em uma postagem futura, as correlações com a Demonologia clássica fica por conta dos leitores ou de quem desejar comentar. 

    O Bundahish (“A Criação”)

No hino da criação do Zurvanismo, inicia com Zurvan (O Tempo incriado) gerando duas potências. Uma era Luz e outra era Trevas abissais, com um imenso vazio as separando. Ambas ‘luzes’ eram conscientes uma da outra e comeptiam pela criação, cada um a sua maneira. Ahriman crê que destruindo seu irmão obteria domínio sobre a Criação e Ormazd acreditando que através da manutenção da Criação, seu irmão se esgotaria de sua própria malignidade. Zurvan, o Pai, é simplesmente neutro e alheio a essa situação. 

Entre Anjos e Demônios: Ormazd cria os Ahuras (anjos), sendo seu principal Vohuman (“O Bom Pensamento). Ahriman cria os Arquidêmonios, sendo Akoman (“O Mal pensamento”) seu principal. 

Astrologia: Apenas a nível de curiosidade.  As constelações são associadas a Ormazd. Diz-se que Ormazd criou as 12 principais constelações, sendo Varak (Áries); Tora (Touro); Do-Patkar (Gêmeos); Kalachang (Câncer); Sher (Leão); Khushak (Virgem); Tharazuk (Libra); Gazdum (Escorpião); Nimasp (Centauro/Sagitário); Vahik (Capricórnio); Dûl (Aquário) e Mahik (Peixes). Talvez um dia isso também possa recair numa publicação futura. 

Az-Jeh, a Consorte do DemônioAinda no Bundhahish, os maus-espíritos companheiros de Ahriman ficaram confusos e duvidaram de si mesmos diante do valor e justiça dos homens criados por Ormazd. Então, eles pediram que Ahriman se erguesse e criasse conflito na Terra. Deste modo, Ahriman se mostrou a uma rainha chamada Az-Jeh e a seduziu narrando seus feitos. Assumindo uma forma de um garoto de quinze anos, ele possuiu Az-Jeh, pedindo a ela um filho. Ele não apenas ‘conduziu os pensamentos dela a ele’, como a tomou por esposa. Az Jeh ficou conhecida como uma mulher corrupta, adúltera e mãe de abominações. A principal delas foi o príncipe Zohak.

    Zohak viveu normalmente como um ser humano, um Príncipe, até que descobriu sua verdadeira origem, e que sua mãe, Az Jeh, havia tido Angra Mainyu por ser consorte. Ele então foi transformado por Ahriman em Azi Dahaka, um demônio-dragão com três cabeças (Dhomar, Azi Dahaka e Dahâk). Azi Dahak deveria devorar o Universo, dando fim a criação e sendo imortal. Mas foi derrotado por Thraeton, um guerreiro criado por Ormazd com este propósito, e é aprisionado na montanha vulcânica de Damawand, onde ele aguarda, acorrentado, ser libertado para cumprir seu papel na criação, como grande Devorador, no Dia de Ira, onde reinará por um século sob a Constelação de Escorpião, até que tudo chegue a seu fim e Ahriman e Ormazd se enfrentem em seu destino. 

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    Como conclusão, podemos observar que séculos antes do cristianismo sonhar em engatinhar, o Zend-Avesta já nos trazia não apenas um personagem ‘Opositor’, como também estabelecia uma forma de culto estruturado a essa figura icônica. O Culto dos Yatûs e Pairikas, a Feitiçaria chamada Yatûkih Dinoih, que podemos admitir ser uma forma primitiva e originária de ‘satanismo’ no estrito senso da palavra como referência a um culto opositor e marginalizado. 

Espero que o texto seja útil, é o último deste ano conturbado de 2020. 

Um bom Kali Yuga a vocês, que ainda cedem um minuto de seu tempo lendo o Arauto do Chaos. 

Ba Nam I Aharmân!

11.

Bibliografia: Zend-Avesta