sexta-feira, 9 de setembro de 2022

O arcanjo Raziel e o Livro dos Mistérios

 

O arcanjo Raziel e o Livro dos Mistérios

Eu sou obcecado por grimórios bem estruturados, o que, para minha tristeza, é um tanto raro. Boa parte deles não passa de listas e listas de nomes de espíritos e a quem eles supostamente obedecem, com imagens, fórmulas e instruções a serem seguidas à risca para construir as ferramentas e encenar os rituais (isto, se tanto) — nota 10 por praticidade, o que eu valorizo também, claro, mas acaba sendo tão interessante de ler quanto um manual para montar mobília ou uma lista telefônica. É por isso que obras como o Arbatel me fascinam — este grimório inclui junto com as descrições dos seus espíritos (ausentes em qualquer outra obra) um trecho de discussão ética sobre o papel e a atuação do mago no mundo — e, claro, como é o tema deste texto, esta fascinação é maior ainda em relação ao Sepher HaRazim, cujo título em português seria o Livro dos Mistérios ou Livro dos Segredos. Eu já o mencionei brevemente num momento anterior, no texto sobre magia angelical, e agora julguei que valia a pena dedicar um texto inteiro a ele, o que para mim é uma leitura que todos que têm interesse pelo assunto ou por misticismo judaico no geral deveriam ler.

Mas, primeiro, uma breve explicação. A palavra raz em hebraico (ao que parece, um empréstimo do aramaico, na verdade) quer dizer “segredo”, “mistério”, e este é o sentido em que ela surge em suas 9 aparições na Bíblia, todas no livro de Daniel. O nome do arcanjo Raziel, por sua vez, pode ser entendido como “mistério/segredo de Deus”, em tradições posteriores entendido como o arcanjo responsável pela esfera das estrelas fixas. Não é por acaso, portanto, que seja ele o responsável por revelar este livro ao mundo, na historinha interna que o próprio Sepher HaRazim conta. O capítulo de abertura é impressionante:

Este é um livro, dos Livros dos Mistérios, que foi dado a Noé, filho de Lameque, o filho de Matusalém, o filho de Enoque, o filho de Jerede, o filho de Maalaleel, o filho de Cainã, o filho de Enos, o filho de Set, o filho de Adão, por Raziel, o anjo, no ano em que ele entrou na arca, mas antes de sua entrada.

E Noé o inscreveu distintamente sobre uma pedra de safira. E aprendeu com ele a realizar feitos maravilhosos e aprendeu segredos do conhecimento e categorias do entendimento e pensamentos de humildade e conceitos de conselho, como dominar a investigação das camadas dos céus e como proceder no que diz respeito a tudo que há em suas sete habitações, a observar os signos astrológicos, examinar o caminho do sol, explicar as observações da lua e conhecer os caminhos da Grande Ursa, Órion e das Plêiades, declarar os nomes dos feitores de cada um dos firmamentos e dos reinos de sua autoridade, e por quais meios eles podem causar sucesso em cada coisa e quais são os nomes dos seus atendentes e quais oblações são feitas e eles e qual é a hora adequada para realizar cada desejo de quem vier até eles em estado de pureza. Noé aprendeu com este livro os rituais de morte e rituais de vida, para compreender o bem e o mal e buscar as temporadas corretas e momentos para os rituais, saber a hora de dar à luz e a hora de morrer, a hora de afligir e a hora de curar, interpretar sonhos e visões, causar combate e acalmar guerras e reinar sobre espíritos e demônios, para enviá-los a realizar o que quer que você deseje para que prossigam como escravos, observar os quatro ventos da terra, ter o conhecimento da fala dos trovões e saber a significância dos relâmpagos, prever o que acontecerá a cada mês e ter ciência dos afazeres de cada ano, seja para abundância ou fome, colheita ou seca, para paz ou guerra, ser como um dos reverenciáveis e compreender os cânticos do céu.

(O texto de fato é corrido assim, com raros pontos finais, por isso eu preservei essa estrutura esbaforida na tradução.)


O arcanjo Raziel, em pintura atribuída a Francisco de Zurbarán, séc. XVII. Repare nas chaves em suas mãos, que aludem a esse papel como portador dos mistérios.

Na sequência, ele continua falando de como Noé utilizou o livro para construir a arca e depois entregou a Shem, então a Abraão, Isaac, Jacó e seus descendentes, até chegar em Salomão, a quem “muitos livros chegaram”, mas que considerava este o mais “precioso, honrado e difícil de todos”. Esta narrativa, é claro, é divertidíssima, mas não é factual, para variar — trata-se de um livro antigo, mas não tanto. A data proposta pelos estudiosos é mais ou menos por volta do século IV d.C. às margens do Egito ou da Palestina, num contexto que, fora da comunidade judaica que o produziu, era primariamente pagão. A história de sua descoberta também é digna de nota: em 1963, o estudioso Mordecai Margalioth estava estudando, em Cambridge, uns fragmentos de textos retirados da famosa geniza do Cairo. A geniza é um sala especial de armazenamento localizada nas sinagogas onde os rabinos guardam textos sagrados já desgastados pelo tempo e manuseio, bem como qualquer outro material de uso litúrgico ou mundano que não sirva mais, mas que também não pode ser jogado fora por conter o nome de Deus. Margalioth esbarrou num trecho contendo uma fórmula mágica e, lembrando-se de ter visto coisas parecidas em outros fragmentos da geniza, pressupôs que fizessem parte de uma obra maior e começou a ligar os pontos (o que certamente não deve ter sido fácil, considerando que a geniza do Cairo é famosa por ter algo em torno de 400.000 documentos judaicos). No final, ele conseguiu reconstituir a obra completa, que foi publicada em hebraico em 1966. A versão que eu li — e que eu acredito ser a única ainda disponível ao público em geral— é a tradução comentada de Michael A. Morgan para o inglês, publicada pela Society of Biblical Literature, em 1983, sob o título Sepher Ha-Razim: The Book of Mysteries.

A princípio, quando eu fiz este texto, eu havia afirmado que não existia tradução para o português ainda, mas no começo do ano foi publicada uma edição com o título Livro dos Segredos, numa tradução empreendida pelo cabalista Yair Alon. Seu volume, autopublicado, está disponível no site da Editora Sêfer (aqui). O autor também é responsável pela publicação de traduções de outros textos mágicos da tradição judaica como a Charba DeMoshe (A Espada de Moisés) e o Livro do Anjo Raziel. Como eu fiquei sabendo dessa tradução só depois, neste texto eu fiz uma tradução própria a partir da edição em inglês mesmo.

O conteúdo do Sefer HaRazim

Certo, então sabemos que o SHR é o equivalente, em termos de grimórios, a um pornô com história, mas o que mais temos nele?

Bem, para começo de conversa, ele é dividido em sete capítulos, além da introdução com toda a historinha de Raziel e Noé. Esta divisão em sete, é claro, ecoa a concepção dos sete céus que remete ao misticismo mesopotâmico que, por sua vez, foi herdada pela cosmologia judaica e hermética, cada céu estando associado a um planeta clássico, na ordem Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno. Cada capítulo apresenta uma descrição daquele céu, com seu nome e os anjos que lá habitam — e aí, por sua vez, ele ensina como fazer para chamá-los e realizar aquilo que você deseja.

Por exemplo, diz o livro, o primeiro céu se chama Shamayim, a palavra em hebraico para “céu” puro e simples. Nele há sete tronos, onde se assentam “anjos feitores”1 que são obedientes aos homens praticantes de magia entendidos nas formas de se fazer libações a eles e recitar seus nomes. Todos eles foram criados “a partir do fogo e sua aparência é como fogo, e seu fogo flameja, pois surgiram do fogo”. Cada um deles rege um “acampamento” contendo um grande número de anjos menores.

O problema é que, como se sabe, o alfabeto hebraico não marca vogais — ou, pelo menos, a marcação de vogais é opcional e se baseia num sistema que surgiu séculos depois do SHR. Por isso, qualquer tentativa de vocalização desses nomes é apenas isso, uma tentativa. A pesquisadora Kimberly Stratton, num texto que compara o SHR com a Liturgia de Mitras, dos PGM, arrisca uma pronúncia, que eu acredito que possa ser útil para os interessados. O nome destes anjos do primeiro céu, portanto, seriam: 1) ‘WRPNY’L [Orfaniel], 2) TYGRH [Tygrah]; 3) DNHL [Danahel], 4) KLMYY’ [Kalmiyah], 5) ‘SYMWR [Asymor]; 6) PSKR [Pesaker] e 7) BW’L [Boel].

Como eu disse antes, no texto sobre magia angelical, dentre todos eles o ritual de Orfaniel talvez seja o mais praticável… o que não quer dizer muito, no entanto, pois este problema da falta de vogais do hebraico acaba pesando bastante. Ao mesmo tempo, os problemas do ritual de Orfaniel afetam praticamente todos os outros rituais deste livro, mas o dele é um dos poucos que não pede coisas absurdas também, como logo veremos.

Sua função é presidir sobre rituais de cura e, para invocá-lo, é preciso, na segunda hora da noite, esquentar carvões e queimar neles resina de mirra e olíbano enquanto se recita o nome de Orfaniel e então repetir 7 vezes o nome dos 72 anjos que obedecem a ele, com o pedido: “Eu, ____ filho/a de _____, vos solicito que concedam sucesso em curar a ____ filho/a de ____”. A lista dos 72 anjos segue abaixo:

Pois é, essa é a única parte que representa um obstáculo no que seria, de outra forma, um ritual praticável, pois é um verdadeiro desafio vocalizar os nomes destes 72 anjos assim, sem ter ideia das vogais. Muitos dos outros rituais deste livro funcionam por uma via semelhante, com um anjo que comanda vários outros e estas listas a serem recitadas, por vezes com outros atos mais exigentes.

Já Tygrah tem 80 anjos a seu dispor, todos eles “cheios de fúria”. O ritual ligado a ele é uma maldição poderosa que pode ser direcionada contra um inimigo, contra um credor, para afundar um navio, derrubar uma muralha fortificada, contra os negócios dos seus inimigos, para arruinar e destruir, causar exílio, doença, cegueira e aleijamento. Tygrah não está de brincadeira.

Para isso, é preciso ter sete vasilhas de argila que não tenham sido levadas ao forno e então, na sétima hora do sétimo dia do mês (lembrando que é o mês do calendário hebraico aqui, no qual hoje é o dia 10 de Adar, o último mês do ano), deve-se apanhar água de sete fontes sem deixar que elas se misturem. Elas devem ser expostas às estrelas durante sete noites. Na sétima você pega um frasco de vidro e sobre ele diz o nome de seu adversário, então despeja a água das sete vasilhas nele, destrói as vasilhas, atira seus cacos nas quatro direções e recita uma fórmula, com os nomes de Tygrah e seus 80 anjos, e conclui despejando a água nas quatro direções ou, para destruir o inimigo de vez, na sua casa. É evidente que é perigoso ensinar um ritual desses publicamente deste modo, por isso omito as fórmulas e nomes… porém, em todo caso, se as pessoas já costumam ter preguiça de fazer o Ritual do Pentagrama, que é infinitamente mais simples, toda a perturbação que é fazer este ritual já deve servir de empecilho para evitar seu mau uso2. Eu o comento aqui porque é um ritual fascinante em sua construção, haja vista que envolve a conjuração de anjos, a manipulação de materia magica, o que não é comum na magia judaica — de fato, é o que separa talmudicamente a teurgia permitida da bruxaria — , e um elemento astrológico que é a exposição da água às emanações das estrelas, uma técnica bem conhecida também da magia babilônica.

Agora, só para concluir o primeiro céu: Danahel tem apenas 36 anjos sob seu comando, com poderes oraculares; Kalmiyah tem 44 e tem o poder de atrair a boa opinião e favores do rei e outros poderosos; Asymor tem 62 e confere o poder de conversar com a lua, estrelas e fantasmas; Pesaker tem 37 e o poder de trazer de volta fugitivos; e, por fim, Boel tem, de novo, 44 anjos menores à sua disposição e tem domínio sobre oneiromancia (adivinhação pelo sonho). Dentre todos eles, Kalmiyah certamente parece o mais interessante, porém, muito para nossa frustração, seu ritual envolve (atenção!) matar um filhote de leão, arrancar seu coração e escrever sobre sua pele o nome dos anjos com seu sangue. É o tipo de coisa que, se não for um código para alguma outra coisa3, me faz perguntar se alguém algum dia de fato já fez um ritual desses. Se não for um código, é absolutamente inviável… e, se for, não temos a chave para decifrá-lo. Mas aguenta firme aí que eu já vou falar de possíveis alternativas.

Assim, chegamos ao segundo firmamento, chamado de “o céu dos céus”. Cito o texto: “Nele há geada e neblina e os tesouros da neve e tesouros da geada, anjos de fogo e anjos de água e espíritos de terror e espíritos de pânico. Este firmamento está repleto de medo e nele há inúmeros anjos constituindo exércitos e exércitos de oficiais e feitores. Neste firmamento há doze patamares e em cada um encontram-se os anjos em seu esplendor”. Para falar com eles, é preciso manter, durante 3 semanas, um estado absoluto de pureza ritual, no melhor estilo bíblico, evitando comer carne, beber vinho, ter contato com menstruação, leprosos, pessoas com doenças venéreas e animais mortos e (provavelmente o mais difícil) resguardar a boca contra qualquer palavra perversa e pecados. Não vou listar todos os anjos aqui, mas seus poderes incluem silenciar poderosos, despertar o amor no coração de uma mulher, afastar pessoas que pensem mal de você, causar insônia, acender um forno frio, curar alguém que tenha tido um derrame, expulsar animais perigosos de uma cidade, espantar espíritos malignos que causam morte de crianças e mães no parto, ser protegido contra todo ferimento durante a guerra, resgatar um amigo de um “mau julgamento”, restaurar o cargo de alguém que o tenha perdido e curar enxaqueca.

E assim por diante. Não vou descrever todos os céus, porque seria muito enfadonho e eu prefiro que cada um possa fazer isso por conta. Destaco, porém, que, se o segundo céu é marcado pela água, o terceiro céu é pelo fogo, sendo onde é guardado o trovão, o quarto tem rios de fogo e água que se misturam, o quinto é o encarregado da mudança dos meses4, e o sexto é o preparado para as almas dos justos. O sétimo e último é definido por uma luz infinita, sendo o mais próximo do trono de Deus e constituindo o armazém de onde descem as almas. O capítulo do sétimo céu é marcante, porque não fala dos anjos que se encontram nele, nem de rituais, sendo constituído apenas de uma longa (e belíssima) prece. Para quem tem interesse, a minha tradução desta prece segue no final do texto.

Como já comentei, a maioria dos rituais, tal como escrito, é meio impraticável, mas ainda assim é interessante de se ler por conta de sua absoluta estranheza. Eu já disse antes no meu texto sobre os PGM, mas a gente costuma ter uma ideia da religião na antiguidade como uma coisa muito estanque e acabada… e textos como este chegam que nem um trator em cima dessas preconcepções. Como comentam os autores[5], uma obra composta em bom hebraico mishnaico como é o SHR não poderia ser escrita por gente comum (analfabeta ou semianalfabeta, como era a maior parte da população), o que costuma causar muita confusão para os que esperam que esse tipo de magia prática seja coisa de classes baixas. Além do mais, o domínio de conceitos místicos e teológicos, que remetem à literatura do misticismo de hekhalot, uma das primeiras formas de misticismo judaico, protocabalístico, denuncia o alto nível de erudição de quem quer que tenha sido seu autor. No mais, que esta estrutura, com a revelação dos sete céus, dentro de um contexto de ascensão, conviva com rituais de propósitos mundanos sugere ainda uma não separação de duas categorias de práticas espirituais que as pessoas também prefeririam que não se misturassem, que é a teurgia, os rituais para elevação espiritual, e a taumaturgia, a feitiçaria, a magia prática.

E tem mais ainda: há influências pagãs no SHR. Mais de um comentador já apontou as semelhanças e possível influência, pelo menos em matéria de estrutura, com os PGM, mas não é só isso: deuses como Hermes, Afrodite e Hélios aparecem como convidados especiais. Por exemplo, no ritual de necromancia sob o anjo Asymor, do primeiro céu, você deve chegar à frente de uma tumba, com um ramo de murta na mão e um frasco com uma mistura de azeite e mel. A fórmula a ser recitada faz menção ao epíteto Kriophoros, literalmente “o que carrega o carneiro”, um dos nomes de Hermes, que aqui presumivelmente se encontra em seu papel como psicopompo. Outras infrações às leis judaicas, tais como codificadas pelos sábios do Talmude, que ainda estavam escrevendo neste período, além da propiciação de deuses pagãos e necromancia, inclui mais um ritual ligado a Asymor que envolve consumir um bolinho feito de farinha com sangue de um galo. E o pior: tudo isso ciente das exigências de pureza ritual, como as que são feitas para trabalhar com os anjos do segundo céu.

Até hoje ninguém sabe muito bem o que fazer com o SHR, como entendê-lo, e para mim isto é uma parte considerável de seu fascínio.

Outras formas de trabalhar com estes anjos?

As escolas do misticismo judaico e da magia ocidental inspirada nessas tradições desenvolveram nos séculos seguintes um formato muito mais simples de invocação e evocação por meio da magia cerimonial. Um tempo atrás eu cheguei a trocar uns e-mails com o Sam Block, do blog Digital Ambler, que eu sempre recomendo aqui, considerando a possibilidade de se tentar uma abordagem assim. Por questões de tempo, experiência e porque eu sou muito cuidadoso com rituais desse tipo, eu ainda não a arrisquei, mas abaixo segue a minha ideia.

Existe um método comum de sigilação chamado de rosa-cruz, que consiste em dispor as letras do alfabeto hebraico do seguinte modo:

Note que as letras mães (álef, mem e shin) se encontram no centro, as letras duplas na segunda camada e as letras simples na última. Utilizando-o, é possível construir sigilos para qualquer nome, e é uma ferramenta muito usada na magia angelical. É bastante simples e exige apenas um conhecimento básico do alfabeto hebraico. Echols, por exemplo, em Angels and Archangels, constrói os sigilos dos arcanjos dos 12 signos deste modo.

Se quisermos construir um sigilo para Orphaniel, por exemplo, para falarmos do primeiríssimo anjo da lista, bastaria começar com o álef, depois vav, resh, pe, nun, yod, álef e lamed (‘WRPNY‘L). Ficaria assim:

E tem mais: no nome de Orphaniel é possível reconhecer duas palavras do hebraico, ‘ôr (luz) e paney (face). Uma busca rápida pelos dois termos no livro dos Salmos nos dá o versículo 6 do Salmo 4, “Faze, ó Senhor, resplandecer sobre nós a luz do teu rosto!” — em hebraico, rabim omriym miy-yarenu tov nsah-aleynu ‘ôr paneykha YHWH. Com um sigilo, um salmo e um método de contato já aumentamos bastante as nossas chances de ligar para o número certo e fazer uma evocação bem sucedida.

É claro que, por enquanto, essas possibilidades são apenas especulações. Mas muitas portas seriam abertas se obtivéssemos sucesso nessa empreitada.

No mais, em Angels and Archangels, Echols associa Raziel à sephirah de Chokhmah e o chama de “príncipe das coisas ocultas”. Diz o autor: “Raziel é a força que nos leva a ter epifanias e revelações de como a magia e o universo operam, e esta informação costuma chegar a nós em sonhos, sinais e vislumbres ocultos da intuição e conhecimento interior”. Ele recomenda invocá-lo para “obter sabedoria e revelações mais profundas sobre qualquer tema” e “descobrir técnicas mágicas esquecidas ou jamais registradas”. Infelizmente, ele não nos dá um sigilo de Raziel, mas é fácil construí-lo com base no sigilo rosa-cruz[6], como se vê abaixo:

Dadas essas funções de Raziel e suas atribuições, por mais que lendárias, ao SHR, invocá-lo a fim de obter orientações para esse procedimento me parece uma outra possibilidade interessante, com a qual eu também pretendo trabalhar.

O legado do Sepher HaRazim

Agora, algumas palavras de encerramento, aproveitando que estamos falando do arcanjo Raziel. Como dito, o SHR só foi redescoberto no século XX, com a pesquisa de Margalioth. Porém, é certo que ele teve ampla circulação antes de desaparecer e isso deixou marcas, inclusive, em um outro grimório muito mais famoso, o chamado Sepher Raziel HaMala’akh, o Livro do Anjo Raziel. Apesar de se apresentar como um livro ainda mais antigo, tendo sido entregue por Raziel não a Noé, mas a Adão e Eva (!) ao serem expulsos do Paraíso, trata-se de um patchwork ainda mais tardio. Ele reúne, sim, um material mais antigo, incluindo um trecho retirado do próprio SHR, mas não deve ser anterior ao século XIII e a primeira versão impressa saiu só em 1700, quando fez um grande sucesso — inclusive, dizem, acreditava-se que só o fato de se ter um exemplar dele em casa já era o suficiente para se prevenir incêndios.

Identificar os manuscritos e suas variações anteriores a essa versão mais fixada pela imprensa é um pesadelo, e eu não pretendo nem começar a falar disso. Por ora, basta comentar que ele inclui um trecho muito breve do SHR, incluindo os anjos de cada firmamento, porém sem dar detalhes de seus rituais, em meio a muitos outros livros cabalísticos e protocabalísticos, como partes da obra de Eleazar de Worms e o Shi’ur Qomah, com vários trechos sobre astrologia e incluindo uma descrição do Shem HaMephorash, os 72 nomes de Deus. É um livro também de grande importância, mas não tem muitas traduções. Temos a edição recente de Yair Alon, de que falamos acima, que é um volume bastante reduzido. Já para o inglês, eu sei da tradução de Steve Savedow, com o título Sepher Rezial Hemelach — Book of the Angel Rezial, que saiu pela Weiser. Embora sirva para ter uma ideia da coisa toda, o hebraico do Savedow não é dos melhores e a tradução é sofrida (ninguém menos que o Rabbi Geoffrey Dennis, autor da Encyclopedia of Jewish Myth, Magic and Mysticism, aparece nas resenhas da Amazon para massacrar esse livro). Eu ainda não tentei comparar essas duas traduções, mas a diferença de tamanho me parece muito estranha, e certamente os tradutores devem ter utilizado manuscritos diferentes.

A edição de Don Karr e Stephen Skinner pela Golden Hoard, Sepher Raziel: Liber Salomonis, que faz um trabalho fino de edição desses textos clássicos, é um outro grimório totalmente diferente, baseado em um dos outros manuscritos, possivelmente a versão traduzida para o latim no século XIII na corte de Alfonso X, se eu entendi direito. Por fim, quem quiser consultar o SHR propriamente, com a devida introdução, notas e comentário, deverá seguir para a edição supracitada do Michael A. Morgan.

Eu deixo vocês agora com a prece de encerramento do SHR, que pode ser útil para quem tem essa abordagem abraâmica em sua prática mágica.

A Prece do Sétimo Céu

Diante Dele abrem-se os livros de fogo
E à sua frente correm rios flamejantes.
Quando se levanta, os deuses sentem medo
E, quando Sua voz ressoa, tremem os pilares
E Sua voz abala os portões.
Seus soldados estão de guarda à Sua frente
Mas não contemplam Seu semblante.
Pois está oculto de todo olhar.
E ninguém pode vê-Lo e continuar vivo.
Sua aparência é oculta de todos
Mas a aparência de ninguém se oculta Dele.
Ele revela coisas profundas da escuridão
E conhece os segredos da obscuridade.
Pois a luz mora com Ele
E Ele a veste como a um traje.
Ele se assenta sobre a luz como um trono
E é a luz uma muralha ao Seu redor.
Os Hayot e Ophanim O sustentam
No voo com suas asas.
Seis asas tem cada um
E com as asas cobrem os rostos
E desviam o olhar para baixo.
Seus rostos se voltam aos seus companheiros
E não levantam o olhar
Por conta de seu medo e terror.
Tropas sobre tropas aguardam umas sobre as outras diante Dele
E mergulham em rios de pureza
E se envolvem em trajes de fogo branco
E cantam, humildes, com voz forte:
“Santo Santo Santo é o Senhor dos Exércitos
O mundo inteiro está repleto de Sua glória”.
Ele antecede a todas as criaturas;
Ele existia quando ainda não havia terra e céus.
Ele está só;
Não há estranho para Ele.
Com Sua força sustenta os céus.
E em todos os céus Ele é temido,
E pelos anjos todos venerado.
Pelo sopro de Sua boca eles foram criados
E para glorificar Seu poder estabelecidos.
Ele age só, e quem pode rejeitá-Lo?
Seus mandos ninguém pode anular.
Pois Ele é o Rei dos Reis dos Reis,
Reinando sobre todos os reis da terra.
E exaltado entre os anjos do céu.
Ele vasculha os corações antes de serem formados,
E sabe os pensamentos antes de ocorrerem.
Abençoado seja Seu nome
E abençoada a grandeza de Sua glória
Por eras e eras
E por uma eternidade de eternidades.
Pois não há Deus fora Dele
E não há Deus além Dele.
Abençoado seja Seu nome a cada geração
E abençoado nos céus nas alturas.
Abençoado é Seu nome com Sua força
E abençoada sua menção com a beleza de Seu poder.
Pois tal como é Seu nome é Seu louvor, como fora dito:
Segundo é o teu nome, ó Deus, assim é o teu louvor, até aos fins da terra;
a tua destra está cheia de justiça.

Ele traz os puros para O reverenciarem
E em Sua fúria afasta os impuros.
Ele move montanhas com Sua força e poder,
Elas não sabiam quando as revirou em Sua fúria.
Ele detém o mundo como um cacho de uvas,
Gerando tudo que já houve e será.
Ele é o Ancião dos Dias,
E com Ele segue a prosperidade eterna e a virtude.
Abençoada a glória de Sua habitação
E abençoado seja Ele na beleza de Sua dignidade.
De conhecimento Ele preenche os corações dos que O temem
Para buscarem e saberem o medo e poder de Seu nome.
Abençoado Seu nome dentro da morada de Seu esplendor
E abençoado na beleza de Sua força.
Abençoado Seu nome nos silos de neve
E abençoado nos rios de chamas.
Abençoado Seu nome nas névoas da iluminação
E abençoado nas nuvens de glória
Abençoado Seu nome nas miríades de carruagens
E abençoado nos milhares de milhares
Abençoado Seu nome nas cadeias de fogo
E abençoado nas cordas de chamas
Abençoado Seu nome nos estrondos do trovão
E abençoado nos clarões dos relâmpagos.
Abençoado Seu nome nas bocas de todos sobre a terra
E abençoado nas profundezas da terra.
Abençoado Seu nome entre todos os desertos
E abençoado Seu nome entre as ondas do mar.
Abençoado Seu nome sozinho em Seu trono
E abençoado nas moradas de Sua majestade.
Abençoado Seu nome na boca de todos que vivem
E abençoado nos cânticos de toda criatura.
Abençoado seja o Eterno para sempre,
Amen, Amen, Halelujah.

(tradução minha, a partir do inglês de Michael A. Morgan)

* * *

[1] A tradução para o inglês diz overseer, o que poderia ser traduzido de forma mais imediata como “supervisor”. Mas aí me faz pensar menos em hierarquia celeste e mais em hierarquia empresarial, por isso optei por “feitor”.

[2] Existe exatamente uma pessoa neste país a quem eu considero que seria razoável lançar uma praga dessas, mas, de resto, a minha postura geralmente quanto a magia maléfica é de desaconselhá-la.

[3] Nos Papiros Gregos Mágicos, existe um trecho onde consta meio que um glossário para vários itens bizarros que na verdade seriam códigos para plantas. Infelizmente não temos nada do tipo aqui.

[4] Essa parte me deixa um pouco perplexo, porque seria de se imaginar que, segundo a cosmologia clássica, o primeiro céu pertencesse à Lua, o segundo a Mercúrio, o terceiro a Vênus e o quarto, não o quinto, ao Sol, sendo o seu rumo tradicionalmente entendido como o responsável pela mudança dos meses no seu caminhar pelo zodíaco. Mas, bem, é o livro dos mistérios, né.

[5] Além da introdução de Morgan e do artigo da Stratton, uma outra obra que eu conferi foi o texto de Jack Lightstone, “Christian Anti-Judaic in its Judaic Mirror: the Judaic Context of Early Christianity Revised”, no livro Anti-judaism in Early Christianity (volume 2), editado por Stephen G. Wilson. Apesar de o foco dos textos aqui ser outro, como o título indica, Lightstone dedica algumas páginas para falar do SHR.

[6] Existe um outro sigilo atribuído a Raziel que eu encontrei gravado em anéis e pingentes que podem ser comprados na Amazon gringa e no Ebay e algumas outras lojas, mas não consta lá a fonte de onde o sigilo foi retirado.