quarta-feira, 7 de setembro de 2022

A Abadia de Thelema

 

A Abadia de Thelema


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A Abadia de Thelema

Cefalú torna real minha ideia de paraíso.
Aleister Crowley

O Homem de Deus

O monge era formidável. Indignado com a hipótese de passar o longo Inverno sem sua bebida, pois uma turba lhe depredava as vinhas enquanto seus correligionários, apavorados, tocavam os sinos e entoavam litanias contra hostium insidias, tomou a viga de uma cruz, que bem dava para dura lança, e se lançou contra os invasores em grande carnificina.

Frei João era seu nome, e a façanha o fez convidado na corte do gigante Grangousier, onde iniciou sua amizade com o célebre Gargantua nas véspera de mais uma batalha contra o rei Picrochole, que lhes invadira o país por conta de alguns bolos roubados. Homem de variados conhecimentos, foi o bom frei que ao nervoso Gargantua ensinou não haver nada melhor para insônia do que sermões ou preces: decididos então aos sete salmos penitenciais, dormiram bem logo após as primeiras palavras…

Não que Frei João as tivesse poucas. Na manhã seguinte, encorajava o pequeno exército de Gargantua com a mais comovente das prédicas:

— Minhas crianças, não temam e nem duvidem, eu vou conduzi-los em segurança. Deus e São Benedito estejam conosco! Se eu tiver força na medida da minha coragem, pela morte, eu vou depená-los como patos. Eu nada temo além da grande ordenança; mas ainda eu sei de um encanto por meio de prece, que o subsextão de nossa abadia me ensinou, que preserva a pessoa da violência das armas e de todos os tipos de arma- de-fogo e outros engenhos; mas não vai me servir de nada, porque eu não acredito nele. Entretanto, eu espero que meu bastão da cruz irá neste dia causar partidas diabólicas contra eles!

E, com efeito, logo no primeiro encontro, foi o bom monge à carga contra um inimigo dez vezes maior. “Que diabo, o que mais devemos fazer? Vocês estimam homens pelo número mais do que pela coragem e valentia? Ataquem, diabos, ataquem!” Causando mais uma matança até cair prisioneiro. Mas não por muito tempo: logo tratou de matar seus dois vigias, mesmo um deles gritando que se rendia e entregava. “Eu te rendo e entrego,” disse o monge, “aos diabos todos do inferno.” E retornou vitorioso à corte, não sem antes causar mais muitas mortes e capturar o capitão da invasão.

Uma Recompensa Real

Mas quem era esse religioso extraordinário, tão capaz de usar o madeiro da Cruz na defesa do seu vinho? Qual a razão de sua presença quando viemos falar da Abadia que a Grande Besta criou na idílica Cefalú?

Apesar do menor número, era o exército de Gargantua dotado de tantos talentos extraordinários que não tardou o gigante a desbaratar seus inimigos. Chegou a vez de grandes festas e generosas recompensas, e a hora de começarmos a entender a utopia de Aleister Crowley.

Após premiar todos seus capitães, sobrara apenas o monge, mas este recusava ser tanto abade em Sevilha quanto em Bourgueil ou Sant Florent, ou mesmo de todas, caso quisesse. Mas a resposta do monge era mesmo peremptória: “Como posso ser capaz de governar os outros, eu que não tenho plenos o poder e o governo de mim mesmo?” O que ele solicitou, afinal, foi licença para criar uma abadia a seu jeito e gosto, e, agradado com a idéia, Gargantua ofereceu a ele o país de Theleme às margens do rio Loire, onde, atendendo ao pedido do bom frei, instituiu sua ordem religiosa ao contrário de todas as outras.

Faze o Que Tu Queres

Primeiro, disse Gargantua, você não deve construir um muro ao redor do seu convento, pois todas as outras abadias são fortemente muradas e cercadas. Como em certos conventos do mundo costuma-se lavar o chão caso nele pise uma mulher, na nova abadia, caso nela entre algum membro de alguma ordem religiosa, todos os quartos serão limpos e lavados. E como em todos os outros monastérios tudo é compassado, limitado e regulado pelas horas, foi decretado que nesta nova estrutura não haveria relógio ou marcador, mas que, de acordo com as oportunidades e ocasiões, todas as horas fossem aproveitadas, pois, segundo Gargantua, a maior perda de tempo é justamente contar as horas. Não há maior desperdício no mundo do que guiar e dirigir seus afazeres pelo som de um sino, e não por seu próprio julgamento e descrição! E como não iam parar nos monacatos mulheres que não fossem feias, tolas, corruptas, inválidas e desfavorecidas, e nem enclausurados quaisquer homens que não fossem doentes, sujeitos a deflexões, mal-nascidos ou esquisitos (pois, como bem ponderou o monge, para que servia uma mulher que não fosse nem bela e nem boa? Para ser monja, concluiu Gargantua), foi ordenado que nesta nova ordem religiosa só seriam admitidas mulheres belas, bem criadas e de disposição agradável, e também apenas homens bem apessoados e bem educados. E não poderiam lá haver homens se não houvessem mulheres, e vice-versa, ao contrário dos demais conventos, onde os sexos só se misturavam às escondidas. Ao contrário das ordens onde, após o período de probação, era se obrigado a servir pelo resto da vida, dali se poderia partir em paz e contentamento quando bem se quisesse. Em oposição aos votos de castidade, pobreza e obediência, todos deveriam ser honradamente casados, ricos e viverem em liberdade. As mulheres poderiam ser iniciadas dos dez aos quinze anos, e os homens dos doze aos dezoito.

A Arquitetura da Utopia

Gargantua fez construir um prédio hexagonal, com uma torre em cada canto. No lado Norte, ladeando o Loire, estava a torre chamada Arctica. Indo em direção ao Leste, havia outra chamada Calaer, a seguir Anatólia, Mesembrina, Hespéria e Criere. Eram seis pavimentos, contando o subsolo, e o conjunto todo era mais magnificiente do que os festejados palácios de Bonnivet, Chambourg ou Chantilly. Os novos religiosos contavam com grandes bibliotecas em Grego, Latim, Hebraico, Francês, Italiano e Espanhol. Haviam galerias de arte e locais para a conversa, o desporto e o descanso. E, entre as torres Anatólia e Mesembrina, um grande arco, onde se lia em grandes letras antigas:

Aqui não entram vis fanáticos, hipócritas
Macacos exteriormente devotados, baixos “snites”
Estufadas, retorcidas bestas, piores do que os Hunos
Ou Ostrogodos, precursores dos babuínos
Cobras amaldiçoadas, fomentadores de divisão e debates
Em outra parte, não aqui, façam venda de seus enganos.
Aqui somos muito
Folgados e alegres,
E livres de todo enredamento,
Graça, honra, louvor, deleite
Aqui residem dia e noite
Corpos aptos alinhados
com uma boa mente
buscam com vigor
Graça, honra, louvor, deleite.
A santa e sagrada Palavra,
Possa sempre conceder
A todos nós em comum
Tanto a homens e mulheres
Um escudo e uma espada espirituais
A santa e sagrada Palavra.
Deus nos dá, Deus nos perdoa
E de todos os males nos livra
Para que nós o tesouro
Possamos colher de prazer
E banir tudo o que for aflitivo,
Deus nos dá, Deus nos perdoa.

Um Passeio Pela Abadia

No meio da corte inferior havia uma fina fonte de belo alabastro. No topo, estavam as Três Graças com suas cornucópias, ou chifres da abundância, e lançavam água de seus seios, bocas, ouvidos, olhos e demais passagens abertas do corpo. O interior do prédio, nesta corte inferior, estava suspenso sobre grande pilares de pedra calcedônia, e o mármore porfírio fazia arcos em uma boa forma antiga. Entre estes estavam espaçosas galerias, longas e largas, adornadas com curiosas pinturas, e os chifres de bodes e unicórnios, e com rinocerontes, os cavalos aquáticos chamados hipopótamos, os dentes e chifres de elefantes e outras coisas dignas de serem vistas.

No exterior, ficavam o hipódromo, o teatro, a piscina. Ao lado do rio, um belo jardim de prazer, e no meio deste um glorioso labirinto. Havia quadras para o tênis, e, próximo da torre Criere, um pomar repleto com todas as árvores frutíferas, arrumadas em ordem quincuncial. Ainda se via um grande parque, locais para o treino de tiro e do arco, estábulos, a falcoaria, o canil.

A decoração era caprichada e rica, com toda a sorte de tapeçarias e enfeites, de acordo com cada estação do ano. As camas eram todas adornadas. Em todo quarto havia um espelho de cristal puro colocado em uma moldura de ouro fino, encrustado com pérolas, e de tal tamanho que a pessoa podia se ver por inteiro. Os cômodos eram providos com as mais sutis essências, como o perfume de rosas, água de cheiro de laranja e angélica, e, em cada um, uma cesta de onde evaporavam as exalações odoríferas das essências aromáticas preferidas..

Um Novo Estilo de Vida

É de se notar que as mulheres de Theleme se trajavam de púrpura e escarlate, sobre os quais se usava ricos adereços. O homens portavam todos adagas douradas.

Suas vidas não eram gastas em leis, estatutos, ou regras, mas de acordo com suas livres vontades e prazeres. Eles saíam da cama quando achavam bom; eles comiam, bebiam, trabalhavam, dormiam quando a isso de determinavam e se achavam dispostos. Ninguém os acordava, ninguém os constrangia a comer, beber, e nem a fazer qualquer outra coisa, pois assim estabelecera Gargantua. No todo, sua regra e a mais estrita norma de sua ordem era apenas esta cláusula, a ser observada:

Faze o que tu queres.

Porquê homens que são livres, bem-nascidos, bem-criados e conversados em companhias honestas, tem naturalmente um instinto e inclinação que os prontifica a ações virtuosas e os afasta do vício, o que é chamado de honra. Estes mesmos homens, quando por baixa sujeição e constrangimento são colocados para baixo, afastam-se dessa disposição nobre pela qual eles eram antes inclinados à virtude, para sacudir e quebrar esse laço de servidão, no qual são tiranicamente escravizados; pois é concorde com a natureza humana anelar pelas coisas proibidas e desejar aquilo que nos é negado.

Por esta liberdade eles entraram em uma muito louvável emulação, de todos fazerem aquilo que viam agradar a um deles. Se um dos galantes ou uma das damas dizia “Vamos beber”, eles todos bebiam. Se alguém dissesse “Vamos jogar”, todos jogavam, e mesmo assim em toda e qualquer atividade.

Tão nobremente eram eles ensinados, que não haviam um sequer entre eles que não pudesse ler, escrever, cantar, tocar vários instrumentos musicais, falar cinco ou seis línguas, e compor em todas elas muito elegantemente, tanto em verso quanto em prosa. Nunca se viu tão galantes cavaleiros, tão nobres e tão meritórios, tão destros e habilidosos tanto a pé quanto a cavalo, nem mais ágeis e rápidos, ou melhor treinados em todos os tipos de armas quanto lá havia. Nunca se viu damas mais próprias e belas, mais aptas em qualquer ação livre e honesta, do que lá.

Um Santo Libertário

A utopia mais antiga criada pelo ser humano foi a república platônica, onde homens e mulheres, selecionados e treinados para serem os filósofos-guardiães da cidade, dividiam as responsabilidades tanto na paz quanto na guerra. A Abadia de Theleme é uma das muitas variações dadas ao tema no passar do tempo, e concorda com o fato de que uma sociedade ideal só é possível com seres humanos ideais, e isto só pode vir a existir em um ambiente educacional apropriado. Seu visionário foi François Rabelais, cujos escritos são considerados como precursores da Lei de Thelema, e contém até mesmo uma passagem que Crowley bem achou profética a seu respeito:

“O que est a reverer / Cil que pourra en fin perseverer”

Aquele que é apto a perseverar até o fim, interpretou Crowley no seu artigo “Os Antecedentes de Thelema”, deve ser abençoado com adoração. E o que é este “Eu vou perurar até o fim”, continua, “mas , o motte mágico na primeira iniciação do Mestre Therion?”

Rabelais nasceu em data incerta lá pelo último quarto do Século XIV, em Touraine. Ele estudou com os Beneditinos e depois com os Franciscanos, aos quais se juntou por quinze anos e dos quais recebeu as Ordens Santas. Mas o jovem religioso tinha uma sede de conhecimentos que era bem da época, pois estávamos já no Renascimento, e da qual os Franciscanos não pareciam compartilhar. Daí deixar o convento, para mais tarde, com a mediação do Bispo Geoffroy d’Estissac e o perdão papal, entrar na abadia Beneditina de Maillezais. Dizem as más línguas que o favor episcopal lhe passava pelo rabo… Em 1530 foi estudar Medicina em Montpellier, se tornando logo professor de anatomia e médico-chefe. Foi pai de uma criança que não sobreviveu, e, levado a Roma como médico, obteve novamente o perdão do Papa da vez . Recebeu o grau de Doutor de Medicina em 1540, e depois passou a levar uma vida itinerante em Turin, Metz e Paris, onde faleceu no final da década de 50, em ano incerto. Alguns dizem que morreu como livre-pensador, e que sua palavras finais foram: “Fechem as cortinas, a farsa já foi encenada.”

Rabelais escreveu várias obras, mas se tornou mesmo famoso com “La Vie de Gargantua et de Pantagruel”, dividida em cinco livros, dos quais o primeiro e o último são os mais importantes no entendimento de Thelema. No Livro I encontramos a criação da Abadia e a famosa frase “Faix que tu veux”, e, no último, acompanhamos Pantagruel até o Oráculo da Garrafa e seu segredo final, que é a palavra “TRINC”, que Crowley utilizou no seu Liber Aleph:

Agora, ao Fim de tudo, chegou eu ao Seu Princípio, além do Por-vir, e grito alto minha Palavra, tal como foi dada ao Homem por aquele Tio Alcofribas Masior, o Oráculo da Garrafa de BACBUC, e sua Palavra é TRINC.

A resposta do Oráculo, conforme revelou a Sacerdotisa Bacbuc após consulta ao Livro Sagrado, significava que o confuso Panurge deveria encher a cara para encontrar, dentro de si mesmo, a resposta para se deveria ou não casar. O que aqui se implica é que, descondicionado pelo efeito do vinho, o homem encara aquilo que realmente deseja, e Panurge, mesmo receoso de um dia ganhar belo par de chifres, descobre que realmente queria o matrimônio. Crowley indicava por isto que, liberada dos bloqueios impostos pela sociedade, família e cultura, a Verdadeira Vontade se manifesta naturalmente, e o ambiente Thelêmico deveria, assim, ser o meio tanto de descoberta quanto de apoio à sua realização.

François Rabelais foi canonizado na lista de Santos da Ecclesia Gnóstica, e a Enciclopédia Católica, a respeito da sua obra, conclui que “No todo ela exerce uma influência condenável”.

Um Mestre em Apuros

Foi em um dos períodos difíceis da sua vida que Crowley decidiu se estabelecer em Cefalú. Ele já havia gasto sua herança em viagens pelo mundo, expedições aos Himalaias e publicações caras de seus próprios livros, e experimentara momentos de penúria nos Estados Unidos. A campanha da imprensa sensacionalista contra A Grande Besta já se iniciara, com os ataques virulentos de Horatio Bottonley no periódico John Bull. O fato do próprio Horatio ter sido depois condenado a sete anos de prisão por fraude, e ter morrido na pobreza seis meses depois de libertado, em 1927 (Crowley alegou em razão de seu poder mágicko…), não serviria para amenizar o desgaste da reputação de Crowley, que, ironicamente, nunca foi condenado judicialmente.

Com problemas financeiros, perseguido pela imprensa marginal, sofrendo seriamente de asma e bronquite e responsável por duas mulheres, uma delas grávida, e mais dois enteados, Crowley resolveu mudar de ares, procurando um lugar onde sua saúde pudesse se restabelecer, e onde, também, fosse possível fundar uma comunidade onde iniciados praticassem a Magick e aprendessem sobre as bases da Lei de Thelema, bem longe da hipocrisia do mundo. Esta comunidade seria

(…) um arquétipo de uma nova sociedade. O mais importante princípio ético é o de que cada ser humano tem seu próprio e definido objetivo de vida. Ele tem todo o direito de realizar seu propósito, e nenhum de fazer qualquer outra coisa. É a função da sociedade ajudar cada um de seus membros a alcançar este objetivo; por consequência, todas as regras deveriam ser feitas, e todas as questões de conduta decididas, pela aplicação deste princípio às circunstâncias.
in Confissões

Cefalú

Não se sabe ao certo de onde Crowley tirou a ideia de ir a Cefalú, mas sua decisão foi tomada graças a uma consulta ao I Ching. Ele provavelmente procurou por lugares propícios no atlas, utilizando os Hexagramas divinatórios para descreverem o local ideal ou fornecerem augúrios. Enquanto Leah Hirsig, sua atual Mulher Escarlate, ia a Londres com a filha recém-nascida, Poupée, ele partiu com Ninette Shumway e os garotos Hansi e Howard, parando em Marselha, em Nápoles (onde enrabou Ninnete durante um ritual, para favorecer magickamente a viagem…), chegando, afinal, em Cefalú no dia 31 de Março de 1920.

Nós lá chegamos no último dia de Março. Eu não poderia duvidar de que os deuses nos guiaram os passos par que encontrássemos um hotel tão sórdido, sujo e desagradável. Eu jurei que não passaria ali mais uma noite. Os deuses se erguerão conforme a ocasião. Um homem chamado Giordano Giosus apareceu depois do almoço e disse ter uma vila para arrendar. Qualquer um que conheça a Itália irá apreciar a magnitude deste milagre. Para se realizar o mais banal negócio é preciso o máximo de boa sorte pelo menos um mês antes de se fazer o primeiro gesto.

Giosus me levou até o alto da colina e ei-lo! Uma vila que bem podia ter sido feita sob encomenda. Ela preenchia todas as minhas condições; desde tendo um pouco de água deliciosa até um vasto estúdio aberto para o Norte. Os deuses não correram riscos. Eles queriam que eu vivesse ali e se guardaram contra qualquer possível perversidade da minha parte plantando duas altas palmeiras da Pérsia perto da casa. Elas podiam bem ser as mesmas árvores da Villa Caldarazzo, as quais, como já disse, eu havia tomado como um sinal nos dias de Ab-ul-Diz. Fiz uma barganha ali mesmo, mandei buscar a família, e a mobília com todos nossos pertences foi instalada no mesmo dia. Nós contratamos um homem para fazer as compras, cozinhar e lavar; e lá estávamos tão em casa quanto uma múmia em uma pirâmide, no ponto mais adorável do Mediterrâneo.”

Cefalú é uma pequena cidade medieval, construída no local de um antigo agrupamento Sicaniano e, depois, Grego, a 75 km de Palermo, na costa Norte da Sicília. Seu nome deriva de “Cephaloedion”, que significa cabo. Sua arquitetura apresenta os traços das ocupações Normandas, árabes e Bizantinas, principalmente na Catedral. A paisagem é dominada pela Rocha, uma grande formação abrupta quase a beira-mar, onde se encontram as ruínas do Templo de Diana, cuja fundação megalítica é uma das estruturas arqueológicas mais antigas da ilha e, no topo, os restos da fortificação Normanda dos Séculos XI e XII que dominam toda a paisagem.

Paradigmas

O período de 3 anos que Crowley passou em Cefalú é extremamente importante para a compreensão da proposta Thelêmica, pois ali ocorreram vários fatos que lançam luz sobre as dificuldades práticas do ideal proposto por Crowley, assim como nos fornecem, pelo menos, um bom exemplo da eficácia do seu método. Além de ter sido a primeira tentativa de se colocar em prática o modus vivendi pregado pelo Livro da Lei, a Abadia também se notabiliza por ter sido o palco da última e maior iniciação de Crowley, a assunção ao Grau de Ipssissimus.

Crowley seguiu por toda a sua vida o sistema de iniciações proposto pela Golden Dawn, baseado na árvore da Vida. As realizações do magista são ali definidas em dez etapas e três ordens, a propriamente chamada de Golden Dawn indo de Malkuth a Netzah, contendo os Graus de Neophyto 1=10, Zelator 2=9, Practicus 3=8 e Philosophus 4=7, a Ordem chamada R.C indo de Tiferet a Hesed, Adeptus Minor 5=6, Adeptus Maior 6=5 e , Adeptus Exemptus 7=4. Até aqui, o iniciado havia alcançado a perfeita maestria mágicka, tendo descoberto sua Verdadeira Vontade e os meios de realizá-la. A Terceira Ordem, a única que é propriamente chamada A.·.A.·. ou também S.S. (siglas cujos verdadeiros significados só os iniciados sabem), permanece reservada àqueles capazes da difícil ordália de cruzar o Abismo, após a qual se encontram os Graus de Magister Templi 8=3, Magus 9=2 e Ipssissimus 10=1.

A iniciação de Crowley ao Grau de Magister Templi ocorreu em 1909, durante os dias de peregrinação pelo Saara ao lado do seu discípulo e amante Victor Neuburg. Durante esse período, os dois invocaram os restantes 28 Aires do Sistema Enochiano (os Aires 30 e 29 haviam sido visitados por Crowley em 1900 no México), e seu relato compreende a obra chamada Liber 418 — A Visão e a Voz, um dos textos mais importantes para o entendimento do processo mágicko do Novo Æon. A tarefa do Mestre de Templo nele é definida como a de cuidar de um jardim, onde cada planta recebe o regime que lhe é adequado. Uma delas, eventualmente, se tornará um novo Mestre de Templo, mas não compete a este tentar divinar o evento, mas apenas cumprir a obrigação do Grau.

O Grau de Magus foi alcançado durante a estadia de Crowley nos EUA, de 1914 a 1919. A função do Magus, sendo a de proclamar a Palavra que define o Æon, com a qual ele deve se identificar em todos os aspectos, teria sido apenas compartilhada na História por um pequeno grupo de escolhidos, além de Crowley: Lao-tze, Gautama, Krishna, Dionísio, Tahuti, Moisés e Maomé.

O último nível a ser alcançado era, portanto, o de Ipssissimus, do qual pouco ou nada se sabe realmente. Considera-se o Ipssissumus demasiado elevado para o entendimento humano, estando no mesmo nível dos deuses e além do bem e do mal, o que, entretanto, pode ser dito em geral de todos aqueles que cruzaram o Abismo, se tornando Mestres Secretos. Crowley hesitou em assumir o Grau:

Eu estou mortalmente temeroso de fazê-lo. Eu temo ser chamado a realizar algum ato insano para provar meu poder de agir sem nenhum escrúpulo.

Mas, ele foi em frente, entrando no Templo na primavera de 1921, acompanhado pela Mulher Escarlate Alostrael. Nada escreveu sobre a cerimônia, tendo entrado e saído nu, e apenas registando no final:

Como um deus vai, eu vou.

Não é certo se Leah chegou a saber do propósito da cerimônia, pois Crowley jurou guardar segredo, mantendo a informação do seu novo Grau apenas no seu Diário, e fazendo dela, anos mais tarde, uma breve menção no Magick — Book Four:

Eu, a Besta 666, levanto a minha voz e juro que eu mesmo fui erguido por meu Anjo — também me fez Ele um Magus. Sim, ele realizou em mim uma Obra de Maravilha além desta, mas sobre este assunto eu jurei guardar a minha paz.

É parte deste sucesso individual, o resto do empreendimento estava bem abaixo das idílicas descrições dadas por Crowley na sua autobiografia Confessions, que começou a ser ditada ainda em Cefalú. O difícil ideal de comportamento Thêlemico exigido dos membros da Abadia não impedia os atritos por ciúmes entre Leah, a Mulher Escarlate, e Ninette, a Primeira Concubina. Ele mesmo tinha dificuldades de suportar o arrendatário da Abadia, o Barão Carlo la Calce, que acabou engravidando Ninette, o que vem a demonstrar a tese há muito defendida por mim, de que todo mundo é muito Thelemita até levar um chifre… Confrontações entre Crowley e outros membros, como Mary Butts e Betty May, que, acompanhando seus maridos, tinham horror à Grande Besta, eram comuns. Crowley ainda cobrira as paredes da casa com as famosas pinturas referentes à magia sexual, o que causava choque e desconforto em algumas pessoas. O ideal Thêlemico já se mostrava, desde a sua primeira tentativa, difícil de ser aplicado, basicamente porque as pessoas envolvidas estavam muito abaixo daquilo que delas se esperava. Um dos membros da comunidade, por exemplo, Cecil Frederick Russel, foi já paradigma do tipo de perturbado mental que Thelema viria a ser pródiga em alistar, para quem Do what thou wilt seria apenas uma desculpa filosófica para se dar livre freio a todos os caprichos de uma personalidade desestruturada. Russel chegou em Cefalú em Novembro de 1920, tendo conhecido Crowley pessoalmente em 1918, e sendo um dos primeiros membros da A.·.A.·. nos Estados Unidos. Ele havia sido expulso da Marinha após ingerir uma alta quantidade de cocaína e tentar mover um navio sozinho, sendo, afinal, contido à força. Russel se recusava frontalmente à qualquer noção de disciplina e autoridade, e, quando teve que ceder seu espaço na casa para um recém-chegado, Frank Bennet, exilou-se no alto da Rocha, onde jurou permanecer por oito dias dedicado às mais severas austeridades, como, por exemplo, não permitir que uma gota de água sequer tocasse sua face. Desceu no dia seguinte, após passar o tempo decifrando os arcanos dos mais altos graus iniciáticos jogando e contando pedregulhos.

Por outro lado, Frank Bennet, o Frater Progradior da A.·.A.·., é considerado o exemplo do sucesso possível de ser alcançado pelo sistema desenvolvido por Crowley, que escreveu que “Meu sucesso com ele é o bastante para apagar doze fracasso ou mais.” Bennet era Neófito da A.·.A.·. por mais de 11 anos, durante os quais tinha tido pouco progresso, segundo Crowley por falta de uma guia pessoal. “Ele chegou cansado da vida, desesperançado da verdade.” Crowley prossegue:

Eu comecei meu treinamento com uma regra geral prescrevendo algumas práticas preliminares que são universalmente benéficas. No meio tempo eu observei quietamente por sintomas pelos quais determinar o diagnóstico. Ele era mesmo um caso difícil, eu estava intrigado. Havia mesmo alguma coisa muito errada, mas eu não podia imaginar o quê. É claro que em meu eu consciente sou sempre estúpido, mas o Magus que me usa sabe seu trabalho.

Uma tarde nós fomos nadar com o Macaco (Leah, que tinha o título de Macaco de Toth). Eu falava enquanto andávamos sem objetivo, e justamente quando chegamos na ponta do precipício fiz alguma observação casual que provou ser um tiro certeiro.

Assim que chegou de volta na Abadia, Bennet entrou em um transe que durou três dias, após os quais, parecendo a própria encarnação da alegria, pôde explicar ao Mestre o que havia acontecido. Crowley lhe prescreveu então um Retiro Mágicko, para que aquele alcance fosse fixado em si. Ele ficou tão animado com o sucesso inesperado do discípulo, que se sentiu inspirado a preparar um ritual aperfeiçoado para a realização do Conhecimento e Conversação com o Santo Anjo Guardião, que veio a ser o Liber Samekh. O Retiro foi também um grande sucesso:

O Espírito do Senhor desceu sobre ele e abriu seus olhos para uma série de visões muito mais exaltadas e intensas do que qualquer coisa que ele jamais havia experimentado.

Em paralelo à sua realização espiritual, seus poderes mentais e físicos foram renovados como os da águia. Sua depressão sumiu e foi substituída por calma, alegria profunda, transbordante e manifesta a todos nós. Ele começou a fazer longas caminhadas solitárias pelas colinas e percorria suas vinte milhas por dia como não havia feito por um quarto de século. Nós sentimos como um verdadeiro luto quando chegou o tempo dele retornar a Sydney.”

Apesar deste sucesso, a Magick de Crowley parecia ser totalmente inútil em todas as demais áreas da sua vida, e uma série de desventuras terríveis se abateram sobre ele, começando com a morte da sua filha Pouppé, em 14 de Outubro de 1920. Seis dias depois Leah abortou, perdendo o filho que Crowley esperava que viesse a ser o veículo para a manifestação física de Aiwass, seu Anjo Guardião. Na sua autobiografia, ele registrou os seguidos colapsos emocionais que a morte das filhas lhe trouxeram (ele já perdera outra, no seu primeiro casamento), e que, por ter assumido o juramento de apenas utilizar a sua Magick na consecução da sua missão junto à Humanidade, era agora incapaz de interferir até mesmo no destino das pessoas que amava. A impotência do Ipississimus ainda seria mais uma vez duramente demonstrada.

Em 1922, em visita à Inglaterra, Crowley conheceu Frederick Charles Loveday, durante palestras públicas para a promulgação da Lei de Thelema. Loveday era fascinado pelo ocultismo, e havia se formado com um ensaio sobre a importância da Magia na Idade Média. Crowley ficou maravilhado, considerando que seu mais novo discípulo era extraordinário, possuindo todas as qualificações, não só para se tornar um magista de primeiro nível, mas seu próprio Herdeiro mágicko. O rapaz e sua esposa, Betty May, viajaram para a Sicília e chegaram na Abadia no dia 26 de Novembro, onde Loveday foi iniciado na A.·.A.·. com o motte mágicko de Frater Aud e se tornou secretário da Besta. Morreria no dia 14 de Fevereiro, vítima de uma infecção aguda, após uma cerimônia bizarra onde Crowley o mandou sacrificar um dos gatos que sua esposa alimentava e beber seu sangue. Nunca se precisou se a doença foi causada pela ingestão do sangue ou por Loveday ter bebido de uma fonte d’água durante um passeio com Betty, desobedecendo as ordens de Crowley de que os membros da Abadia só consumissem água fervida.

O incidente e a campanha jornalística que se seguiu acabaram por chamar a atenção de Benedito Mussolini, que ordenou uma investigação. Apesar do parecer dos investigadores não ter sido particularmente ruim, o Duce ordenou que saísse do país.

Aleister Crowley foi expulso de Cefalú e da Sicília em primeiro de Abril de 1923, indo se refugiar inicialmente em Tunis. Ele tinha expectativas de ser aceito de volta, mas logo percebeu que eram esperanças vãs. Durante algum tempo pensou em fundar uma nova Abadia na ilha de Zembra, para a qual pretendia selecionar melhor os candidatos, com isto admitindo, mesmo sem querer, que, afinal, antes de ser para todos, talvez seja a Lei apenas para os poucos e escolhidos.

Um Passeio na Abadia

A Abadia hoje se localiza ao lado de um pequeno estádio de futebol. É preciso pular a cerca de metal no fundo do estacionamento e atravessar um túnel nos arbustos. A frente da casa se encontra bloqueada, e o acesso só é possível pulando a janela, um detalhe que pode levar a questões cabalísticas ligadas à troca de Cheth por He na Fórmula Abrahadabra.

Já dentro, você se encontra na sala do Templo, onde podem ser vistas algumas das pinturas feitas por Crowley, e algumas adições mais recentes. O cômodo seguinte está cheio de entulho, e o que vem depois tem o teto desabado. É uma casinha pequena, que não faz jus aos elogios exagerados de Crowley.

No Templo existe agora um pequeno altar, prova de que o lugar deve ser frequentado com certa assiduidade.

Ao contrário do que se imagina, a qualidade do Astral ali é boa, com uma energia leve e colorida. As pinturas, que nas fotos geralmente parecem sinistras, são, na verdade, alegres e agradáveis quando vistas no local. Aqui se encerra uma lição, para os que ousam ir e ver.


Autor: Frater Al Dajjal