quinta-feira, 19 de maio de 2022

Eu me chamo Antônia, Sou filha de Oyá, toda vida Fui filha de Oyá pois Meu pai é Babalorixá E me iniciou bem criancinha. O maior sonho de minha vida

 Eu me chamo Antônia, 
Sou filha de Oyá, toda vida
Fui filha de Oyá pois
Meu pai é Babalorixá
E me iniciou bem criancinha.
O maior sonho de minha vida

Eu me chamo Antônia, 

Sou filha de Oyá, toda vida

Fui filha de Oyá pois

Meu pai é Babalorixá

E me iniciou bem criancinha.

O maior sonho de minha vida

Era ser mãe, mas quando era criança 

Sofri uma acidente de ônibus 

Que me causou feridas internas

No baixo abdômen, isso feriu

Meu útero e o fez cicatrizar de um

Modo que impedia que eu fosse 

Capaz de segurar uma gestação.

Toda vida eu via as mãe grávidas 

Ou com os filhos no colo e ficava

Cheia de inveja.

Era ano de 2003 uma amiga 

Ficou doente, Samara era e sempre

Será minha melhor amiga.

Era viúva e não tinha família,

E conforme o câncer se espalhava 

Ela ficou com medo de seu único 

Filho, Rafael de 3 anos,

Acabar em um orfanato ou coisa

Assim, então me pediu para

Cuidar dele se algo acontecesse. 

Eu obviamente aceitei,

Mas aceitei meio que só de boca

Já que acreditava mesmo 

Que ela ia ficar bem,

E mesmo com ela tendo

Feito toda a documentação 

Me dando a Guarda do menino,

Ainda assim eu não acreditava 

Que ele realmente ficaria comigo.

Levei Rafael para minha casa

E quase todos os dias nós

Íamos visitar Samara.

Um dia quando chegamos

Não pudemos visitar,

Samara estava desacordada,

Estava em coma induzido.

Duas semanas depois ela faleceu.

Fiquei então mãe de Rafael,

E ali descobri que ser mãe 

Não era tão fácil e simples

O quanto tinha imaginado 

Nos meus sonhos,

Tinha dia que me sentia 

Tão cansada que parecia 

Que o menino dava mais trabalho

Que pastorear um rebanho inteiro.

Quando Rafael passou o luto

Da perda de Samara, começou 

A me chamar de mãe,

Eu era "Mãe Tonia" pra ele.

Ao me acompanhar no terreiro 

Nas muitas funções e festividade 

Ele manifestou a vontade 

De ser iniciado, pois já era

Confirmado ser filho do Orixá 

Logun Edé.

Eu a princípio não quis muito

Isso pois ele estava em época de

Escola e eu não queria que sofresse

Nenhum preconceito.

Mas o moleque era insistente

E de tanto amolar eu concordei,

Nas ferias de Dezembro de 2008 

Ele foi iniciado filho de Logun Edé

Pelas mãos do meu pai, o qual

Era ágora ao mesmo tempo seu

Babalorixa e avô.

Rafael amava muito os Orixás,

Aquele amor que só a inocência 

De uma criança é capaz de gerar.

Nos dias de festa as vezes pedia

Para ir pro terreiro antes mesmo

Que eu pudesse ir, meu pai

Vinha e o levava e quando eu chegava lá 

O menino já tinha ajudado

(e as vezes atrapalhado) todo mundo.

Os anos passaram e certa vez

De tarde recebi uma ligação da escola

Dizendo que Rafael estava 

Passando mal e se eu podia ir

Até lá buscar ele.

Quando cheguei lá 

A cena que vi me deixou

Muito mal,

Ele estava deitadinho nos 

Bancos em frente a sala da diretora,

Muito palido e com um pouco 

De sangue saindo do nariz.

A diretora me tranquilizou 

Dizendo que era muito comum

Sangramento nasal em crianças

Durante a época do calor,

Mas o que me deixou desassossegada

Foi que Samara havia começado 

A ficar doente daquele jeito.

Achei que era bobagem minha

Ja que no dia seguinte Rafael 

Estava ótimo e foi pra escola 

Sem nenhum problema.

Mas na semana seguinte 

Aconteceu de novo.

Levei ele ao médico 

E expliquei que tinha histórico 

De câncer na família,

Mas o Médico me tratou como

Uma mãe desesperada atoa

E disse que Rafael so tinha desidratação.

Levei ele para meu pai

Para jogar os búzios e 

Saber o que estava acontecendo.

Meu pai, um perfeito filho de Ogun

Não era bom com as palavras,

E quando perguntei ali na mesa

De jogo se meu menino estava doente

Ele tentou disfarçar a própria tristeza 

Ao encarar aquelas conchinhas

E só me respondeu 

"Seja o que for, não perca a fé".

Ali eu soube.

Voltei ao hospital com Rafael 

E insisti que o médico fizesse 

Exames para saber o que estava 

Acontecendo com meu filho,

E tive bem que fazer um barraco

Para que o médico levasse a sério.

Eles fizeram os exames iniciais

E em trinta dias sairiam os resultados.

Foram dias de agonia.

Finalmente ligaram marcando 

A consulta, nós fomos.

A cara do médico quando lia 

Os papéis era séria. Lembro 

Exatamente quando falou que 

Meu menino poderia estar 

Com alguma anomalia referente 

Ao sangue, mas que outros exames

Mais elaborados iriam confirmar.

Os exames foram feitos 

E três meses depois veio o diagnóstico 

De Leucemia Linfoide Crónica,

Algo que raramente atinge crianças 

Mas que atingiu meu menino.

Os médicos me tranquilizaram

Que ia ficar tudo bem,

Que ia ser tratado e que tinha sim

Muitas chances de ter uma vida normal.

Mas eu vi meu menino definhar

Diante de meus olhos. 

Ele tinha só 11 anos.

Foram anos de luta 

E a maior parte desse tempo

Ele ficava internado fazendo 

Os inúmeros tratamentos

Os quais não davam efeito algum.

Eu ja sabia que ia perder meu filho.

Rafael completou 14 anos pesando

Menos de 30 quilos.

Foi nessa época que fui tomada 

De uma fúria e aramada com um

Martelo entrei no terreiro 

E quebrei os assentamentos de

Minha mãe Oyá e do Logun de meu filho,

Eu estava transtornada 

E acusava os Orixás de terem nos

Abandonado, 

Senti ódio deles,

Ódio por não curarem meu filho,

Ódio por não fazerem nada por nós.

Meu pai mesmo sendo 

Meio grosseiro não fez nada,

Me deixou ir sem fazer alarde.

Prossegui com meu filho no hospital,

O quadro de Rafael piorou muito 

E ele ja sabendo o que iria acontecer 

Pediu aos médicos para deixar 

Que fosse pra casa.

Os médicos analisaram a situação 

Mas por fim liberaram Rafael,

Pois não havia o que fazer,

Era só questão de tempo.

Fomos pra casa

E Rafael pediu para ir 

Para o terreiro.

Não tive como recusar,

Aluguei uma cadeira de rodas 

E levei ele para ver meu pai.

Chegando lá ele perguntou 

Quando meu pai faria 

A próxima festa 

Pois ele queria muito participar.

A festa das Iyagbas ja tinha 

Acontecido naquela semana

Mas meu pai sentiu no coração 

Que devia dizer a Rafael

Que a festa era no dia seguinte.

Fomos pra casa enquanto meu pai

Foi dar os telefonemas pedindo ajuda

A todos os filhos de Santo e amigos 

Que tinham comparecido na festa

Para voltarem, e explicando que 

Era para Rafael.

A festa tinha acontecido no sabado

E está outra ia ter que ser feita 

Na terça-feira.

Todo mundo veio de novo, e até 

Veio mais gente que da outra vez,

Mesmo que alguns estivessem ainda 

Cansados, fizeram o esforço de vir.

A festa foi linda, Rafael ficou 

Sentado na cadeira de Rodas bem

Do lado da cadeira de meu pai.

Em um determinado momento

Durante o rum da Oyá de minha irmã 

Rafael me chamou e perguntou 

Quem era o rapaz que estava 

Incorporado com Logun Edé

E que dançava atrás de Oyá.

Eu olhei para o meio do Barracão 

E não havia nenhum Logun Edé lá,

Rafael era o único Logun da casa

E nenhum dos visitantes estava

Incorporado com este Orixá,

Porém Rafael insistiu em dizer

Que aquele Logun Edé que estava

Vendo era o mais bonito que ja 

Tinha visto.

No fim da festa ele pediu 

A meu pai que o ajudasse

A fazer uma oferenda a Logun 

Pois durante o tempo de internação 

Ele não havia feito nada.

Meu pai como se tivesse previsto

Ja tinha pronto na cozinha 

O alguidar que sempre fazia,

Era metade de Axoxô 

E metade de Omolokun,

E deu aquilo nas mãos de meu filho

Perguntando se queria arriar

Lá no quarto dos assentamentos

Ou na árvore na Praça 

Que ele costumava arriar.

Rafael pediu para ir na Praça.

Já de madrugada 

Quando a festa acabou e todo

Mundo foi embora,

Fomos para a praça no fim da rua,

Eu empurrando a cadeira de rodas

E meu pai segurando a mão de Rafael.

Todo o caminho ele foi cantando

Baixinho cantigas de Logun Edé,

Cantava tão baixinho que nem 

Percebi quando parou.

Alguns metros Antes de chegar 

A árvore meu pai me disse para parar 

Um pouco de empurrar a cadeira,

E então segurou o pulso de Rafael,

Olhou pra mim e simplesmente disse

"Acabou".

Meu menino não respirava mais,

O coração não batia mais.

Eu soltei a cadeira de rodas 

E comecei a chorar vendo 

Meu menino ali sem vida diante de mim,

Mas meu pai mandou eu voltar 

A empurrar a cadeira,

O alguidar ainda estava 

No colo de rafael,

E se ele não podia mais completar 

E entrega da oferenda,

Então eu tinha de fazer

Pois eu era a mãe.

Não sei como tive forças 

Pra continuar empurrando 

Aquela cadeira,

Cheguei até a arvore,

Tirei o alguidar do colo dele

E depositei ali 

A última oferenda de Rafael.


Na volta meu pai veio

Empurrando a cadeira,

E me falou 

"Sei que você ficou com raiva por ele não ter sido curado, mas os Orixás tem caminhos que não cabe a nós compreender. Rafael precisava de uma mãe, e você precisava de um filho, e isso os Orixás proveram, deram a vocês dois a felicidade da companhia um do outro mesmo que por pouco tempo. Todo o resto que não entendemos é porque não nos cabe entender, apenas aceitar."


Faz seis anos que perdi meu Rafael.

E por mais que tenha sido 

Muito sofrido,

Que os sonhos de ver meu filho 

Adulto, forte e construindo 

A vida que queria ter,

Ainda assim sou muito grata por ter

Tido a chance de ser mãe 

Deste menino maravilhoso.


Logun Edé trouxe a meu menino

Uma felicidade enorme,

E me lembro com muito carinho 

O orgulho que ele tinha 

De ser filho deste Orixá.

Toda vez que vejo alguem

Incorporada com Logun

Dançando nas festas,

Vejo ali um pouco de meu Rafael.


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Felipe Caprini, Memórias de Terreiro

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