A morte na visão dos Chineses
" gente este não deu para fazer um resumo em si pois é muito detalhe para aqueles que querem saber como é em outras crenças"
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" gente este não deu para fazer um resumo em si pois é muito detalhe para aqueles que querem saber como é em outras crenças"
DAR DE COMER ÀS ALMAS PENADAS
de Cecília Jorge –
Há muito de misticismo, de mistério e de receio no confronto dos seres racionais com os conceitos de morte acerca do “outro mundo”. A atitude dos chineses perante a morte e o Além é uma das suas facetas mais ricas e talvez a menos conhecida dos ocidentais
A morte, temida quando encarada como algo que pode surgir de forma prematura, repentina e violenta, é também algo que os chineses, a partir de uma certa altura, passam a aceitar como a natural etapa seguinte numa vida plena, de missões cumpridas. E talvez por isso é que na China a longevidade parece ter um significado mais profundo, do que o da simples continuidade, chegando a ser venerada na imagem de um velho de longas barbas e testa descomunal, com um cajado na mão e o pêssego da imortalidade na outra.
O profundo receio de uma antecipação dessa passagem para o Além, de malefícios provocados por almas que, precisamente por terem sido forçadas a partir de forma imprevista e violenta, se tornaram nefastas, leva os chineses de Macau e Hong- Kong, quando supersticiosos bastante, a cumprir as suas obrigações aqui na terra e a evitar dissabores com o Além.
Estas serão algumas das explicações para a permanência hoje, nestas paragens, de um anacronismo como o luet-Làn Tchit, vulgarmente conhecido pela “Festividade das Almas Penadas” (Kuei Tchit), ou mesmo, para os menos respeitosos, a dos “Diabos Esfaimados”.
É entre 30 de Julho e 27 de Agosto, que decorre este ano o sétimo mês lunar, e quem em Macau não ande distraído vê pequenos fogaréus um pouco por toda a cidade e ilhas, sobretudo ao lusco-fusco. à porta de casa, nos passeios, à beira das estradas. São imensas as pilhas de pivetes de incenso e de velas de cera vermelha, as oferendas de fruta e arroz cozido, rebentos de soja. bolos … e de cédulas emitidas pelo Banco do Inferno com a efígie dos soberanos infernais e muitos zeros a seguir aos cifrões.
Trata-se de acudir às almas penadas, espíritos errantes de todos aqueles que, acidentados, assassinados, ou suicidas, caíram numa desgraça ainda maior porque além da morte prematura ou violenta, partiram deste mundo sem deixar quem, deste lado, cuidasse do seu bem-estar e sustento.
Não lhes podendo valer um descendente (e se for varão será a suprema felicidade ! ) ou abandonados pelos familiares e mesmo afilhados ou amigos, contam agora com os corações compassivos (e apreensivos) daquelas que – pois que de mulheres, habitualmente, se trata -, se prestem a aligeirar-lhes a estada na zona neutra entre este e o outro mundo. Porque, a confiar-se na tradição, ai dos que não “morreram de olhos fechados”, com as contas e partilhas feitas, caixão e sepultura prontos, ritual fúnebre, e a pasta entregue a outrem. As almas ficam a expiar angústias, culpas e desculpas, de transmigração em transmigração, sem direito à reincarnação gradual e sucessiva que atinge o termo em qualquer coisa superior e indefinível quando se esgota o seu karma..
Esse processo é, por vezes, engenhosamente ultrapassado pela alma penada, porque delas naturalmente se trata, no fenómeno do t’âi-san (literalmente “trocar de corpo”) em que a distraída vítima, só tardiamente se dá conta de que “morreu” e que alguém se passeia agora, feliz, no seu corpo. A situação não tem paralelo de espécie alguma com as assustadoras possessões demoníacas típicas das cenas do terror ocidental, já que o novo inquilino não é necessariamente maligno, nem faz cenas…
Voltando a ver a questão do ponto de vista chinês e partindo do princípio que morrer é apenas transpor uma porta que só se abre para um lado e que a vida continua nos mesmos moldes que neste, as necessidades básicas das almas são as mesmas : alimentação, vestuário, abrigo, transportes, companhias e serventias, e mesmo dinheiro e ouro em lingotes … tudo em papel. O que vale é a imagem, o faz-de-conta.
É que, no início da viagem, é preciso pagar as passagens da travessia na barca do Inferno (ou do Purgatório). E se a fortuna for grande e os pecados a condizer, serve também para amaciar os carcereiros das celas que as espera, na expiação dos pecados. E nunca se sabe se ele não fará jeito durante os julgamentos nas várias instâncias dos tribunais nos Infernos (que são mais de uma dúzia…, cada um com o seu governante, e muitos deles com direito a efeméride assinalada no calendário das festividades lunares).
Ponderadas as faltas cometidas na vida terrena, e descontadas as razões atenuantes, as almas são condenadas a torturas e a períodos mais ou menos longos de encarceramento. Depois, podem ser reenviadas para terra, a reincarnar outro ser vivo (e não necessariamente humano) consoante o merecimento, sendo-lhes dada outra oportunidade de reabilitação. Aguardam a vez e renascem. Não roubam o corpo a ninguém…
Mas seria muito improvável que os chineses há muito residentes em Macau, por muito tradicionalistas e crentes que ainda sejam, mantivessem intacta toda essa crença na complicada estrutura de Infernos, castigos e reabilitação das almas, tal como caíram em desuso os horripilantes castigos preconizados pela moral confucionista aos que fossem acusados de impiedade filial, de adultério, de desonestidade, ou de muito simplesmente não cumprirem a palavra.
Respeitam hoje escrupulosamente os ritos devidos a quem morre, e caberá sempre aos filhos “servir adequadamente os pais em vida, e sepultá-los adequadamente na morte”. A crença na geomancia, fung-sôi, dá primordial importância à escolha da sepultura dos ascendentes.
Mas o chinês que parte requer ainda uma atenção regular, que vai sendo responsabilidade herdada de geração em geração, sendo essa uma das melhores explicações para a importância, ainda não totalmente ultrapassada, da procriação de filhos varões: são eles que transmitem o patronímico e asseguram a eternização do clã.
misticismo.chines.6Os ascendentes directos, os mais populares e os que, distinguindo-se em vida, contribuíram para o prestígio familiar, recebem homenagens especiais, permanentes e diárias no altar caseiro. As suas fotografias ou as tabelas onde se convencionou residir o seu espírito encontram-se ali em destaque, e deles se espera protecção ou pelo menos intercessão junto dos poderes divinos. Dia e noite ilumina o altar uma candeia votiva, ou lâmpada avermelhada, junto aos pratinhos com fruta e jarras de flores, enquanto pivetes são acesos ao romper e ao pôr do sol.
Dizem os mais supersticiosos que os locais a evitar nessa altura são todos aqueles onde ocorreram acidentes mortais, e isso, até para um leigo é fácil descobrir, pela profusão de pivetes, velas e restos de comida colocados em sítios ilógicos.
Às festividades costumava presidir a imagem, em papel, de Tai Si Vóng, o “Soberano Supremo dos Infernos” que, velava por que o banquete fosse farto e todos a ele tivessem acesso. Mas, de pincel e caderno em riste, anotava as faltas de quem se tivesse portado mal nestas curtas férias… e fazia a chamada, para que todos eles regressassem às profundezas, na altura devida, uma vez satisfeitas as saudades da Terra.
O hábito perdeu-se e hoje, permanece apenas o siu-i, literalmente, “queima de vestuário” (e outras oferendas de papel). O fogo se encarregará de transportar para o outro lado a essência oferecida a quem já não se pode materializar.