segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Penas “Eternas”!

 

 Penas “Eternas”!


Nenhuma descrição de foto disponível.Existem penas eternas? Há episódios difíceis nas vidas das pessoas, os quais sejam sentidos como de duração eterna? Um sofrimento sem fim para criaturas é compatível com a visão de Deus representar o Criador de tudo e todos, a Bondade e a Sabedoria em seu máximo grau? Há uma duração fixa de tempo de sofrimento relativo a cada erro? A reencarnação é compatível com a ideia de penas eternas?

O que significa “eterno”?

Na origem da palavra, do latim aeternalis, eterno é algo que dura por éons (do grego aión — tempo, era, duração da vida), ou seja, por um tempo muito grande ou desconhecido. Não significa duração para sempre, mas algo com duração que parece não ter fim, devido à nossa limitada percepção do tempo.

Penas eternas e a visão sobre Deus

No capítulo VI da obra “O Céu e o Inferno” [1], intitulado “Doutrina das penas eternas”, Allan Kardec discorre detalhadamente acerca desse tema. Nos itens 10 a 17 do mesmo capítulo, o Codificador do Espiritismo apresenta a refutação a argumentos favoráveis à existência de penas eternas. Exemplifiquemos um deles: a visão que se tem sobre Deus. Há duas possibilidades referentes às penas eternas e sua consequente maneira de buscar entender Deus:
As penas eternas existem, pois a gravidade da ofensa é proporcional à qualidade do ofendido. Sendo Deus infinito, também é infinita a ofensa e, por conseguinte, infinita a punição; ou
As penas eternas não existem, pois, se Deus é soberanamente justo e bom, infinito em todas as perfeições, não ofendemos a Deus, mas à nossa própria consciência, a qual reclama entendimento e reparação do erro, condições as quais, uma vez atendidas, fazem cessar o sofrimento advindo de um ato incorreto. Quando uma criança, começando a caminhar, mexe onde não deve, ela não está a ofender aos pais, se eles possuírem a devida maturidade; antes, a criança requer orientação e proteção.

Considerar a existência de penas eternas ofende ao bom senso e ao nosso entendimento de Deus todo bondade, justiça e misericórdia. Neste mesmo diapasão são as palavras de Santo Agostinho, ao responder à questão 1009 de “O Livro dos Espíritos” [2]: “Interrogai o vosso bom-senso, a vossa razão e perguntai-lhes se uma condenação perpétua, motivada por alguns momentos de erro, não seria a negação da bondade de Deus. Que é, com efeito, a duração da vida, ainda quando de cem anos, em face da eternidade? Eternidade! Compreendeis bem esta palavra? Sofrimentos, torturas sem-fim, sem esperanças, por causa de algumas faltas! O vosso juízo não repele semelhante ideia? Que os antigos tenham considerado o Senhor do Universo um Deus terrível, cioso e vingativo, concebe-se. Na ignorância em que se achavam, atribuíam à divindade as paixões dos homens.

Esse, todavia, não é o Deus dos cristãos, que classifica como virtudes primordiais o amor, a caridade, a misericórdia, o esquecimento das ofensas. Poderia ele carecer das qualidades, cuja posse prescreve, como um dever, às suas criaturas? Não haverá contradição em se lhe atribuir a bondade infinita e a vingança também infinita? Dizeis que, acima de tudo, ele é justo e que o homem não lhe compreende a justiça. Mas, a justiça não exclui a bondade e ele não seria bom, se condenasse a eternas e horríveis penas a maioria das suas criaturas.

Teria o direito de fazer da justiça uma obrigação para seus filhos, se lhes não desse meio de compreendê-la? Aliás, no fazer que a duração das penas dependa dos esforços do culpado não está toda a sublimidade da justiça unida à bondade? Aí é que se encontra a verdade desta sentença: ‘A cada um segundo as suas obras.’”

Kardec, no capítulo VI de “O Céu e o Inferno”, apresenta inclusive citações bíblicas as quais atestam não haver penas eternas, como em Ezequiel, 33:11: “Dize-lhes: Tão certo como eu vivo, diz o Senhor Deus, não tenho prazer na morte do ímpio, mas em que o ímpio se converta de seu caminho, e viva.”

A duração de uma pena, que não é eterna, se baseia no tempo necessário a que o Espírito se melhore. Diz o Espírito São Luís na questão 1004 de “O Livro dos Espíritos” [2]: “Sendo o estado de sofrimento ou de felicidade proporcionado ao grau de purificação do Espírito, a duração e a natureza de seus sofrimentos dependem do tempo que ele gaste em melhorar-se. À medida que progride e que os sentimentos se lhe depuram, seus sofrimentos diminuem e mudam de natureza.”

Distorções na noção da passagem do tempo

O entendimento da passagem do tempo difere entre as pessoas e a condição em que se encontrem (“O Livro dos Espíritos”, questão 240). Um Espírito sofredor percebe uma passagem mais longa do tempo, o que não ocorre com Espíritos mais purificados (“O Livro dos Espíritos”, questão 1005).

Na apresentação da chamada escala espírita, uma classificação didática do grau de adiantamento moral e intelectual dos Espíritos, Allan Kardec estabelece três ordens de Espíritos: imperfeitos, bons e puros. A Humanidade terrestre é composta predominantemente por Espíritos ainda imperfeitos, os quais já superaram as primeiras etapas das existências humanas, mas carentes de elevação moral. Na descrição do perfil geral dos Espíritos ainda imperfeitos, no item 101 de “O Livro dos Espíritos” [2], Kardec pontua uma percepção relativa do tempo dos sofrimentos: “Predominância da matéria sobre o espírito. Propensão para o mal. Ignorância, orgulho, egoísmo e todas as paixões que lhes são consequentes. (...) Conservam a lembrança e a percepção dos sofrimentos da vida corpórea e essa impressão é muitas vezes mais penosa do que a realidade. Sofrem, pois, verdadeiramente, pelos males de que padeceram em vida e pelos que ocasionam aos outros. E, como sofrem por longo tempo, julgam que sofrerão para sempre.”

A percepção do tempo varia de acordo com o que se está experimentando. Não raro, vivenciando momentos agradáveis, não se sente o tempo passar. Situações difíceis, muitas vezes, causam uma sensação de demora. Estudo [3] feito com pacientes em UTI (Unidade de Terapia Intensiva) de hospitais indica haver, nas pessoas internadas nesses locais, uma distorção da noção de tempo, a qual traz ansiedade e sofrimento além daqueles causados pela enfermidade que os levou a necessitar desses cuidados médicos.

(...) “a questão da temporalidade é complexa, representa algo além da perda do referencial do dia e da noite e aspectos de iluminação. A noção de tempo/espaço representa uma maneira simbólica de reorganizar-se, reestruturar-se, enfim, de reconhecer-se diante da vida.”

O filósofo alemão Martin Heidegger, em seu livro “Ser e Tempo” [4], publicado em 1927 e considerado, por profissionais da área, um dos trabalhos mais importantes em filosofia do século XX, afirma que a compreensão de que existimos, bem como a do tempo, é ligada ao porvir. Segundo este autor, perceber a sequência do tempo é se ver em algo que está por vir.

“‘Pre’ e ‘preceder’ indicam o porvir que, como tal, os possibilita, de maneira a que possa se dar um ente em que está em jogo seu poder ser. O projetar-se em ‘função de si mesmo’, fundado no porvir, é um caráter essencial da existencialidade. O seu sentido primordial é o porvir. (...) A temporalidade originária e própria se temporaliza a partir do porvir em sentido próprio, de tal modo que só no vigor de ter sido, vigente e no porvir, é que ela desperta a atualidade. O porvir é o fenômeno primordial da temporalidade originária e própria.”

Essa visão é coerente com a assertiva abaixo, de Joanna de Ângelis [5]:

“A consciência do vir-a-ser proporciona uma mente aberta, com capacidade para considerar com clareza e saúde todos os fatos da existência, comportando-se de maneira tranquila, com possibilidades de conquistar o infinito.”

Dessa forma, tal como ocorre com um paciente em uma UTI, um Espírito, encarnado ou desencarnado, em sofrimento físico e/ou moral, pode sofrer uma distorção em seu entendimento de tempo; dias podem parecer meses ou anos; a falta de clareza no porvir afeta a compreensão de sua existência, e o sofrimento é percebido como interminável, uma “pena eterna”, ainda que dure alguns dias ou meses. Não se está buscando fazer pouco do sofrimento de ninguém, mas sim trazer base para o entendimento do fato de sofrimentos intensos parecerem durar muito mais do que o seu tempo medido no relógio e no calendário.

Duração das penas

Ainda a respeito do tempo, Kardec orienta, à elucidativa obra “O Que É o Espiritismo”, que a duração de uma expiação devida a um erro não é condicionada a tempo, mas a uma efetiva evolução, ao aprendizado e superação da lição [6]:

“A duração do castigo é subordinada ao melhoramento do Espírito culpado. Nenhuma condenação por tempo determinado é pronunciada contra ele. O que Deus exige, para pôr um termo aos sofrimentos, é o arrependimento, a expiação e a reparação; em uma palavra, um melhoramento sério e efetivo, uma volta sincera ao bem. O Espírito é assim o árbitro de sua própria sorte; sua pertinácia no mal prolonga-lhe os sofrimentos; seus esforços para fazer o bem os minoram ou abreviam. Sendo a duração da pena subordinada ao arrependimento, o Espírito culpado, que não se arrependesse e nunca se melhorasse, sofreria sempre, e para ele então a pena seria eterna. Essa eternidade de penas deve ser entendida no sentido relativo e não no absoluto. Uma condição inerente à inferioridade do Espírito é não ver o termo da sua situação e crer que há de sofrer sempre — o que é para ele um castigo. Desde que, porém, sua alma se abra ao arrependimento, Deus lhe faz entrever um raio de esperança.”

Mesmo o que foi programado para nossa reencarnação pode ser melhorado ou dificultado por nossas escolhas e ações positivas ou menos felizes.

A Reencarnação desfaz o mito das penas eternas!

Como já abordado acima, considerar a existência de penas eternas é contrário ao bom senso e ao nosso entendimento de Deus todo bondade, justiça e misericórdia. Os Espíritos nos orientam, à questão 617 de “O Livro dos Espíritos” [2] (leia, neste blog, a postagem “Considerações sobre a pluralidade das existências”), que um aprendizado pleno não pode ser concluído em apenas uma existência.

Em relação a esse tema, Kardec apresenta, na Revista Espírita [7], mensagem mediúnica relatando: “Estando admitido que a justiça de Deus não pode se misturar com as penas eternas, a razão deve concluir pela necessidade: 1ª de um período de tempo durante o qual o Espírito examina o seu passado, e forma as suas resoluções para o futuro; 2ª de uma existência nova em harmonia com o adiantamento desse Espírito.” Esta observação é coerente com a citação bíblica de Paulo, em sua carta aos Hebreus, capítulo 9, versículo 27: “É ordenado ao homem morrer uma vez, e após isso um julgamento”. No texto em grego, do qual surgiram as traduções para o latim e, após, para o português, o termo traduzido por julgamento era o substantivo krisis, derivado do verbo krino, sendo que este último significa “eu decido”. Da palavra krisis provêm os termos crise e crítica. Crise diz respeito a um ponto de virada, uma oportunidade de análise para melhoramento. Muitas traduções desse trecho bíblico referem krisis como julgamento.

Assim podemos entender, desde que compreendamos que se trata de um ponto de decisão, de análise de suas escolhas, feita entre o Espírito, sua consciência e Deus, e não um julgamento por qualquer “juiz” externo a essa tríade. Esta passagem bíblica indica, portanto, que a personalidade que o Espírito temporariamente anima deixará de existir na Terra com a morte do corpo físico, quando então o Espírito analisará o que há de avanços ou oportunidades de melhoria para as existências corpóreas seguintes. Quando atingir-se o nível devido de evolução moral e intelectual, não mais serão necessários estágios na matéria densa, advindo aí novas e superiores etapas de nosso caminho rumo à perfeição.

O Codificador, corroborando essa ideia, na obra “O Céu e o Inferno” [1], no item 19 do Capítulo VI da sua primeira parte, afirma: “Para estar de acordo com a rigorosa justiça, chegaremos, pois, à conclusão de que as almas mais adiantadas são as atrasadas de outro tempo, com progressos posteriormente realizados. Mas, aqui atingimos a questão magna da pluralidade das existências como meio único e racional de resolver a dificuldade.”

Referências:

[1] KARDEC, Allan. “O Céu e o Inferno”. 37ª ed. Rio de Janeiro: RJ, FEB: 1991. 1ª parte, capítulo VI.
[2] KARDEC, Allan. “O Livro dos Espíritos”. 66ª ed. Rio de Janeiro, RJ: FEB, 1987. Questões 101, 617, 1004 e 1009.
[3] STUMM, Eniva Miladi Fernandes et al. “Estressores Vivenciados por Pacientes em uma UTI”. Revista Cogitare Enfermagem, nº 4 de 2008. Curitiba, PR: Sistema Eletrônico de Revistas da UFPR. Disponível em http://ojs.c3sl.ufpr.br/.../article/viewFile/13108/8866. Acesso em 06/07/2010.
[4] HEIDEGGER, Martin. “Ser e Tempo”. 13ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. Parte II, terceiro capítulo, § 65.
[5] FRANCO, Divaldo Pereira. “O Homem Integral”. Pelo Espírito Joanna de Ângelis. 14ª ed. Salvador, BA: Centro Espírita Caminho da Redenção, 1990. Capítulo 6.
[6] KARDEC, Allan. “O Que É o Espiritismo”. 53ª ed. Rio de Janeiro, RJ: FEB, 2005. Capítulo I, Terceiro diálogo — O padre.
[7] KARDEC, Allan. “Revista Espírita, outubro de 1860”. São Paulo, SP: IDE, 1993. Dissertações Espíritas.