Nasci em 1948
E como ja podem ver
Sou bem velhinha já
Mas quero contar minha história.
Quando eu nasci
Minha mãe morreu.
Nasci em 1948
E como ja podem verSou bem velhinha já
Mas quero contar minha história.
Quando eu nasci
Minha mãe morreu.
Morreu de parto, sabem como é.
Meu pai a vida toda
Não gostou de mim
Pois me culpava por isso,
Como se um bebê recém nascido
Pudesse fazer a vez de assassino
Da propria mãe.
Cresci apanhando,
Meu pai me largava na casa
De parentes onde era espancada
Por qualquer pretesto
E quando chegava em casa
Ele mesmo fazia questão
De me bater também.
Sabe o que é apanhar até desmaiar?
Com sete anos de idade eu ja sabia.
Um dia eu estava cozinhando,
Pois com sete anos eu ja tinha de cozinhar,
E queimei o braço na panela de ferro,
Pois cozinhar em fogão de lenha
É coisa dificil pra quem é pequeno.
Com o susto derrubei a panela de arroz
No chão.
Meu pai veio pra cima de mim
E me bateu tanto com o cinto, com
O lado da fivela, que abriu feridas,
E depois jogou água sal em cima
Pra arder.
Foi naquele dia que eu conheci
Dona Edelvânia.
Eu gritava muito é claro
E então do nada vi atrás do meu pai
Uma mulher bem gorda, bem preta
Vestida com aquela roupa
Que eu achava estranha,
Roupa de baiana sabe,
E ela gritou pra ele parar senão
Ela iria chamar a Polícia.
Meu pai ficou muito surpreso
Pois ela era nossa vizinha que
Tinha acabado de se mudar,
E ele que era católico roxo
Morria de medo de macumba
E então se afastou da mulher
Como se ela fosse o próprio demônio.
Meu pai era desses homens covardes
Que batem em mulher mas que
Morrem de medo de Polícia,
Então parou na hora que ela
Citou ir chamar o delegado.
Ele a mandou sair de dentro da casa,
Dona Edelvânia disse que só saia
Se eu fosse junto com ela
Pois ela ia passar remédio nos
Meus machucados.
Então meu pai com medo de acabar
Sendo preso, saiu da frente
E deixou ela me levar.
A casa de Dona Edelvânia
Era muito pequena
Um comodo só
Que ela morava junto com
Seus três filhos.
Em lembro bem daquela casinha
Pois foi ali a primeira vez
Que na minha vida
Fui tratada como gente.
Ela cuidou de mim,
Me emprestou um vestido
E me deu bolo de milho.
Disse que se meu pai engrossasse de novo
Era pra correr pra casa dela
Que ela ia me proteger.
E foi assim por uns quatro anos,
A maioria das vezes que eu
Conseguia correr
Ia pra casa de Dona Edelvânia
E ficava lá até meu pai se acalmar.
Foi ali naquela casinha que eu
Conheci o nome de Oxum.
Sim, Dona Edelvânia era também
Conhecida como Iyá Edelvania de Oxum,
E ela me contava histórias
Sobre aquela mulher valente
Preta que nem nós duas
E que tinha sido uma grande rainha.
As vezes eu até sonhava com essa oxum,
Na descrição de Dona Edelvânia
Eu via nos sonhos aquela mulher
Tão bonita e que usava jóias de Ouro.
A vida continuou,
Foi então que quando eu tinha
Quase doze anos
Meu meu pai chegou bêbado
Em casa e colocou
A mão de baixo da minha saia.
A partir daquele momento
Ele passou a fazer comigo
Coisas que um pai não deve fazer
Com uma filha.
Eu era boba, ingênua de tudo
E um dia Dona Edelvânia
Me vendo mancar
Perguntou se eu tinha apanhado,
E eu acabei contando o que
Tinha acontecido.
Ela estava lavando roupa no tanque,
Lembro da mão gelada
Pela água fria pegar em meu pulso
E naquele momento
Fomos as duas pra delegacia de policia.
Andamos um bom pedaço a pé
Pois a cidadezinha que morávamos
No interior do estado
Não tinha condução,
Então quando chegamos lá
O delegado não deu bola,
Disse que eu tinha jeito
De menina mentirosa,
Que meu pai tinha feito
Uma reforma na casa dele
E que nunca tinha nem olhado
Pra esposa dele pois era respeitador,
E que ja sabia que eu era preguicosa,
Que eu tinha era de Voltar pra casa
E parar de inventar.
Dona Edelvânia ficou indignada
Mas não havia o que fazer.
As coisa a noite em casa
Continuavam acontecendo
E eu não tinha o que fazer.
Uns dias depois, Dona Edelvânia
Foi até minha casa dizer a meu pai
Que ia embora, ia pra São Paulo
Que a irmã dela havia arranjado
Trabalho em uma oficina de costura
E que ela ia pra lá trabalhar
Pois a capital estava nessa onda
Nova de fazer indústria.
Ela pediu pra ele deixar eu ir junto,
Que ela ia cuidar de mim,
Que a cidade grande era melhor
Pra trabalho e que eu ia ser mais feliz lá.
Ele não deixou, mandou ela embora
Com muita grosseria
E nunca mais me deixou ir ver ela.
Foi então que se passou uma semana,
Eu dormia profundamente
Cansada pelo dia Trabalhado
Pois havia estado na lida
O dia todo, então dormia pesado,
Mas sonhei.
Sonhei com Oxum, como eu a via
em todos meus sonhos, bonita
E cheia de ouro na beira de um rio
De cachoeira.
Mas naquele Sonho foi diferente
Pois Oxum falou comigo.
Ela chegou bem perto de mim e disse:
"Toinha, acorde, você tem de acordar agora, tem que ser valente Toinha, tem que correr."
E eu acordei, era madrugada ainda,
E eu ouvi o relincho dos cavalos,
Saltei da cama e espiei pela janela
A carroça cheia dos móveis
De Dona Edelvânia, era o dia da mudança.
Eu rapidinho fiz uma troxa
Com minhas roupinhas e pulei a janela.
A carroça ja ia longe pela estrada
E eu correndo atrás com minhas
Perninhas magrelas
Corria sem poder gritar
Pois não podia fazer barulho,
Corria o maximo que dava
E então do nada a carroça parou
E Dona Edelvânia olhou pra trás.
Muito depois ela contou
Que alguém sussurrou no ouvido dela
Que tinha de pedir pro carroceiro
Parar um pouco, e ela atendeu.
Foi assim que alcancei a carroça.
Sem nem dizer nada, Dona Edelvânia
Me pegou pela cintura e me enfiou
Em um balaio cheio de roupas
Me escondeu entre elas e mandou
Ficar quietinha.
Fiquei ali encolhida, vendo
O sol raiar entre os vincos
Do balaio de vime.
Foi assim que Oxum salvou minha vida.
Chegamos em São Paulo
No fim da tarde, eu passei o dia
Ali no balaio,
Dona Edelvânia me enfiando ali
Uns pãezinhos a cada hora
Pra eu não ficar com fome,
E eu fui corajosa como me disse pra ser.
Chegamos em São Paulo
E fomos morar em um cortiço,
E Dona Edelvânia me apresentou
A todo mundo como sendo filha dela,
E eu a partir a chamei de mãe.
Nunca me bateu, nunca me olhou
Diferente de seus outros filhos.
Minha mãe além de trabalhar
Na oficina, fazia também bolos por
Encomenda, umas receitas que só
Ela sabia.
Eu e meus irmãos pra ajudar
Faziamos as entregas dos bolos.
Certo dia fui entregar em uma casa
E quando cheguei a mulher
Disse que não ia me pagar com dinheiro,
Que tinha acertado tudo com minha mãe,
Que por um bolo por semana
Ela ia toda terça e quinta
Me ensinar a ler e escrever,
Pois eu ainda não sabia
E minha mãe era analfabeta e não
Tinha como me ensinar.
Foi assim que aprendi a ler
E sendo bem instruída
Quando tinha 16 anos arranjei
Emprego de empregada doméstica
Na casa do patrão da minha mãe,
Ela me indicou porquê eu podia
Além de limpar, também atender
Telefone e anotar recados.
Trabalhei poucos meses ali
Pois o patrão, doutor Rubens,
Logo viu que eu era esperta
E me levou pra ser secretaria
Na fábrica, trabalhando com
A esposa dele.
Juntei meu dinheirinho
E fui estudar pra ter diploma,
E consegui
Segui trabalhando e em 1975
Consegui com muito esforço
Me formar professora.
Eu escolhi ser umbandista,
Porém minha mãe Dona Edelvânia
Me iniciou no Candomblé,
Pois era era mãe de Santo de candomblé.
Mesmo na umbanda,
E eu sempre cuidei de minha Oxum
E eu sei que muita gente
Diz que Umbanda não tem Orixa,
Mas se eu digo que tem é porque tem.
No ano de 2000 eu estava dando
Uma aula para a quarta série
Naquela escola lá que lhe falei
A qual lecionei até 2008,
Neste dia, 12 de Março 2000
Eu estava na sala de aula
Quando se repente apaguei,
Achei que tinha tido um desmaio,
Mas não, meus colegas disseram que
Eu não cai, que somente tremi
O corpo e fechei os olhos.
Eu lhes disse que era problema se saude,
Mas não era, era Oxum que havia
Me pego.
Eu fiquei totalmente atonita
Pois nunca tinha tido uma incorporação
Fora do terreiro, e nem sabia
Que isso podia acontecer
Com alguém tão velha como eu ja era.
Pedi para ir embora
E tomei um ônibus pra casa,
Chegando lá entendi o motivo de
Oxum ter chamado minha atenção
Daquela forma tão brusca.
Meu irmão estava na porta de minha
Casa já me esperando
Pois minha mãe Dona Edelvânia
Queria me ver.
Fui com ele pra casa dela
E lá a encontrei na cama,
Que era coisa rara pois ela
Era muito ativa.
Ela me disse que tinha
Rezado a mãe Oxum
Para me ver uma ultima vez
Antes de partir
E estava feliz dela ter
Me levado até lá.
Fiquei com ela a noite
Toda, estava fraquinha
E forçava os olhinhos
Pra olhar cada um dos filhos
Como quem quer guardar
Aquilo de lembrança.
Antes de escurecer
Minha mãe faleceu, morreu ali
No meio de seus quatro filhos.
Vejo muita gente hoje em dia
Falando que Axé de Orixá
É ter dinheiro, status, mas
Essa gente não sabe é de nada.
Eu fui abençoada com o verdadeiro
Axé de um Orixá, um axé
Que me deu a chance de sobreviver,
De conhecer o amor de mãe,
De ter família, de ter uma chance,
Um axé que me deu coragem
Para enfrentar a vida.
Oxum me presenteou com uma mãe
A qual me amou como
Se eu tivesse saido de seu ventre.
Hoje lá no céu brilham duas estrelinhas
Que eu sei que cuidam de mim,
Uma é minha Oxum, a qual
Eu tenho orgulho de dizer que
Tenho com ela uma caminhada
De mais de quarenta anos
Dentro da umbanda sagrada,
E a outra é minha mãe Dona Edelvânia
Que está lá ao lado de Oxum
Pois é onde merece estar.
Hoje em dia quando penso em Oxum
Penso nela e em minha mãe
Como sendo uma coisa só,
Pois em cada gesto
De minha mãe Dona Edelvânia
Eu via refletido ali Oxum.
Felipe Caprini, Memórias de Terreiro
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