Ser bruxa cansa.
Chega em um ponto que não
Se quer mais fazer magia,
Eu só queria que o mundo
acabasse em barranco pra
Eu morrer escorada.
Tinha setenta e seis anos
Quando aconteceu.
Ser bruxa cansa.Se quer mais fazer magia,
Eu só queria que o mundo
acabasse em barranco pra
Eu morrer escorada.
Tinha setenta e seis anos
Quando aconteceu.
Naquela época
eu gostava de toda noite
Ficar na varanda com os pés
Dentro de uma tina de salmora.
Quem é velho sabe como isso
Alivia a dor nos pés,
E o que eu mais tinha eram dores.
Então naquela noite de sábado
Sentada na rede vi ao longe
aquela figura vestida de vermelho
Se aproximando da entrada da casa.
Os cabelos ao vento, descabelada,
E aqueles olhos cor de mel...
Maquiagem mal feita porem
Ela era ainda assim linda,
Mas a forma como a luz
Da lua se refletia
Esbranquiçada demais na pele
Dela... aquilo era uma alma
E eu sabia.
A mulher parou na entrada
Bem rente aos degraus
Da varanda e me olhou
Batendo aqueles cílios longos.
Eu não gostei nada disso,
Não gostava que minha vida
Estivesse na boca de quem
Não conheço.
E então ela me contou tudo
sobre a tal Rainha de Cantábria
E sobre ser uma descendente
Amaldiçoada.
Meu neto apareceu no batente
Da porta.
Ele bufou e se foi,
Não gostava das minhas
crenças ja que não podia
Ver espíritos.
Pensei um bocado,
E então decidi que valhia a pena.
Meu neto tinha apenas nove
Anos de idade, meu filho e
Nora estavam mortos,
E eu precisava de saúde pra
Criar o menino.
Olhei para tal Farrapo
E a chamei para dentro
De minha casa, fomos
Até o quarto das rezas,
Um quarto onde eu fazia
Meu trabalhos.
Ela olhava desconfiada
Para as imagens de santos
católicos no altar.
Ela sorriu.
Dei de ombros, elas que
São mortas que se entendam.
No meio do cómodo havia
A minha mesa de jogar Tarô,
Sob ela o cesto onde estava
a ferramenta que podia trazer
Uma mestra ate lá, era
Um chocalho de cabaça,
Uma maracá.
Acendi sete velas sobre
A mesa, cortei a pontinha
Do dedo mindinho com
uma faca de rito e passei
O sangue no maracá
Desenhando ali o símbolo
de Endor,
Depois chamei meu neto,
Lhe prometi uns trocados
se ele tocasse o tambor,
O menino me achava a maior
Das doidas mas aceitou,
Entrou no quatro e no cantinho
Sentiu em cima de um tijolo,
Pegou o tambor e ficou pronto.
Olhei para meu neto.
O menino revirou os olhos.
Ergui o maracá acima
Da cabeça e comecei a
Sacudir levemente,
O menino batucava
Enquanto cantava:
Do Angico e Vajucá!
Tô-tô na Jurema, tô-tô a Juremá!
Eu vou chamar a Júlia Galega
Para ela trabalhar!"
Meu neto respondeu:
É princesa do Juremá!
Salve a dona Julia Galega
Que ela vem do alto mar!!
venha cá me ajudar!'
Mas seus cabelos dourados na Jurema
Ela deixou!
Foi lá no cabaré que ela se passou,
Mas seus cabelos dourados na Jurema
Ela deixou!
Ela é Júlia Galega,
É la da banda sul,
Se pega o nego da-lhe um tapa,
Tira o couro e come cru!"
É la da banda sul,
Se pega o nego da-lhe um tapa,
Tira o couro e come cru!"
Tira o couro e come cru!
Se pega o nego da-lhe um tapa,
Tira o couro e come cru!"
Então a mesa no centro da sala
Foi esmagada, meu neto berrou
Assustado pois so o que viu foram
As pernas na mesa quebrando,
Lascas de madeira espirrado,
O tampo batendo no chão e as
Cartas de meu tarot voando
para todo lado,
Mas eu vi Júlia Galega cair sobre
a mesa, foi ela que a arrebentou.
La estava Julia, belíssima
em um vestido azul claro
Cheio de pedrinhas de brilhante
Incrustradas, os cabelos louros
Cumpridos volumosos,
Olhos azuis como diamantes.
Júlia virou o rosto e seus
Olhos se encheram de ódio
quando viu a Maria Farrapo
Ali diante dela.
Júlia virou as costas e sua
Figura começou a desvanecer,
E ai que eu vi que havia sido
Enganada.
A Maria Farrapo, porca
E desleixada se tranformou
Em um piscar de olhos
em uma mulher belissima
De vestes purpura e dourado,
E os olhos brancos como
O do rei dos raios!
Farrapo se mostrou a mim
Como uma alma torta, esdrúxula,
Mas o que via agora era
Uma feiticeira.
As cartas do tarot espalhadas
Pelo chão começarão a voar
Pelo comodo, Júlia desapareceu
E imediatamente o comodo
Estremeceu e eu e meu neto
Fomos arremassados para cima,
Me lembro de ouvir ele berrando
e de ver as vigas do teto
Chegando bem perto de meu rosto,
Mas de repente o telhado da casa
Não existia mais
E quando dei por mim estava
deitada em um chão de terra
E folhas secas.
Meu neto correu pra junto de mim
E me ajudou a levantar.
Ele agora podia ver as duas,
Elas lutavam como duas leoas
Diante de uma árvore.
Olhei com atenção para a árvore,
Era gigantesca, em seu tronco
Eu vi uma cobra coral enorme,
Maior que a maior das jibóias,
Ela se enrolava no tronco
Sem parar.
Olhando em volta
vi sete batentes de portão,
Portais.
Através de cada um era
Possível ver um lugar diferente.
Eu também tinha medo.
Então meu neto
Correu até um dos portões,
Um que através dele era
Possível ver uma aldeia
Com ocas e uma grande maloca.
Meu neto tentou atravessar
O portal mas não conseguiu,
Era como se houvesse uma
Folha de vidro, ele bateu várias
vezes mas não conseguiu passar.
Fui até ele levando meu maracá.
Fiquei surpresa, meu filho
Tinha morrido a muito tempo,
Não sabia que o menino lembrava
De seu Sultão.
Olhei para trás, Farrapo e Júlia
ainda lutavam se rasgando
com as unhas cumpridas.
Eu limpei a marca
De sangue do maracá
Com o pano da minha saia,
Dei ele a meu neto.
Meu neto tremia um pouco
Mas começou a sacudir o maracá
E a cantar:
Três-cima-na-caçada!
Três-cima-na-cacique!
Três-cima-na-caçada!
Rodeia a mesa caboclo e vamo trabalhar!
Rodeia a mesa caboclo e vamo triunfar!
Caboclo sultão das matas assobiou!
Assobiou, no terreiro deu pra ouvir!
Meus irmãos, vão ver quem é!
Ele é Sultão das Matas, o caboclo vem ai!"
Vi através do portal vários
Indios saindo de suas ocas
E olhando espantados para nós,
Então em instantes o portal
Reluziu e um homem indígena
De mais de dois metros
De altura atravessou,
Usava um saiote
De couro de onça e um cocar
De penas de arara,
Ele olhou para nós dois
E imediatamente nos ajoelhamos
diante dele.
Meu neto tentou falar
Mas o índio ergueu a mão
Pedindo silencio,
Então passou por nós e
Foi direto para as duas
Que ainda lutavam diante
da árvore, as agarrou pelas
Vestes e jogou as duas no
Chão com tamanha força
Que elas cairam e permanceram
Derrubadas.
A voz dele era tão grossa
Que tremia dentro da gente
quando falava.
Meu neto começou a chorar
Ao ouvir aquilo,
E eu quis abraca-lo
Mas antes que pudesse
Um galho da arvore
Baixou e o agarrou,
O menino gritou desesperado
E eu fiquei boquiaberta
ao ver o galho se transformar
Em um braço, a copa da arvore
Se derramar em uma cabeleira
Negra, longa e lisa,
A cobra coral se tornar
Um colar e de repente
A árvore era uma mulher
Gigantesca usando um cocar
De penas negras e pinturas
vermelhas pelo corpo nu.
Meu neto era como um
Passarinho em sua mão
enorme, ele se debatia
assustado, ela assoprou
Em cima dele e
Então ele desapareceu.
O índio e as duas mulheres
Estavam agora prostrados
Em reverência diante da giganta.
A giganta sorriu para mim
E com uma voz suave falou:
Então eu entendi,
A giganta era a mãe da terra,
Era a Cabocla Jurema.
Me prostrei diante dela.
Olhei para trás, realmente um
Dos portais tinha uma lua
Bem grande e reluzente
Brilhando sobre um morro.
O indio deu um grito agudo
E os sete portais se abriram,
Muitas pessoas sairam deles,
Eu reconheci Mestres, Mestras,
Marinheiros, Caboclos e caboclas
de pena ou de boiada, espíritos da
Floresta e outros que não pude
Distinguir pois não conhecia.
Eles saudaram Jurema com
Vênias e então formaram um
Círculo em volta das duas mulheres,
Eu mesma fui levada para
o circulo para ver a luta das duas.
Era assombroso, elas usavam
feitiços uma na outra,
Quando Farrapo estava quase
Tocando no corpo da giganta,
Julia a puxou para trás a
Arremessando longe,
Quando Julia estava quase
Empurrando Farrapo para
Dentro do portal
Farrapo se safou e deu-lhe
Um bofetão, saiu correndo
disparada até a giganta
Mas foi impedida por
Júlia novamente.
Os espíritos na roda
Vibravam com a luta,
E eu não entendia realmente
Os motivos de Júlia querer
tanto impedir Farrapo
De alcançar o objetivo,
Mas se ela estava tão
Empenhada devia ter
Uma razão firme.
A briga prosseguiu
Por algum tempo,
Elas eram muito fortes,
Quando as unhas de uma
arranhava o corpo da outra
Aquilo emitia faíscas
E um cheiro forte de rosas.
Eu estava apreensiva
Mas em um determinado
momento Farrapo conseguiu
Se desvencilhar,
Correu até a grande Jurema
E tocou a ponta do dedo
Em um dos pés dela.
Júlia correu para agarra-la
Mas antes que pudesse
Alcançar, o corpo de Farrapo
Se acendeu como uma farol
E permaneceu brilhando.
Júlia sentou no chão dando
Socos na terra, estava era
Cheia de raiva.
A giganta se inclinou,
Fez um biquinho com os lábios
E soprou sobre Farrapo,
A figura dela voltou as cores
normais.
Farrapo ficou em pé.
Dei um passo a frente
para perguntar se agora
Poderia voltar para meu corpo,
Mas quando abri a boca
Ja me vi dentro do cômodo
De minha casa, diante da
Mesa quebrada e com algumas
cartas de Tarot ainda flutuando
No ar.
Toquei meu rosto
Pra ter certeza.
Ouvi uma respiração forte,
Meu neto estava deitado no chão
Bem ao lado do tambor,
Ele bocejou e abriu os olhos.
Ele saiu do quarto andando
meio torto, tonto, foi
Para os fundos da casa
Se arrumar para deitar,
Já eu fui para a varanda,
Sabia que tinha alguém lá.
Sai pela porta e ali sentada
Nos degraus da varanda
Estava Maria Farrapo,
Linda em púrpura e dourado.
Ela desapareceu como
Se fosse feita de vapor
Ali bem diante de meus olhos.
E Eu? Eu morri na altura
dos cento e onze anos
Morri dormindo, sem doenças
ou dores, deixei meu neto
Com a vida feita,
E hoje ca estou,
Pois hoje moro em uma
Das sete cidades sagradas,
Moro no sobrado de dona Luziara,
E lhes digo, tenho ainda
Muita história pra contar.
Felipe Caprini, Contos das Muitas Marias
Segunda Temporada — Conto 11
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