Eu rezava antes de dormir,
Rezava as vezes para Jesus,
Outras para o Diabo,
Tanto fazia, eu apelava
Para qualquer um que pudesse
me ajudar a sair dali.
Foi então que uma noite
Aquela mulher
apareceu diante das barras
De ferro de minha cela.
Eu rezava antes de dormir,
Rezava as vezes para Jesus,Outras para o Diabo,
Tanto fazia, eu apelava
Para qualquer um que pudesse
me ajudar a sair dali.
Foi então que uma noite
Aquela mulher
apareceu diante das barras
De ferro de minha cela.
Eu achei que era um anjo.
Que tolice a minha,
Um anjo de vestido vermelho,
Maquiagem e espartilho?
Estava preso na Aljube ja
Fazia dois meses,
O lugar era um inferno,
Cheirando a bosta
E com gritos interrompendo
O sossego de quem queria paz.
Dois meses sem ver a luz do sol
Deixa a gente doido sabez
Então naquela noite acordei
Com a voz suave da mulher
Me chamando, abri os
Olhos e a vi ali em pé
No corredor.
Por Deus eu lhes digo,
Era tão linda eu mesmo
Tendo a percepção que era
Coisa do outro mundo,
Dela não tive medo.
Eu sabia que era coisa do
Outro mundo pela perfeição.
Não existe gente de carne e
Osso tão perfeita.
Me ergui de salto e
Corri ate as barras de ferro.
— Afonso...
Ela disse meu nome
Cantando as silabas
De um modo galante.
— Que-quem é a senhorita?
— Se eu lhe disser que sou uma fada, você acredita?
— Não...
— E uma bruxa?
— É mais provável.
Ela riu disso.
— Afonso... logo que amanhecer vão vir lhe tirar desta cela, irá a julgamento pela manhã e antes do meio dia teu corpo estará balançando feito um pendulo na praça, enforcado. As crianças irão atirar pedras no cadáver e os pássaros comerão suas vísceras.
— Jesus amado...
Engoli em seco.
— Ficou assustado?
— Com medo sim, mas assustado não. Eu ja imaginava. É injustiça, eu sou inocente.
— Eu sei que é, eu sei. Eu posso lhe ajudar, se quiser.
— A senhorita é uma alma penada? Na vera?
— Quase isso.
— Então quaisquer ajuda que puder me dar, eu quero.
Ela abriu um sorriso largo
Mostrando dentes tão branco
Que imediatamente fechei
minha boca com vergonha
dos meus amarelos.
— Para que eu te ajude, deves me dar permissão. Eu posso lhe tirar daqui, mas so se me der total autoridade sobre si.
— Autoridade?
— Sim, autoridade sobre sua vida.
Ponderei bem,
Mal conhecia aquele diabo,
Mas a segundo opção
era dizer não e acabar enforcado.
— Pois bem.
— Não, tens que dizer "Eu me entrego totalmente, me dou de corpo e alma a ti".
— Eu me entrego totalmente a ti, me dou de corpo, alma e tudo mais que quiser dona moça.
Ela gargalhou.
Olhei para o rosto dela
E tentei sorrir também,
Mas tudo ficou turvo,
Minha vista escureceu
E tive algo como um desmaio.
Comecei a sentir uns solavancos
E aos poucos fui retomando
Os sentidos, me vi
Em meio a um matagal.
So podia saber que era
Matagal pelo brilho
Da lua que refletia
No mato rasteiro,
Pois era alta madrugada.
Andava rápido e logo
Comecei a correr,
Sentia a fricção do tecido
Da calça enquanto corria.
Mas... mas eu não queria,
Não queria correr descalço
Pelo mato.
Tentei parar, em vão.
Tentei mais, nada, eu
Continuava correndo.
Tentei gritar, ate senti
o ar passar pela garganta,
Mas nenhum som
Saiu de minha boca.
Pensei:
"Estou endemoninhado"
E de fato estava.
Tinha medo, tanto medo que
Acabei por começar a rezar
A Nossa Senhora em pensamento
Para tentar livrar meu corpo do
Domínio de Satanás.
De repente fui lançado
Contra o tronco
De uma figueira,
Bati ali e girei no ar
Caindo do outro lado,
Rolei por uma ribanceira
E quando parei deitado
de bruços, percebi
Que ja tinha novamente
o controle de meu corpo.
Ao tentar me levantar
senti tanta dor nos membros
que cai de volta com a cara
Na terra.
— Nazareno, o que é que esta se passando comigo?
— Levanta.
Era a voz dela, daquela mulher.
Tentei levantar, não dava,
Tinha costelas quebradas,
Gosto de sangue na boca.
— Mandei levantar!
Ela agarrou minha cabeça
puxando meus cabelos,
Me forçando a ficar em pé.
Gritei de dor e de horror
Quando comecei a ser puxado
pelos cabelos,
Andava tropeçando nas
Touceiras e nas pedras,
Nao conseguia ver direito,
Via sim as costas dela,
A amarração do espartilho
e os cabelos negros.
Pedi para que me soltasse,
Mas ela não soltou.
Então a luz da lua cheia
Clareou o terreno,
Estávamos descendo um morro,
Haviam pontas brancas saindo
do solo, saíam por todos os lados.
Eram ossos.
Chutei um crânio pequeno,
Ouvi o som de rachar quando
Pisei em uma caixa torácica.
— Valei-me Nossa Senhora da Conceição!
— Ah que delicia, um homem de fé!
— Isso é ossada de gente moça!
— É sim.
— Me solte! Eu não quero! Não quero ficar aqui!
— Sabe o que é isso? Um cemitério de escravos. Os donos dos canaviais e cafezais da região mandam os corpos para cá, e como não querem perder tempo, cavam covas razas ou simplesmente abandonam os corpos ao léu.
— Ka-kalu... ka... é uma Kaluka?
— Kalunga, é isso mesmo, assim que esse lugar é chamado.
Ela agarrou meu pescoço com
Força e me atirou dentro de
Um buraco no solo, cai derrubando
Junto um punhado de terra e ossos.
Tateei o chão, era liso como
Se houvesse sido pavimentado.
A mulher veio atras de mim
E me agarrou pelos cabelos
me fazendo ficar em pé.
Então o local misteriosamente
Se iluminou com uma luz
Amarelada como a de archotes.
Olhei a diante, ali havia
Uma grande caixa de madeira
Podre, retangular com quase
Dois metros de comprimento
Em volta da caixa contei
Seis corpos de homens
e mulheres,
Corpos ainda frescos,
Apenas um pouco inchados
E parcialmente devorados,
Todos com os braços ainda
Esticados, as mãos tocando
O tampo da grande caixa.
Fui forçado a me aproximar,
Tropecei em correntes no chao.
Vi no tampo na caixa
A marca de onde antes haviam
Estado seis voltas de correntes,
E seis cadeados abertos
Jogados sobre a madeira dela.
A mulher me jogou sobre o
Tampo, bem diante do meu rosto
Vi uma última volta de corrente
Com um cadeado de prata.
— Abra.
Ouvi vozes, chiados dentro daquele
buraco, as vozes cheias de medo
Me diziam para não tocar no cadeado.
— Calados!
As vozes sumiram.
— Ande Afonso, abra.
— Eu... eu não tenho a chave.
— Tente assim mesmo.
Aproximei minhas mãos
trémulas do cadeado,
E quando eu o toquei
ele simplesmente se abriu.
Segurei o cadeado em minhas
Mãos e fui tomado por um
Frio tao intenso que dei um
Salto para trás.
Mas assim que pulei
Vi aquele corpo masculino
Debruçado sobre o tampo
Da grande caixa.
Era eu, era meu corpo.
Fiquei parado, imóvel
Sem saber o que fazer.
— Obrigada.
A mulher sorriu para mim cheia de deboche.
— Você me guiou até a morte. Porque fez isso comigo?
Ela foi ate meu cadáver e o puxou
Pelos cabelos para que saisse de
Cima da caixa.
— Porque exatamente você foi parar na prisão de Aljube?
— Roubo.
— Isso é o que os intendentes sabiam, mas você fez bem mais que roubar, não fez?
— Não...
— Não minta, não adianta mais. Matou quantas mulheres Afonso? Quatro?
Assenti.
Ela sabia das minha vida.
— Você nunca ouviu falar em separação de corpos? Achava mais fácil matar as coitadas não é?
Fiquei em silencio.
— Sua participação aqui ja acabou, pode ir embora.
— Para onde eu vou?
— Para o raio que o parta.
Eu não me movi, fiquei e
Observei ela Abrir a grande caixa,
E com espanto vi ali dentro
um esqueleto, aquilo era
Um caixão.
A mulher se inclinou sobre o
Esqueleto e cantou algo,
Eu não sei repetir as palavras
mas não era em português.
Então o esqueleto se tornou
Gente novamente, a figura
De uma mulher negra vestida
com um diáfano vestido branco,
A pele reluzente e o rosto
Emoldurado por uma vasta
Cabeleira.
A negra no caixão se mantinha
Serena, olhos fechados
E labios entre abertos.
— Se lembra Djenane? Se lembra de Quitéria?
Ao ouvir aquele nome
Os olhos da mulher no caixão
Se abriram imediatamente
E ela encarou a outra com fúria.
— Quem és tu?
— Eu? Uma amiga. Eu a libertei dos sete cadeados.
— Sete Cadeados? Como?
Foi de repente, a mulher
Se ergueu do caixão de
Modo desordenado,
Apertou as mãos sobre
O estômago e balbuciou:
— Meu filho... meu bebê! Onde? Onde está meu bebê?
— Não chegou a nascer. Querida, não percebeu? Você esta morta.
A mulher negra se voltou
para o caixão do qual acabara
De sair e então apanhou
dentro dele um minúsculo
Crânio, tão pequeno que cabia
Na palma de sua mão.
Segurou como se aquilo fosse
A coisa mais preciosa do mundo.
— Ela sabia, Quiteria Sabia que você era muito mais forte que ela.
— Mas no período de gestação... eu fiquei fraca.
— E ela... bom, você sabe.
— Me matou... matou uma mulher grávida...
— Ela não é exatamente uma fã de maternidade.
— Quanto tempo estive presa neste caixão?
— Quase cem anos.
A expressão da mulher negra
Se tornou dura, cheia de ódio.
— Como você sabe destas coisas? Como soube desfazer as sete trancas? Quem é você?
— Eu fui aprendiz de Quitéria na época que era viva. Eu a ajudei a mover este caixão para cá, e ela acabou por me contar a sua história.
— Quem é você?
— Maria Padilha, este é meu nome. Djenane... eu vou te ajudar a se vingar dela.
— Ajudar? Como? Como eu me vingaria dela? Se realmente se passaram cem anos, aposto que assim como eu ela ja está morta.
— Sim ela ja é morta. Mas ainda há como se vingar dela.
— Como?
— Ela lhe matou para roubar as caixas, eu sei. Mas ela nunca conseguiu usar o poder delas.
— As caixas da Rainha? Ninguém pode usar aquelas coisas, impossível controlar aquele demónio.
— Justamente. Vamos abrir as caixas.
A mulher negra arregalou os
Olhos para aquela que agora
Eu sabia se chamar Maria Padilha.
— Abrir? Ficou louca? Se a Rainha sair, se for liberta... ela vai fazer conosco o pior que posso imaginar.
— Conosco não, nós a libertaremos. Com ela, o pior vai recair sobre as outras, e entre elas, Quitéria.
A mulher negra olhou
para baixo como quem
Pensa, cogita.
— Não tem medo desse plano dar muito errado?
— Pergunte por ai se medo uma característica de Maria Padilha.
— Gostei...
— Então vamos Djenane, vou te contar tudo que sei.
— Djenane? Eu? Não mais.
— Não quer mais seu nome humano? Escolha outro então.
— Que tal... Sete Catacumbas?
E elas saíram dali gargalhando.
Eu? Eu fiquei por aqui mesmo,
Algo que desconheço me impede
De ir para outro mundo.
Eu sou apenas uma testemunha,
Um fantasma com muitas histórias
Para contar.
Felipe Caprini, Contos das Muitas Marias
Segunda Temporada — Conto 12
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