Por mais de dois meses
O povo me perguntava
Como Zé Pilintra havia morrido,
Eu dizia várias historias,
Dizia que tinha morrido na bala,
Que tinha sido levado pro fundo
Do mar pelo Nego d'água,
Enchia o povo dessas larotas.
Por mais de dois meses
O povo me perguntavaComo Zé Pilintra havia morrido,
Eu dizia várias historias,
Dizia que tinha morrido na bala,
Que tinha sido levado pro fundo
Do mar pelo Nego d'água,
Enchia o povo dessas larotas.
Mentia porque queria proteger
Meu querido Zé Ambrósio,
Sim, esse era o nome de Zé Pilintra.
Queria protege-lo pois estava vivo.
Quando o conheci eu tinha lá
Meus dezoito ou dezenove anos,
Fui morar em um casebre
No Morro no Desterro.
Vim fugida de Alagoas
Após ter feito lá umas coisas
Não muito nobres.
Era moça e sozinha, logo
O meu destino seria ir para
Em um Cabaré, mas eu
Nunca me dei com essa vida,
Então passei a me vestir com
Roupas de homem para evitar
Qualquer desmerecimento,
Dali em diante tive de viver do furto.
Foi então que o conheci,
Toda gente que é da noite
Hora ou outra se esbarra.
Me lembro como se fosse hoje,
Estava eu passando
Na frente de um botequim
Lá perto do aqueduto da carioca
Quando um homem me chamou.
— Psiu... Psiu... Ei ei, rapazola dos fundos grandes... ah, me enganei, não é rapaz, é você... Maria Navalha.
Claro que me espantei
Que ele soubesse que
Eu era mulher e que ainda
Por cima soubesse meu apelido.
Mas dali acabou nascendo
Uma grande amizade.
Ele dizia estar lá pelos seus
Cinquenta anos mas era
Tão bonito que lhe davam
Menos de trinta.
Vivemos aventuras mil.
Demos muito trabalho
Ao conde de Figueiró,
Ao Conde de Rezende
E a toda essa corja.
Vários deles emitiram
Mandados para a captura
E execução de Zé
Mas nunca deu em nada.
Zé tinha bom relacionamento
Com os homens da milícia,
Afinal que vontade eles
Teriam de prender ou matar
Alguém que lhes pagava tão bem?
Mas os anos foram passando
E as coisas foram mudando.
Certa vez Zé marcou
De receber uma carga de seda chinesa
Que havia sido desviada de um
Navio mercante francês,
Íamos vender as quengas
E ganhar um bom dinheiro.
Na noite marcada chegamos
Nós e nosso bando no porto,
E foi ai que vi que as coisas
Tinham mudado.
Os malandros perguntaram
A Zé qual dos muitos barcos
Era o que continha a mercadoria,
Zé sempre tinha um sorriso
Maroto nos lábios
Mas naquele instante parou
De sorrir.
O observei, ele olhava para
Os navios sem dizer nada.
Cochichei em seu ouvido:
— Zé? Você esqueceu qual é o navio?
Ele balançou a cabeça assentindo,
Então eu mesma indiquei
Aos homens qual era.
As coisas continuaram a ir mal,
Em uma batalha contra o bando
Do Sete Facadas, Zé esqueceu-se
De levar a pistola,
No meio da balbúrdia eu
Tive de lhe dar-lhe uma das minhas.
E isso foi se seguindo por anos,
Cada vez Zé Pilintra se parecia menos
Com o homem que eu havia conhecido.
Após uma noite de bebedeira
O levei para meu barraco,
Disse aos homens que ele estava
Bebado demais para ir para
Casa sozinho.
Mas foi mentira minha,
Fiquei bem reparando que na
Hora de ir embora do botequim
Ele não sabia que caminho tomar,
Havia esquecido como voltar
Para o morro do desterro.
Então o trouxe para minha casa
E ali o fiz abrir o jogo a respeito
Do que estava acontecendo.
Ele confiava em mim, eu
Era sem sombra de dúvida
A mulher a quem ele mais confiava
No mundo, então contou:
— Maria, sabes quantos anos tenho?
— Uns sessenta Zé? No máximo sessenta e cinco.
— Não Maria... não... eu nasci na época em que o velho Moura mandava em Pernambuco.
— Deixe de lorota Zé! Se fosse assim tu teria mais de cem anos!
— Tenho cento e noventa e um.
É claro que não acreditei,
Zé sempre fora fanfarrão.
Mas então ele sentou em minha
Cama e desabotou a camisa
Ficando com o peito desnudo.
Apontou para os ombros e disse:
— Tu te lembras que me perguntou na época que eramos namorados, me perguntou o que eram essas marcas?
E eu olhei novamente,
Eram marcas de queimadura
Feitas a ferro em brasa,
A do ombro direito paracia
Uma carranca, a do esquerdo
Um facão ou coisa do tipo.
— Sou filho de mãe índia e pai preto. Na época minhas duas avós eram fugidas, tempo em que índio também era escravo sabe... as duas eram mandingueiras. Se conheceram em um quilombo nas voltas de Salvador. Nasci em Recife em mil seiscentos e quatorze. Minhas avós tinham a esperança de que eu, um cafuzo, traria para os dois povos a esperança da liberdade. Então fizeram em mim ainda bebê as mandingas. Minha avó índia me queimou o ombro direto com as rezas dos tupinambás, minha avó preta queimou o ombro esquerdo com as rezas dos angolanos. E eu fiquei enfeitiçado. E tire esse sorriso do rosto Maria, preste atenção no que lhe digo, a maior chance é que em breve eu me esqueça de minha própria história.
Vi que era sério,
Ele falava com aquele
Tom de voz que usava
Quando fazia os discursos
Antes do nosso bando
Ir pras guerras.
— Então é verdade Zé? Você é mesmo enfeitiçado? Mas pra quê?
— Sou. Fui enfeitiçado pra ser incorrupto. Nenhuma arma me mata, nem faca, nem ponta de espada, nem bala de chumbo, nem queda, nem agua no peito. Eu não posso morrer.
— Mas se é assim... porque é que tá com a cabeça fraca dessa jeito? Eu tenho reparado de um três anos pra cá, tu não é mais o mesmo.
— Minhas avós me preveniram a respeito... disseram que não é direito um homem viver duas viradas de tempo, ou seja dois séculos. Disseram que se até esse tempo eu não tivesse conseguido trazer liberdade aos povos delas... eu ia sumir por dentro. Ja ouviu falar da palavra morto-vivo? É isso que eu vou ser, um corpo sem alma. E ja estou sentindo a alma esvaziando, estou sentindo eu mesmo indo embora. Foi muito injusto sabe, elas tinham essa ilusão que eu poderia mudar tudo. Mas mesmo enfeitiçado eu não tenho como mudar nada.
— E o que eu posso fazer pra lhe ajudar?
— É isso que queria lhe pedir. Preciso de ajuda pra morrer Maria. Só há uma pessoa nesse mundo que sabe como me matar.
— Quem?
— Maria Padilha.
— Então lascou-se! Ela morreu Zé!
— Desencarnou... ela só desencarnou.
A conversa não rendeu mais
Quase nada,
Zé caiu novamente naquelas
Ondas de esquecer quem era
E depois nada disse de útil.
Uns meses depois Zé Pretinho
Arrumou uma confusão
Com o tal Pinga-Fogo,
Um cuspiu na cara do outro
E foi aquele auê.
Logo ele veio pedir a Zé
Ajuda pra tomar satisfação,
E Zé mandou reunir todo
Nosso bando pois íamos
Descer até a baixada e caçar
O tal Pinga-Fogo.
Fizemos isso, e foi aquele
Mar de gente descendo o morro,
Todos armados até os dentes.
Só que chegando lá em baixo
Pinga-Fogo também tinha com ele
Um mar de gente.
Eu do lado de Zé,
Farrapo do lado de Pinga-Fogo,
E nossos bandos atrás de nós.
Não teve outra, a bala comeu,
Foi facada, tiro e pancadaria
Pra todo lado.
Mas no meio da kizumba
Reparei em Zé, ele do nada
Saiu caminhando por uma
Ruela rumo a praça igreja.
Corri atrás e o puxei pelo braço:
— Zé! Zé onde está indo? Os homens precisam de ti.
Ele me olhou com olhos
Grandes e confusos.
— Quem é Zé?
Tentei chama-lo de volta
A razão mas não deu jeito,
Estava oco, vazio.
O que fiz foi sumir com ele,
O levei para o único lugar
Onde ficaria seguro,
O coloquei em cima
De um cavalo e fomos para
O casarão de uma amiga,
Rosa Vermelha.
Rosa era boa gente,
Marafona mas honesta,
E sabia bem guardar um segredo.
Voltei para o morro
E Quando os homens perguntaram
Sobre o paradeiro de Zé,
Disse que estava morto.
Não foi de todo mentira,
Zé não existia mais,
Era só um corpo vazio.
Na semana me organizei
E aluguei uma casa na baixada
E o coloquei lá.
Zé só falava coisas desconexas,
Não comia se não lhe desse
As colheradas a boca,
Tinha de lhe dar banho
E trocar sua roupa como um bebê.
Dois meses ficou assim
Até que eu vendo que era situação
Irreversível,
Pedi a Rosa Vermelha que viesse
Até nós para dar conselhos.
Ela chegou, simpática como era,
Mesmo ja sendo uma senhora
Ainda era muito bonita.
Lhe falei:
— Veja Rosa, veja o que virou meu Zé...
— É loucura o que ele tem?
— Não...
E então lhe contei toda a história
Que Zé havia me dito,
História de feitiços e vida eterna.
— Você acredita nessas coisas?
— Por Deus, eu acredito. Fui criada na barra da saia de Dona Quitéria, se tem uma coisa que sei que existe é a bruxaria.
— Mas ele disse que a única que sabia como liberta-lo era Padilha.
— Então vamos levar ele até ela.
— Mas como? Ela está morta, Rosa.
— Deixe de besteira, arrume ele, vou chamar meu cocheiro.
Saímos de lá naquela
Carruagem vermelha e dourada,
Então fomos até o Cabaré,
Lá só passamos para pegar
Uma menina, uma messalina
De uns quinze anos a qual
Rosa apresentou como Josephina
E que trazia no colo uma
Caixa de madeira preta
E um grande embrulho de papel.
Seguimos até a boca da mata,
Para o terreno baldio onde
Os indesejados pela igreja
Eram enterrados.
Desci Zé do coche com calma
Pois ele tropeçava nos próprios pés,
Segui Rosa e a moça para dentro
Da mata, chegamos aquela
Clareira cheia de monturos de terra,
Cada monturo era uma cova.
Rosa indicou um monturo
Bem perto de um castanheiro.
— É ai, é ai que ela foi enterrada. Deite ele em cima da cova, ande Navalha, temos de fazer antes que amanheça!
Eu sempre fui mulher valente
E bem decidida, mas tenho
De confessar que ali quando
Rosa começou a fazer as coisas
Quase que me acovardo.
Sem questionar deitei Zé em cima
Do monturo de terra batida.
Rosa abriu a tal caixa de madeira
E tirou de lá um leque, brincos,
Um colar de esmeraldas e um punhal,
Do embrulho tirou
Um vestido vermelho vivo,
Rapidamente a menina se vestiu
E adornou com aquelas coisas.
— Que brincadeira é essa Rosa? Essas coisas são de Padilha, eu bem me lembro, ela é que era dona disto. Vai fantasiar a menina de Padilha? Acha que...
— Fique quieta Navalha, apenas observe.
Rosa segurou o rosto da menina
Com ambas as mãos e como um
Sussurro falou olhos nos olhos
Com aquela criança:
— Josephina você se deixa levar por nós está noite?
A menina fez que sim.
— Que bom... então eu chamo, convoco, invoco e conclamo, Maria Padilha venha cá ter conosco. Eu rogo e peço, Mulambo da-lhe a mão para que ela suba, Sete Saias segure a porta para que ela passe, Dama da Noite feche os olhos do cão da guarda para que ele não a veja, Figueira dance para que o barqueiro se distraia, Rosa Caveira jogue o pó no ar para que a esconda. Venha Maria Padilha, a cova profunda de te chama.
Rosa repetiu aquela ladainha
Uma porção de vezes,
E eu bem achava que estava
Era louca com aquela besteira,
Mas então os ombros de Josephina
Começaram a tremer.
Olhei em volta assustada
Ouvindo passos nas folhas secas,
Mas não havia ninguém vindo.
O vento soprou forte,
E então Josephina caiu de joelhos,
Os joelhos bateram tão forte
No solo que fizeram barulho,
Ela inclinou o corpo para trás
E gargalhou com uma voz
Que não era a dela.
Eu não tenho vergonha de dizer,
Fiquei parada vendo
Mas me tremia até os fios do cabelo
Pois achava que ali era
O próprio satanás.
Ela olhou para Rosa
Com os olhos vermelhos
Semicerrados.
— A que me chama Rosa? Sabe que a velha desgraçada não gosta de me deixar sair da casa.
— É ele Padilha, ele precisa de seus serviços.
Josephina olhou para Zé
Ali deitado, atônito,
E depois olhou para mim.
— Está com medo Maria Navalha? Pois não fique. Breve chegará o dia em que tu sera como eu sou. Mas agora é hora de socorrer este nosso velho amigo...
Josephina mandou desabotoar
A camisa de Zé, e assim fiz
Rapidamente com as mãos tremendo.
Ela pegou o punhal enquanto
Balbuciava uma ladainha diabólica
Passou a faca duas vezes em cima
Das cicatrizes de queimadura.
Zé deu um suspiro profundo,
O peito abaixou e ele
Parou de respirar.
— Está livre.
— Então pronto. Agora é só enterrar.
— Mas é só isso?
— Sim, só isso.
Ouvi a voz e meu coração
Pulou na caixa do peito.
Me virei bem devagar e
Olhei para trás,
Lá estava meu Zé
Em pé e todo garboso com seu
Paletó Branco.
Queria ter lhe dito algo
Mas não consegui,
Fui tomada de uma surpresa
E de uma emoção tamanha
Que apenas o encarei abismada.
Ele sorriu para mim,
Piscou e disse:
— Paciência Maria Navalha, guardei para ti um lugar bem ao meu lado. Paciência e já já vamos estar juntos de novo.
A figura de Zé esmoreceu,
Desvaneceu e se desfez no ar.
Quando me virei
Vi o cadáver a minha frente,
Um corpo ressequido e enrugado
Como o do mais velho entre os velhos.
Josephina estava caida
Adormecida aos pés de Rosa,
Ela me olhava de cima com
Um sorriso nos lábios
E então repetiu:
— Paciência Maria Navalha... Paciência...
Felipe Caprini, Contos dos Maridos da Lua
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