É difícil enteder como a vida anda.
Infelizmente a vida só anda
Para frente, pois se pudéssemos
Dar voltas atrás... tudo seria diferente.
Por mais que toda vida fosse
Identificada como uma
Fidalga Portuguesa,
É difícil enteder como a vida anda.
Infelizmente a vida só andaPara frente, pois se pudéssemos
Dar voltas atrás... tudo seria diferente.
Por mais que toda vida fosse
Identificada como uma
Fidalga Portuguesa,
Até o sotaque tenho,
Foi no Brasil que nasci.
Minha mãe era filha de uns galegos
E meu pai filho de uns Italianos,
E nessa turba de gente de Europa
Que emigrava para Brasil Colônia
Atrás de terras baratas para plantio,
Os dois jovens se conheceram.
Minha mãe com quinze anos,
Meu pai com dezesseis,
E nas aventuras inconsequentes
Da criancice eles quiseram se casar.
Bom, é claro que a família de meu
Pai, que tinham lá um bom dinheiro,
Não aceitaram bem essa história
De ele se casar com uma galeguinha
Filha de uns pé rapados.
Os dois então fugiram para
São Vicente e lá amasiados
Tiveram uma filha, que fui eu.
Eles se amavam muito,
Mas muito mesmo.
Foi este amor desmedido
Que causou tanta desgraça...
Papai abriu uma loja de tecidos
Usando os contatos de sua família,
Comprava os panos da Europa
E vendia na cidade para os alfaiates
Fabricarem vestidos e fatos.
Mamãe trabalhava com ele na loja
E eu ficava com os dois
Naquela vidinha pacata mas feliz.
Quando eu tinha seis anos
Mamãe ficou adoentada,
Uma febre que lhe dava repentina
E ela mal se aguentava em pé,
Tinha inchaços nos pés
E manchas pelo corpo.
Ninguém sabia bem o que era, mas...
Isso logo culminou em sua morte.
Meu pai ao perder a mulher
Não ficou bem.
Pra bem dizer, o que se esperava
Era ele aguardar três meses de luto
E já se casar com outra,
Pois era o hábito dos jovens viúvos
E ele era um moço bonito no início
Da vida adulta.
Mas não foi assim,
Meu pai ficou estranho, apático.
Tinha uma tristeza tão visível
Que só de olhar em seus olhos
Se via um mar de escuridão.
Parou de trabalhar, fechou a loja,
Começou a beber e a andar nas noites.
Eu tive de aprender a me cuidar sozinha,
Com oito anos eu ja cozinhava
E lavava roupas.
Assumi o papel de mulher da casa.
Uma noite esperei papai voltar
E quando ele chegou na madrugada,
Tinha as mãos e a camisa sujas de sangue.
Anos depois eu soube que ele
Na sandice que oprime
O juizo dos bêbados
Acabou por entrar em uma luta
Com um fulano parente de um figurão.
Briga por conta de jogo, coisa boba sabe.
Papai matou o homem na ponta da faca.
Ao ver o que tinha feito se desesperou.
Na mesma hora, so deu tempo
De ele se lavar, nós fizemos as malas
E fomos para o Porto,
Pegamos um barco para o Rio de Janeiro.
Papai me deixou na casa de meu avós.
Me lembro como se fosse hoje,
Só viviam la os dois velhos,
E eram do tipo de gente dura,
Gente que nasce sem coração sabe.
Ele lhes contou o acontecido
E eles aceitaram me acolher,
Mas só a mim.
Me lembro muito daquele dia,
Ele me ajudou a desfazer as malas
E guardar as roupas nos armários
Daquele que seria meu quarto.
Passou o dia comigo.
De noite me pôs na cama,
Sentou ali ao meu lado
E me cantou uma cantiga,
Um louvor de Santa,
Cantiga esta que era a preferida
De minha mãe,
Tanto que meu nome, Ana,
Era devido a devoção a esta santa.
Ouvi aquela voz grave e macia
Até cair no sono.
De manhã meu pai
Já não estava mais lá.
Vovô e vovó me proibiram
De falar de papai, de perguntar
Sobre ele,
Diziam que não iam permitir
Que eu fosse estragada como
Ele era.
As vezes de madrugada
Eu ouvia a voz dele dentro da casa,
Ouvia ele entrar, ouvia o tilintar
Das moedas de ouro que dava a vovó
E depois partir.
Nunca me deixou sem recurso,
Sempre fora ele que me sustentava.
Quando fiquei maiorzinha
Tomei coragem e indaguei vovô
Do motivo de meu pai não poder
Falar comigo.
Ele então me disse:
— Teu pai não é boa gente. Quando Joana morreu ele ficou maluco, ah se ficou! Bem se diga que eu e tua avó nunca pusemos lá muita fé nele, sempre foi melindroso. Achas o quê? Que ele matou o tal infeliz no porto e ficou por ai? Não não não... ele passou a se meter com uns negros sem dono, uns contranbandistas, marafonas, piratas e tudo que é gente da sarjeta! Hoje em dia o nome dele consta nas litas de procurados da guarda do rei, se pegam ele o penduram na ponta do laço. É por isso que se tu saíres por ai perguntando de Lúcio Belisário ninguém sabe, dizem até que morreu! Ora veja essa! Sabe como chamam o miserável agora? Veludo. Queres saber porque o chamam assim? Queres? Porque quando mata, o faz na surdina. Sim, tem mais de uma dúzia na conta já, vai sorrateiro, mete-lhe uma facada nas costas, um balaço na nuca, e pronto, o morto cai duro sem nem saber quem o matou. Ai dizem "o assasino tinha as pisadas de veludo" porque ninguém se da conta de nada, é pá e ele mata! Sabe do que mais? Há uma marafona pros lados do interior, uma tal Maria Padilha, veja só a desgraçada usa até nome de rainha! Mas sabe o que ela é? Bruxa! É noiva do demônio, não sabe? E teu pai vive de sem-vergoinhice com ela, deve ja ter vendido a alma ao senhor dela com certeza, e que Deus todo poderoso me perdoe por ter de aceitar o dinheiro que ele trás. Esse é o homem que queres que seja seu pai? Pois eu digo que se tivesses nascido de um porco na lama de um chiqueiro séria melhor!
É claro que eu disse não,
Ninguém havia de querer
Um assasino devasso como pai.
Quando se é criança
As palavras dos velhos penetram
Facilmente na mente
E tomam forma no pensar.
Ah... se eu tivesse a cabeça feita
Na época, não teria acreditado
Nas coisas que aquele velho
Amargo havia dito de seu próprio filho.
A conselho de meus avós
Passei a dizer que era órfã de pai
E de mãe.
Nisso eu passei a fingir que não o via.
Pois sim, ele nunca estava longe,
Muitas vezes da minha janela
O via na rua olhando para casa,
As vezes na rua o percebia parado
Encostada em algum lumieiro
Olhando para mim.
Antes eu acenava e até lhe atirava
Beijos no ar,
Mas depois que meu avô
Encheu minha mente com
Aquelas duras palavras
Passei a fingir que meu pai
Não existia.
Tantas vezes meus olhos
Se encontraram com os dele
E eu pude ver a tristeza que tinha,
Mas ainda assim eu virava
O rosto e fingia que ali
Não tinha nada, Ninguém.
Com dezesseis anos me casei,
Meu avô acabou fazendo um arranjo
Com a família Almada,
Família de portugueses,
Senhores de engenho de cana.
Tinham dois filhos varões,
O mais velho ia ficar no Brasil
Para reger o engenho,
O mais novo ia voltar para Portugal
A fim de fazer as negociações,
O translado do açúcar.
Me casei com Alfonso, o mais novo.
Dei sorte, tinha uns vinte anos
E era boa gente.
Não vou dizer que gostava dele,
Seria muita mentira,
Mas também não desgostava.
Casamos lá na N.S. da Apresentação,
E no dia do casório meu pai
Estava lá
bem discreto entre os
Convidados.
Me viu entrar na igreja de braço
Dado com meu avô.
Então na semana seguinte eu
Estava embarcando no navio,
Entrei lá na minha cabine
E fui arrumar as coisas,
Afinal seriam quase dois meses
Dentro daquela nau.
Meu marido saiu
Para conhecer o barco,
Foi então que de supetão
Um homem entrou na cabine,
Como quem tinha muita pressa
Me deu um abraço e
Um beijo na face.
So quando senti-lhe o aroma
Do perfume foi que entendi
Que era ele, meu pai.
Ele sabia com uma destreza
Fora do comum
Onde ficava a abertura do bolso
Das saias das senhoras,
Rapidamente enfiou no bolso
De minha saia um pacotão
Pesado, me disse que
Muito me amava e se foi.
O tal pacotão era mais de
Dois quilos de dobrões espanhóis,
Ouro maciço.
Vivi trinta e oito anos lá em Lima
No Norte de Portugal
Em um solar de muito bom gosto,
Fui mãe oito vezes,
De oito meninos muito sadios.
Estava então com cinquenta e quatro
Anos quando os sonhos começaram.
Sonhava com uma dama toda de vermelho
Que vinha aos pés de minha cama
Me acordava e dizia
"Ana, toma logo um navio a volta para tua terra, Veludo só resiste a tua espera."
A mulher dizia isto,
Eu acordava logo meio que
Ressabiada
Mas não dava lá muita ênfase.
E por todo o ano
O sonho semanalmente
Se repetia.
Até que meu coração
Se tornou tão pesado
Que acabei indo até a Ribeira
Ver uma senhora que jogava
Cartas, a ela perguntei
O que significava meu sonho.
Pois bem, so o que saia
Eram as carta do navio e da Cruz.
A mulher tentou me dizer algo
Mas nem precisou,
Eu mesma entendi que tinha
Era de zarpar de navio rumo
A Vera Cruz.
Avisei meu marido
Que vinha, que tinha sonhado
Com esta mulher que dizia
De meu pai.
Ele então, meio encabulado,
Pegou do meio de suas coisas
Um certo baú de papéis.
Eu não costumava mexer
Nas coisas dele então não
Fazia idéia do que eram os papéis.
Ele me disse que eram meus.
Peguei um e li logo no envelope
Os dizeres.
"Aos cuidados da senhora Ana Amélia de Belisário Almada, Solar Viradouro - Ponte de Lima, de Lucio Belisário, Rio de Janeiro Brazil"
Fui olhando os envelopes
E eram todos escritos da
Mesma maneira,
Tinha de certo mais de cinquenta.
Todos lacrados,
Cartas enviadas pelos últimos
Trinta e sete anos.
Meu marido explicou-me
Que não me entregava as cartas
A conselho de meu avô,
Que havia lhe advertido
Sobre meu pai nao ser boa coisa
E que imaginava ter me feito
Um bem ao me tirar o direito
De ler as palavras dele.
Agora ja velho, meu marido
Percebera a ignorância da situação.
Sentei-me a mesa
E com toda paciência li
Cada uma das cartas.
Após ler todas me senti tão mal
Que se fez necessário chamar-me
Um médico.
As coisas que li ali,
Coisas muito bonitas
E ao mesmo tempo
Muito tristes.
A vida de papai não havia
Sido boa,
Havia sofrido por demais.
Em muitas delas haviam bilhetes
De banco com valores a serem
Resgatados,
Eram altos valores
E ele escrevia que se precisasse
De mais dinheiro era só pedir
Que enviaria o quanto fosse.
A carta mais recente era de um ano
Antes, a forma das letras
No papel estavam estranhas,
Difíceis de ler.
Na carta ele relatava estar doente
E passava ali o endereço
De sua nova residência
Caso eu quisesse ve-lo.
Dois dias depois eu já estava
Dentro de um navio rumo ao Brasil,
Deixei marido, filho e o escambau
Em Lima e zarpei para ai.
Chegando caçei o endereço
Da carta e chegue até um rico
Casarão, era já noite quando
Tomei coragem a bati a porta.
Uma criada atendeu
E logo me levou para dentro,
No saguão tomei um susto
E chega me deu palpitações
Ao ver a dona da casa,
Era uma dama belíssima
Toda vestida de vermelho.
Me assustei pois pensei ser
A mulher que vi em meus sonhos,
Mas depois vi que não era,
Esta era já uma senhora idosa
Mas ainda muito bela
Ao qual se apresentou
Como Rosa Vermelha.
Perguntei se era esposa de meu pai
E ela logo gargalhou faceira
Com uma risada jovial,
Disse que não, que era dele
Algo como uma irmã de coração,
Amigos de velha data.
Me contou que papai tinha dinheiro,
Um alambique em Tijucuçu
E uma serie de casas
Nas margens do Paraíba
As quais vivia dos gordos alugueis,
Mas que morava ali com ela
Já a algum tempo pois ela
Não quis deixa-lo só.
Ela me guiou, Subi as escadas
E no fim de um longo corredor
Entramos no quarto,
La na beirada de uma cama
De dossel estava sentado
Um senhor encurvado.
Ele pareceu conhecer o som
Do estalar dos saltos
De Rosa Vermelha no assoalho.
Sem se virar falou
Com a voz fraquinha:
— Rosa... Eu acho que Marabô está la fora, ouvi a voz dele na rua. Ele está batendo na porta.
— Veludo se lembre, Marabô já se foi faz muitos anos. Mas tem alguém aqui para lhe ver.
Ele virou o pescoço fino
Bem devagarzinho
E me olhou demoradamente.
— Quem é a senhora?
— Sou eu pai, Ana.
— Mas que Ana?
Me aproximei da cama.
— Sou sua filha, Ana, sua e de Joana.
— Que besteira, minha Ana é uma criança ainda, não me pregue peças, eu não gosto.
Olhei confusa para Rosa Vermelha.
— Não leve a sério, ele está com a cabeça confusa ultimamente.
Suspirei e me sentei a seu lado,
Então fiz algo que acreditava
Que o faria se lembrar de mim.
O abracei e cantei:
"Senhora Sant'Ana ao redor do mundo...
Senhora Sant'Ana ao redor do mundo...
Aonde ela passava, deixava uma fonte...
Aonde ela passava, deixava uma fonte...
Quando os anjos passam, bebem água dela...
Oh que água tão doce, oh senhora tão bela...
Oh que água tão doce, oh senhora tão bela...
Encontrei Maria na beira do rio...
Lavando os paninhos do seu bento filho...
Lavando os paninhos do seu bento filho...
Maria lavava, José estendia...
Maria lavava, José estendia...
O menino chorava do frio que sentia...
O menino chorava do frio que sentia...
Os filhos dos homens em berço dourado...
E tu, meu menino, em palhas deitado...
Calai meu menino, calai meu amor...
Calai meu menino, calai meu amor...
Que a faca que corta não dá talho sem dor...
Que a faca que corta...
Que a faca que corta..."
— Essa era a cantiga preferida de minha menina Ana. Você a conhece?
Vi que não tinha jeito,
Ele não ia me reconhecer.
Então falei:
— Sim a conheço, ela está muito bem.
— Sabe, eu vou receber de um trabalho amanhã, acho que vou comprar uma boneca para ela. Vi na loja de uns turcos uma boneca de vestido amarelo.
— Sim, ela vai gostar muito.
Ele sorriu olhando para o nada
Com aqueles olhinhos
Esbranquicados de catarata.
— Ela não gosta de mim. Minha Ana. Eu fiz muitas coisas erradas, eu... eu acho que ela tem vergonha. É tudo minha culpa.
— Não, não tem não. É coisa de criança, birra. Ela te ama muito sabia?
Ele olhou para mim espantado.
— Você acha?
— Eu sei, ela me disse.
— Ela disse...
Ele sorriu, um sorriso
Largo e infantil.
Deitou na cama, o cobri
E prossegui falando de Ana
Como se eu mesma não a fosse.
Lhe narrei tudo sobre minha
Infância removendo quaisquer
Coisa que o pudesse magoar.
Antes de ele adormecer
Cantei novamente a cantiga.
Adormeceu calmamente.
Dona Rosa Vermelha me convidou
Para tomar uma bebida
E a acompanhei até a sala
De estar do casarão.
Lá vi uma grande pintura
Em uma tela emoldurada,
Nela representado uma dama
De vestido vermelho,
A exata mulher que vi
Em meus sonhos.
Dona Rosa Vermelha me contou
Que aquela havia sido
Uma grande amiga dele e de meu pai,
E imediatamente reconheci o nome,
Aquela era a tal Maria Padilha,
A mesma que meu avô havia
Mencionado como bruxa.
Agora eu mesma acreditava que
Ela de fato era.
Rosa Vermelha me convidou
A pernoitar no casarão,
Então fui colocada em um belo
Quarto de visitas.
Lá pelas três da manhã
Acordo com um zum zum zum
Na casa, música alta
Algumas risadas e gargalhadas,
Som de passos.
Sai de meu quarto e segui o som
Pelo corredor, queria saber
O que era e muito indignada
Percebi que o som vinha
Do quarto de meu pai.
Abri a porta e de repente
Fui tomada de uma visão
Das mais bizarras e incomuns
Que já vi e que não acredito
Que hei de tornar a ver.
Não havia um quarto ali,
E sim um grande salão cheio
De mesas, um palco ao fundo,
Musicos tocando violoncelos
Trompetes e violinos,
Uma mulher negra belíssima
Cantando sob o palco
E muitas moças e senhores
Dançando.
Maria Padilha estava lá
No meio do salão,
Sorriu para mim e apontou
Para uma das mesas,
Olhei e o que vi foi meu pai,
Jovem e bonito como havia sido
Na época de minha Infância.
Ele sorriu para mim
Um sorriso largo e galante,
Ergueu o copo e apertou os lábios
Atirando um beijo no ar.
Ergui a mão e fiz como
Se apanhasse o beijo.
Fechei os olhos, pisquei,
Quando abri os olhos
Não havia som,
Não havia salão,
Apenas havia eu na beirada
De cama diante do corpo
Velho e já vazio
De meu pai.
Como herdei todos os bens,
Acabei vindo morar cá no Brasil
Junto com meu marido.
As vezes pessoas ao saber que
Eu havia sido filha de veludo
Vinham me perguntar sobre
Crimes, vinganças, feitiços, bruxaria,
Pactos, romances e namoros,
Uma série de coisas que elas
Sabiam dele ou que imaginavam dele.
Eu nunca soube responder,
Pois o que conheci foi um homem,
E infelizmente muitos o viam
Como qualquer coisa de fantástico,
Porém Lucio ou veludo
Para mim foi simplesmente
Meu pai.
"Senhora Sant'Ana... ao redor do mundo..."
Felipe Caprini, Contos dos Maridos da Lua
Espero que tenham gostado!
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Quem quiser encomendar desenhos, brasões e artes em geral pode me chamar no whatsapp
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Muito obrigado!