Eu estava parado,
Em posição de guarda diante
Do portão do cemitério,
A espingarda em baixo do braço.
A filha do morto havia me pago
Para ficar lá de guarda
Eu estava parado,
Em posição de guarda dianteDo portão do cemitério,
A espingarda em baixo do braço.
A filha do morto havia me pago
Para ficar lá de guarda
Afim de impedir visitas indesejadas.
Já passava das onze da noite
Quando ouvi o farfalhar de tecido
E então a avistei, eu ja a esperava.
Caminhou lentamente até
Se colocar diante das grades
Do portão.
Sempre havia a visto em
Suntuosos vestidos vermelhos
E com os cabelos adornados com
Rosas vermelhas,
Mas ali ela vinha vestida
De negro como uma viúva.
Com o queixo trêmulo e os
Olhos muito vermelhos
Falou com voz fraca:
— Joaquim... eu sei que a senhorita Mendes lhe deu ordem para não me deixar entrar. Mas eu te peço... eu... eu só queria...
Olhei para ela cheio de pena.
Era a coisa mais rara do mundo
Alguém sentir pena de
Dona Maria Padilha
Mas naquele momento foi
O que pude sentir.
— Senhora... eu já sabia que viria. Veja bem...
— Por favor, por favor, eu tenho dinheiro, me diga quanto quer e eu...
— Não, não precisa pagar. Tudo bem, mas vou pedir que não faça nenhum som, ninguém pode saber que esteve aqui.
Abri o portão e ela passou.
A levei até o túmulo,
O mais recente,
Todo em marmore negro azulado.
Se aproximou devagar,
Tremia ao se mover.
Roçou a ponta dos dedos no
Tampo de marmore
E de repente desabou,
Caida no chão ao lado
Do túmulo ela enfiou
Pano da manga do vestido
Na boca e chorou assim
Para que seu lamento
Não pudesse ser ouvido.
Após muito pranto ela
Me pediu para abrir o túmulo.
Era um tanto absurdo,
Pensei em negar pois
Não era coisa normal de se fazer.
Mas então me lembrei que ela
Fora proibida de comparecer
Ao velório.
A filha dele, que a essa altura
Era já uma senhorita nobre
E de muito respeito
Mandou avisar que se qualquer
Prostituta viesse a cerimônia
Seria recebida na bala.
— Por favor... eu quero ver... tenho de ver ele uma última vez.
Com algum esforço removi o
Tampo de pedra,
Então com cuidado abri os fechos
Da tampa do caixão.
Ela se debruçou sobre ele
E acariciou o cavanhaque
Espesso raiado de fios brancos.
A lápide do morto estava
Gravada com o nome
"Antenor Augusto Mendes"
Que havia sido tenente Coronel
Das forças Portuguesas
Nos reinados de Rei José e
Rainha Dona Maria,
Mas todos nós o conhecíamos
Pela alcunha de "Tranca Ruas".
O cadáver branco arroxeado
Ja não lembrava em nada
O homem forte que havia sido.
— A senhora esteve na Praça não foi? Durante o velório. Eu achei ter lhe visto...
— Eu fui... eu fiquei lá para ver o caixão sair... mas o serviçais da moça me pediram para deixar o recinto.
A moça, Senhorita Beatriz Mendes
Era a única filha e herdeira,
Tinha planos de se casar com
Algum bom partido e por isso
Não queria saber de marafonas
No enterro, não queria
Fomentar comentários.
Mas ela e todos sabiam que
Maria Padilha e Tranca Ruas
Eram almas inseparáveis,
Nos últimos vinte anos
Haviam estado emaranhados.
Digo emaranhados pois
Não eram casados,
Nem namorados,
Nem mesmos amasiados
Ou amantes oficiais.
O que eles eram era
Algo do tipo independente
Mas ao mesmo tempo junto.
Mesmo o corpo já nada belo
E com um cheiro nada bom,
Ela o beijou nos lábios.
Então retirou sabe-se-lá
De onde um carretel de linha
Vermelha e uma agulha,
Abriu o paletó do morto
A com avidez começou
A bordar um símbolo,
Coisa que até hoje desconheço.
— Dona Padilha, é melhor não fazer isso. Se depois vierem verificar o corpo vão saber que foi mexido e vão me castigar.
Mas ela não me deu ouvidos,
Chorava baixinho murmurando
Alguma ladainha estranha
Enquanto punha a agulha
Para trabalhar.
De repente aquela noite quente
De Março ficou fria,
Um vento encanado soprava
Por entre os tumulos,
Soprava assobiando
E levantado as folhas secas.
— O-olha Dona Padilha, é melhor parar com esse urdidura, sabe que o povo diz por ai que a senhora é mancomunada com o Diabo, e ficar fazendo uma coisa assim vai dar pano pra manga...
Mas ela continuo a me ignorar.
Foi ai que comecei a ouvir os
Estalinhos.
Era um som de "clik clik clik"
Que vinha por todos os lados.
Olhei em volta para
Mas não vi nada, não
Tinha mais gente lá
Só nós dois.
De repente meus olhos
Focalizaram a criatura,
Era uma coisa maldita
Eu lhes digo,
Coisa vinda da mão do diabo.
Vinha vindo de mancinho
Por de trás de um mausoléu
O homem vestido com paletó
De tom roxo terra,
E era ele dele vinha o som
De estalo, vinha de seus corpo.
O homem era uma diabrura
Horrenda, um esqueleto
Que se movia como vivo.
"Clik clik clik" ele veio
Caminhando.
Então ouvi mais sons iguais
E Quando olhei para trás
Vi outro igual àquele
So que vestido com uma capa
Toda negra.
— Valei-me Maria mãe de Deus!
Eu berrei aterrorizado
E cai sentado junto a uma
Cruz de pedra.
O medo era tanto que me
Paralisou ali.
Padilha continuava a costura,
Mas um dos caveiras foi até
Ela e pinçou a linha que usava
com os dedos de osso branco
A cortando como tesoura.
— Não! Não me atrapalhe João! Eu vou conseguir acabar antes...
— Não vai não...
A voz rouca que vinha de
Dentro crânio amaldiçoado
Arrepiou os pelos de meus braços.
O outro esqueleto fez sons de
Cliques batendo o maxilar
Como se estivesse rindo.
Padilha olhou para este.
— Caveira ainda da tempo! Ele não tem...
— Ele tem. Quem deve... paga.
E os dois esqueletos emitiram
Aquele som pavoroso de clique
Como o riso do demônio.
Não tenho vergonha de dizer
Que molhei minhas ceroulas
Tal qual uma criança tendo
Um tenebroso pesadelo.
O de paletó púrpura
Puxou a linha que estava
Costurada no pano
Da roupa do morto
E o símbolo que havia
Sido bordado se desfez
Por completo.
Padilha emitiu um grito
Cheio de ódio e lágrimas
Saltaram por suas faces.
— É chegada a hora...
Disse o da capa negra.
No cemitério ouvi
Um cacarejar,
Um galo estava cantando.
E então os sinos da igreja
Badalaram as doze vezes.
— O sino da igrejinha faz belém-bem-blom...
Disse o esqueleto de paletó.
— É meia-noite o galo ja cantou...
Padilha caiu de joelhos
Ao lado do caixão e segurou
Com força a mão do morto.
E então eu vi, e eu lhes
Juro que vi a mão do morto
Agarrar a mão dela.
Seu Tranca Ruas se ergueu
Do sepulcro como o lazaro
Da bíblia,
Só que não estava vivo,
Não, o cadaver continuava ali
Deitado imóvel,
O que se ergueu foi um
Homem de vulto mais jovem
E vestido de maneira feia,
Coisa de feitiçaria.
Ele olhou para ela e calmante
Falou com a voz grossa de sempre:
— Vai pra casa Maria.
— Eu... eu... eu juro, eu lhe juro que tentei...
— Sei que tentou. Mas o que é... é. Eu vou lhe esperar Maria, quando for a sua hora eu vou estar lhe esperando.
E então eu pisquei os olhos
E não vi mais nada,
Não tinha mais esqueletos
Não tinha mais fantasma,
Só o que vi foi Dona Padilha
Chorosa ao lado do caixão.
Contei a ela o que tinha visto,
Ela insistiu em dizer que eu
Havia tirado um cochilo
Enquanto ela rezava
E que tudo fora nada além
De um sonho.
Mas eu não acreditei nela.
Sabe, muitas vezes
As pessoas diziam ter visto
O vulto de seu Tranca Ruas
Pelas ruas da vila
E eu quando sabia de uma
Dessas me sentia bem
Do apavorado.
Nunca mais quis entrar
Naquela cemitério,
Nunca mais fui aquele cabaré.
Aquelas coisas não são
De Deus, é o que lhes digo.
Toda a gente fala
Que que Tranca Ruas havia
Virado o mesmo que o
Sete-Peles, e eu não duvidava.
Quando minha mãezinha faleceu
Tive de ir ao cemitério,
E como o velório seria
Da parte da manhã
Tive de ir ainda na madrugada
Ajudar a abrir a cova.
Era lá pelas três e tive
De passar bem em frente
O túmulo daquele homem.
Assim que passei ouvi
Os cliques, eram os mesmos
Cliques dos ossos daquelas caveiras.
Disse a mim mesmo
"Besteira Joaquim, é só sua cabeça lhe pregando peça"
Mas ao andar mais
Vi o vislumbre de um paletó
Roxo terra por de trás de uma
Estátua de anjo.
Me apeguei com a cruz
Do terço que trazia no peito
E rezei a reza de São Bento
Para expulsar o diabo,
Fui a passo rápido para a saída
Mas quando ia saindo
Do cemitério eu o vi,
estava sentado em um
Dos braços da Cruz de pedra
Do Cruzeiro das Almas,
Encarapitado como um papagaio
Num galho.
E ao ver meu medo
Ele gargalhou com a voz
Grossa tal qual a de um urso.
Nunca em minha vida
Corri tanto, corri até chegar do
Outro lado da cidade.
Valei-me meu Jesus,
É bem verdade,
Tranca Ruas ainda está
Por ai arrastando correntes
Como o vulto da própria morte.
Felipe Caprini, Contos dos Maridos da Lua
Espero que tenham gostado!
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