domingo, 15 de maio de 2022

Naquele mês ela não me escreveu. Fiquei aflita, quando os dias passaram, Parei na rua o rapaz filho do boticario Que era quem ia a cidade trazer os medicamentos E já fazia a vez de carteiro, Ele disse que este mês não havia carta Com meu endereço.

 Naquele mês ela não me escreveu.
Fiquei aflita, quando os dias passaram,
Parei na rua o rapaz filho do boticario
Que era quem ia a cidade trazer os medicamentos
E já fazia a vez de carteiro,
Ele disse que este mês não havia carta
Com meu endereço.


Pode ser uma imagem de 1 pessoaNaquele mês ela não me escreveu.
Fiquei aflita, quando os dias passaram,
Parei na rua o rapaz filho do boticario
Que era quem ia a cidade trazer os medicamentos
E já fazia a vez de carteiro,
Ele disse que este mês não havia carta
Com meu endereço.
Meu coração começou a bater rápido
Como se quisesse escapar da caixa do peito,
Deixei minha vendinha aos cuidados
Da menina que me ajudava,
De madrugada fiquei pronta
E esperei na porta da venda
Diorgenes, o fruteiro,
Ele trazia frutas para minha venda
E em seguida ia de carroça
Até a cidade todos os dias para
Entregar a outros comerciantes.
Assim que ele passou e entregou
O que era meu
Eu pedi que me desse carona
Até a cidade.
Ele reparou no meu estado de aflição
E deixou que eu sentasse na carroça
E com ele fosse.
Era cinco da manhã quando chegue lá.
Com alguma dificuldade ao caminhar
Pois já no auge da minha velhice
Eu mancava de uma perta e tinha
De ir me apoiando em uma bengala.
Caminhei a trancos e barrancos
Até aquela casa de luz Vermelha, o cabaré.
A porta já estava fechada,
Achei estranho pois cinco da manhã
Era hora de estar ainda aberto.
Bati, logo duas moças miúdas que
Com certeza eram novatas
Abriram a porta.
"Quero falar com Mulambo. Imagino que ela já se recolheu, mas diga que é Bibiana que quer ter com ela."
As moças se entre olharam,
Fiquei sem paciência pra aquelas duas
Empurrei a porta e entrei,
Me sentei a uma das mesas
E reparei que ela estava limpa.
Não haviam taças usadas, nem bitucas
Nem cheiro de fumo,
O salão estava impecável,
As mesas organizadas como se...
Como se a casa não houvesse aberto.
As duas moças subiram as escadas correndo,
Dali a pouco quem desceu foi Rosa Vermelha
Despenteada e enfiada em uma camisola.
"Oh Rosa, bons dias? Onde está Mulambo? E porque não abriram o salão hoje?"
Ela me olhou com o rosto lívido
E disse em voz quebrada
"Por Deus... Me esqueci de avisar a senhora..."
"Ora essa me avisar de que?"
Perguntei sorrindo mas por dentro
Implorando aos céus que não fosse o que
Eu pensava que era.
"A casa está fechada por um mês, luto."
Meu rosto me traiu, me queixo começou a tremer.
Rosa teve de continuar
"Faz alguns dias que Maria Mulambo... Faleceu."
Suspirei fundo ja sem poder segurar as lágrimas,
Mulambo era a minha menina,
Pra mim como uma filha.

Muitos anos atrás eu trabalhava naquele cabaré,
Assim que foi inaugurado
A primeira dona, Quitéria,
Me contratou para cuidar da cozinha
E da arrumação.
Uma manhã desci para o terreiro nos fundos
Do casarão afim de tirar água do poço.
Enquanto tirava um balde
Ouvi certa agitação no galinheiro,
Quando fui ver o que estava acontecendo
Me deparei com uma menina lá dentro
Tentando roubar os ovos.
Ah peguei a vassoura e fui pra bater nela,
Quando a menina me viu não teve medo,
Começou a atirar os ovos em mim,
Pulou a grade do galinheiro e tentou correr
Para se embrenhar na mata,
Mas não conseguiu, assim que pulou
Ela caiu e teve dificuldades de se levantar.
Era uma mestiça , acho que chamavam isso de mulata,
Meio negra meio branca.
A peguei pelo braço, ela me olhou de cara feia
Mas reparei que seus lábios estavam brancos
E os olhos amarelados, anemica.
"Menina quem é teu dono?"
Brava feito um siri na lata ela gritou
"Não tenho dono! Sou livre!"
Na hora não quis saber se era mesmo ou não,
A puxei para dentro da casa
Ela resistiu um pouco mas quando
Sentiu o cheiro de pão vindo da cozinha
Parou de espernear e entrou.
Dei a ela comida, o diabo da menina
Parecia um saco sem fundo.
Após comer ela saiu correndo pela porta.
No dia seguinte quando fui tirar mais agua do poço
Ela estava lá perto do galinheiro,
E dessa vez mais mansa pediu um pedaço de pão.
Levei ela pra dentro e dei,
Mas Quitéria neste dia estava na cozinha
E fez cara feia quando entrei com ela.
"Que é isso Bibiana? Uma escrava? Sabe que eu não gosto de escravidão na minha casa."
A menina se arretou na hora
"Escrava a suas fuças, eu sou Maria Francisca! Eu sou gente livre!"
Quitéria se riu daquilo,
Um toco de gente daquele esbravejando.
"Maria Francisca? Vestida assim com esses trapos está mais para Maria Mulambo isso sim."
A menina trincou os dentes de raiva
Mas não respondeu nada,
Servi a ela pão e leite
E Quitéria foi logo pondo ordem
"Se quiser comer terá de pagar, aqui não é casa de caridade."
A menina olhou para mim assustada
E eu disse "Certo, ela pode me ajudar a dar comida as galinhas mais tarde, a varrer o terreiro e a colher ervas de chá na horta."
Quitéria aprovou a situação.
Mulambo me ajudou a fazer tudo e ainda mais,
Não tinha medo de serviço aquela uma.
De noite ela se despediu e foi rumando para a mata
E então perguntei onde ela morava,
Ela deu de ombros, não tinha casa.
Disse a ela que podia dormir comigo no meu quartinho
Se ela quisesse me ajudar na lida no dia seguinte.
Ela acabou por aceitar, e foi ficando
Foi ficando até que eu passei a dar uma parte
Dos meus ganhos a ela.
Três anos se passaram e um dia aquela megera
Da Danusa entrou na cozinha batendo a mãos
Na bolsa de dinheiro que estava ao som das moedas.
"Só hoje três contos de réis, vou a modista encomendar um vestido novo."
Mulambo ficou olhando aquilo e perguntou
"Bibiana em um mês você ganha cinco contos, como ela ganhou três em uma noite?"
Eu expliquei a ela,
Não que ela já não soubesse o que as moças
Do cabaré faziam com os homens nos quartos
Mas vi os olhos dela se arregalarem quando falei
Dos valores que ganhavam.
No dia seguinte Mulambo sumiu, entrei no quarto
Para ver o motivo de não ir me ajudar
E o que vi foi surpreendente,
Ela havia surrupiado um dos vestidos de Quitéria,
Pego também algumas jóias, havia penteado o cabelo
E pintado os labios de Rouge.
Olhou para mim e riu, eu me desesperei
"Mulambo se Quitéria te ver assim ela vai te expulsar da casa!"
"Então chame ela aqui e vamos ver." Ela respondeu de queixo erguido.
Ralhei com ela mas a menina era teimosa demais,
Ela queria que eu fosse chamar Quitéria a todo custo.
Não precisou, Quitéria ouviu Mulambo dizer isto
E veio da cozinha ver o que era.
Quando entrou no quarto arregalou os olhos
E Mulambo foi logo dizendo
"Peguei suas roupas e jóias, mas não pense que para roubar, não, queria que me visse assim e me disesse o que acha."
Quitéria fez cara de poucos amigos
"O que acho? O que acho do quê?"
"Me diga se tenho ou não condição de trabalhar no salão, de ser uma... uma..."
"Quer ser uma prostituta no cabaré?"
Mulambo firmemente disse "sim".
Achei que Quitéria ia se debochar dela,
Mas não, ela ergueu as sobrancelhas e coçou o queixo
Analisando a situação.
"Bem... Nunca tive uma moça da sua cor na casa... E também não esperava que bem vestida você ficaria tão aprumada... Mas não sabe ler e escrever não é?"
"Mas posso aprender."
"Não sabe tocar nenhuma instrumento não é?".
Daí eu que respondi "mas ela sabe cantar."
Quitéria assentiu, ela mesma ja havia ouvido Mulambo
Cantarolar aquelas cantigas debochadas.
"Que seja, começa amanhã. Fique com o vestido e com as jóias, vou descontar dos seus rendimentos. E pegue aquele quarto vazio lá em cima."
Mulambo sorriu e Quitéria saiu dali satisfeita.
Assim ela caiu na vida.
Toda tarde antes do Cabaré abrir eu
Sentava com ela a mesa e ensinava
O pouco que sabia das letras mas principalmente
Ensinava a contar dinheiro para não ser enganada.
Mulambo sempre foi vista pelas outras como inferior,
Pela cor da pele, pela origem,
Mas ela não era do tipo que chorava,
Vira e mexe as moças que lhe faziam desfeita
Apareciam de cara roxa
E eu ja sabia que o roxo vinha
Dos sopapos que Mulambo lhes dava.
Ela impôs respeito,
E não vou negar em dizer que por mais de uma vez
Fui até os fundos do Cabaré atras das ferramentas
E dei falta da pá e da picareta,
E dali a pouco vinha Mulambo suja de terra
E eu sabia que tinha enterrado alguém no matagal.
Era brava, mas tinha de ser.
Depois que passou a beber então, ave Maria,
Parecia bebe recém nascido atrás de mamadeira
Mas ela mavava era no gargalo de cachaça.
As vezes quando bebia demais chorava
Balbuciando memórias sobre uma mãe escrava,
Um pai feitor, uma fuga, morte e dor.
Mas assim que a bebida passava ela se erguia
E jamais fazia comentários sobre de onde veio.
Quando completei meus cinquenta anos
Estava velha demais para o trabalho pesado
Minha perna esquerda começou a falhar.
No meu aniversário ela veio com uma bolsa
Cheia de dinheiro
"Aqui Bibiana, sei que é teu sonho abrir uma venda pra viver em paz, junte as tuas economias com isso e compre uma terra, construa a venda e vá ser feliz."
Eu não quis aceitar,
Sabia o custo que foi para ela conseguir aquele dinheiro,
Mas ela insistiu tanto que aceitei.
Arrumei minhas coisas e rumei para um vilarejo
No inteiror onde ninguém sabia quem eu era
E abri a venda.
Todo mês e as vezes toda semana ela me escrevia.
Contou da morte de Quitéria
E que a casa passou para o comando da intragável Padilha.
Contou que estava ganhando mais.
As vezes que ela se adoentava eu corria para a cidade
E cuidava dela por dias, nunca a deixei sozinha.
Ela me escreveu quando Padilha morreu
E eu fiquei extremamente orgulhosa quando li
Que ela mesma, Maria Mulambo, era a nova chefe do Cabaré.
Nos correspondemos muito, até que um dia
Ela contou daquela desgraçada, a maldita Farrapo.
Tudo bem que Mulambo ferrou com ela primeiro,
Mas a mulher era rancorosa.
Essa foi a última carta que me mandou.
Ali diante de Rosa Vermelha eu perguntei
"Como aconteceu?"
Rosa apontou para o palco
"Ela estava bêbada, subiu no palco para cantar, você não vai crer mas ela cantou "Matais de Incêndios" ali."
Eu ri, aquilo era música de coro de igreja,
Coisa cantada no natal,
Ela mamada fazia essas patotas. Rosa prosseguiu
"Então Farrapo entrou, ali da porta sem previo aviso atirou. Mulambo caiu, bala no peito, sem chance sabe."
Assenti e pedi "podes me dizer onde foi enterrada?"
Ela me disse, a velha clareira das rejeitadas.
Pedi a Rosa Vermelha um ultimo favor, que me desse
Um pacote de cigarrilhas e uma garrafa de água ardente,
Sai de lá e manquei até o rapaz das flores onde comprei
Um buquê de rosas, e velas
Então fui a clareira.
Foi fácil achar qual das muitas covas era a dela
Pois era a mais recente.
Deitei sobre ela as flores,
Abri a garrafa e despejei a bebida,
Acendi as velas e o fumo
E então me despedi cantando

" Matais de incêndios, meu lindo, ai lê lê.
Porque um Sol me pareceis; não me mateis.
Deixai que eu goze essas luzes, ai lê lê.
Meu amor não me mateis.
Hei de chegar-me aos incêndios, ai lê lê.
Inda que raios vibreis.
Mas se a Vós me chego, amante, ai lê lê.
Meu amor não me mateis.
Para abrasar corações, ai lê lê.
As palhinhas acendeis.
O meu por Vós já se abrasa, ai lê lê.
Meu amor não me mateis.
Suspendei, Menino, o pranto, ai lê lê
Mas, meu lindo, não choreis.
Ora, fazei-me a vontade, ai lê lê
Meu amor não me mateis."

E no fim me virei para ir embora
Mas assim que o fiz
Estrondou na clareira aquela costumeira gargalhada.
Me virei mas não vi nada,
Então parti, mas não parti sozinha,
Levei comigo ela dentro do meu coração.
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"Contos das muitas Marias", Felipe Caprini.
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Espero que tenham gostado, quem quiser encomendar desenhos pode me chamar no whatsapp 11944833724
Muito obrigado