domingo, 15 de maio de 2022

E então ela morreu, E dessa vez foi de verdade. A porta de vidro da sacada estava trancada, Ela trancou por fora. Eu empurrei, bati, Cheguei a quebrar alguns vidros Mas ela apenas olhou para mim e sorriu.

 E então ela morreu,
E dessa vez foi de verdade.
A porta de vidro da sacada estava trancada,
Ela trancou por fora.
Eu empurrei, bati,
Cheguei a quebrar alguns vidros
Mas ela apenas olhou para mim e sorriu.


Nenhuma descrição de foto disponível.E então ela morreu,
E dessa vez foi de verdade.
A porta de vidro da sacada estava trancada,
Ela trancou por fora.
Eu empurrei, bati,
Cheguei a quebrar alguns vidros
Mas ela apenas olhou para mim e sorriu.
A taça na mão, ela girava como uma bailarina
Em pé sobre o parapeito
Sem se dar conta do enorme perigo.
Ela olhava para a lua e movia os lábios,
estava dizendo algo
Mas não entendi.
Bati mais, chutei a porta inumeras vezes
Mas então aconteceu.
No auge da bebedeira ela perdeu o equilíbrio.
Seus cabelos revoaram para trás,
A camisola se encheu de vento esvoaçando
Como a cortina da sala nos ventos de verão
E diante dos meus olhos ela desapareceu.
Desci as escadas rapidamente,
Corri sentindo meus pés latejarem
Sobre os sapatos de salto alto.
Lá em cima ela voou como uma gaivota, uma águia
E o que encontrei no jardim
Foi nada além de um corpo, casca vazia.
Ela despencou mais de quinze metros,
Velha demais para resistir
Ao baque do solo.
Ela já não estava bem fazia muito tempo.
Eu tinha quarenta anos quando cheguei lá,
Rosa Vermelha notando que a minha jornada
Dentro do Cabaré estava no fim
Me ofereceu esse oportunidade,
Ser acompanhante de uma velha louca.
Quando cheguei na mansão
Mal acreditei,
Era um Palácio.
Estátuas de mármore ladeando portais,
Taças de cristão veneziano,
Sofás forrados com pura seda chinesa.
Mas quando conheci a tal mulher
Me surpreendi muito.
Conheci sim Madame Helena, a senhora
A qual eu cuidaria.
Mas nela eu reconheci uma outra pessoa,
Uma mulher que mais de vinte
Anos atrás foi uma prostituta
Do mesmo cabaré que eu,
Uma mulher chamada Dama da Noite.
Tinha pra lá de sessenta anos,
Os cabelos brancos como algodão,
O corpo miúdo mas com boa postura.
A primeira vista era uma senhora normal
Da alta sociedade,
Mas a convivência me mostrou que não.
Certa vez os moleques na rua
Acharam uma casa de marimbondos
Em uma árvore bem em frente a mansão,
Na besteira habitual da molecagem
Eles atiravam pedras na arvore
E então corriam rindo.
Procurei Madame Helena, era hora dos remédios,
Mas não achei em lugar nenhum.
Mas ao entrar na sala de jantar
Ouvi soluços vindos de debaixo da mesa.
Me abaixei e ergui a toalha,
Lá estava ela, encolhida com
Os olhos cheios de medo.
Tentei puxar ela para fora
Mas ela começou a berrar,
Mas não eram berros grosseiros,
Ela não ralhava comigo,
Na verdade os berros eram nada mais
Que pedidos chorosos
Implorando que eu não a machucasse.
Fiquei sem saber o que fazer
E mandei o filho da cozinheira ir chamar
Rosa Vermelha no cabaré.
Rosa chegou e se abaixou ali
Estendeu as mãos para Helena
E disse calmamente "as pedras cessaram, já é seguro sair."
Levamos ela para o quarto
A coloquei na cama e ela adormeceu.
Perguntei a Rosa Vermelha que diabos
Tinha sido aquilo e ela contou
"Helena perdeu a mãe muito cedo, ficou sozinha no mundo. Tinha quinze anos, sem proteção alguma os homens da aldeia se aproveitaram, a estupraram. As mulheres da aldeia interpretaram aquilo como promiscuidade, se reuniram para expulsar Helena de lá, e fizeram isso atirando pedras nela. Ela teve de correr, fugir.Por isso o som das pedras na arvore a deixaram assim. Entenda Amélia, Helena suportou muita coisa, passou pelo inferno, mas agora ela transbordou. Tenha paciência com ela, você não faz idéia do que ela viveu."
Eu achava que a minha vida
Tinha sido horrível
Mas percebi que comparada a dela
Tinha sido até pacífica.
Os dias correram, os anos correram,
Helena passou a confiar em mim.
Com sua voz fraquinha me contava
Das coisas de seu passado,
Dos dias em que foi Dama da Noite,
A cortesã Mais aclamada da época,
Dos dias em que foi amante de homens ricos
E de aventuras que viveu.
Ela havia enricado devagar mas substancialmente
A ponto que nunca mais precisou se vender.
Mas o dinheiro não pôde apagar as marcas.
Marcas de profunda violência.
Ela comia pouco mas exigia que a dispensa
Estivesse sempre abarrotada,
Isso é coisa de quem ja passou fome.
Não gostava de esbanjar,
Sempre preocupada em garantir o amanhã
Como se tivesse medo de voltar
Aos tempos de necessidade.
Quando completou sessenta e seis anos
Quis fazer uma festa para comemorar.
Peguei o caderno de endereços
E fui falando nomes de gente granfina
A qual ela devia convidar,
Mas Helena sacudiu a cabeça em negativa
"Não Amélia, não, não gosto dessa gente. Quero que chame elas, todas elas."
Fiquei confusa "elas quem?"
"Ah... Maria Padilha... Maria Mulambo... Figueira... Sete Saias... Farrapo... Rosa Caveira... ah e claro, Rosa Vermelha. Chame também a Menina Júlia, ela é engraçada, chame Quitéria, mas duvido que ela vem. Ah chame todas, quero uma noite das moças."
Ela falou os nomes com ar tão sonhador
Que mordi os lábios aflita
Sem saber como falar, mas tive de dizer.
"Helena, Rosa Vermelha e Rosa Caveira eu vou chamar, mas as outras... Helena elas já são falecidas, não lembra?"
"Falecidas ? Ora não seja boba Amélia, que besteira."
Não discuti, mas enviei apenas dois convites.
Rosa Vermelha e Rosa Caveira
Vieram, beberam com ela
Riram e se foram.
Do madrugada acordei com o som da voz dela,
Helena Ria no salão.
Quando fui ver Helena estava
Na sala bebendo, fumando e conversando sozinha.
Quando me viu disse
"Olhem essa parva, ela teve a coragem de dizer que vocês não vinham no meu aniversário porque tinham morrido! Há! Veja Amélia, elas vieram sim!"
Olhei em volta mas não vi ninguém.
Fui até ela e fiz companhia
Até ela dizer que as tais convidadas
Já tinham partido.
A levei para o quarto,
Ela havia bebido demais,
Estava trançando as pernas.
Ela me disse que estava com frio
Pediu mais um coberta.
Abri o armário para pegar
Mas assim que me virei vi ela
Saindo pela sacada e trancando a porta.
Corri até lá e pedi que abrisse,
Mas riu marota, encostou a testa no vidro e falou
"Elas vieram me buscar, eu tenho que ir, o cabaré vai abrir daqui a pouco, não posso me atrasar... eu sou a Dama da Noite, não posso faltar."
E então gargalhou e girou abrindo os braços.
Tentei arrombar a porta
A tranca de ferro era incorruptível.
Então fiquei aterrorizada quando
A vi subir na grade do parapeito,
Gritei o mais alto que pude, chutei a porta
Mas ela só ria.
O perigo anunciado aconteceu, ela caiu.
Lá no Jardim enquanto eu vi o corpo caído.
Me abaixei e toquei em seu pulso, nada
Estava fatidicamente morta.
Suspirei fundo para não chorar,
Eu precisava ser forte afinal estava sozinha,
Mas algo quebrou minha concentração,
Um som, era música,
Musica que vinha da casa.
Por instinto me levantei
E fui até a porta da sala,
Quando abri fiquei sem ar,
Estavam todas ali, dezenas de pessoas
Pessoas que eu sabia que já estavam mortas.
Todas as moças e muitos rapazes também
Animados, fumando, bebendo e rindo.
No Centro delas vi a mulher de vestido dourado,
Era ela sem dúvida,
Jovem como nos dias do Cabaré
Sorriu quando me viu,
Já não era Helena, era novamente Dama da Noite.
Me tremi inteira,
Dei dois passos para trás e fechei porta,
Quando reabri não havia nada
Além da sala escura.
De manhã Rosa Vermelha veio
Contei para ela o que tinha visto
E ela sorriu dizendo que tinha sido
Apenas a minha imaginação.
Mas sei que não.
Sei que Helena, ou melhor Dama da Noite
Ainda está por ai
Rindo e dançando
Sem mais sofrimentos
Sem mais dores,
Apenas sendo a Dama da Noite
Como vi naquela sala.
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"Contos das muitas Marias", Felipe Caprini.
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Espero que tenham gostado, quem quiser encomendar desenhos pode me chamar no whatsapp 11944833724
Muito obrigado