Eu amei Figueira,
Amei de verdade sabe,
Mas ela era arredia demais
E preferiu o dinheiro ao amor.
Eu não a culpo, imagino que teve
Seus próprios motivos
Afinal era mulher e era sozinha no mundo.
Eu amei Figueira,
Amei de verdade sabe,Mas ela era arredia demais
E preferiu o dinheiro ao amor.
Eu não a culpo, imagino que teve
Seus próprios motivos
Afinal era mulher e era sozinha no mundo.
Poderia contar a vocês mil histórias
De coisas que ela fez,
Maluquices e perigos,
Mas o que mais me marcou
Foi o que ela fez depois de morta.
Sim eu sei que parece absurdo,
Mas ela já falecida causou uma das
Cenas mais marcantes da minha vida.
Eu era jardineiro, tal como meu pai e meu avô.
Costumava ir ao cabaré,
Era muito caro ir para o quarto
Com uma das moças então eu geralmente
Ia só para beber e dar umas risadas,
Sabia que a vida delas não era fácil
então gostava de ir lá papear.
Foi quando a conheci, uma mulher linda
Com uma postura similar a das Rainhas,
Pescoço longo e cabelos ondulados,
Era como uma estátua de anjo.
Ela era prostituta, mas eu me apaixonei.
Ora não sei explicar como, mas me apaixonei.
Então um dia tive um momento
Que acreditei ser sorte, só depois
Descobri que não.
Eu era jardineiro de uma casa de veraneio
De um Conde Português.
Eu era nascido aqui mesmo
Mas a terra era da coroa de Portugal,
Eles vinham pra cá sugar o que podiam.
O conde mandou construir a mansão pois
Brasil na época não tinha hotelaria decente.
Naquele dia ela estava passando em frente a casa,
Eu no Jardim podando as roseiras vi
quando ela de repente se sentou
No meio da rua de terra e ficou
A se abanar com um leque.
Achei bizarro, nunca tinha visto tal postura,
E então me veio a mente que ela
Poderia estar tendo um passamento.
Corri até lá e de fato estava pálida,
E não estava sentada, ela havia caído.
Ofereci ajuda e esperei recusa
Como faria qualquer dama honrada,
Mas ela era totalmente
Despachada de salamaleques,
Grudou no meu braço e aceitou
Que eu a levasse para dentro.
Lá sentada em uma cadeira na cozinha
Servi a ela um copo de água fresco
Tirado da moringa.
Ali descobri que a mulher falava mais
Que um papagaio
"Ora essa, esse calor dos infernos e eu tendo de andar socada dentro de dez quilos de pano! É crinolina, tule, cetim, algodão e renda, e ainda sou amarrada feito um saco de farinha neste espartilho, deus me livre! Queria ter nascido na Áustria, não nessa filial de casa de satanás! Não me admira que eu tenha tido um teto preto, estou fervendo! Fervendo!"
Me encostei na parede respondendo "oh... hum... Pois sim..."
Sempre que ela parava para tomar folego
Antes de voltar a falar.
Era engraçada aquela uma, era sim senhor.
Mas a falação pausou assim que
Abriram a porta da cozinha,
E lá estava o Conde, tinha uns quarenta anos
E uma pança maior que a de uma grávida,
Um louro veneziano, que acho que hoje vocês diram ruivo.
Fiz uma mesura, ela também
E para a minha desagradável surpresa
O desgraçado sorriu para ela.
Tive de voltar ao serviço
Mas ela ficou lá papeando com o português
Até o sol se por,
Ele também era um falador
Então pense na contação de lorotas.
Assim que ela se foi
Entrei na casa tomado de um profundo ciúme
E contei que ela era prostituta,
Falei em tom para difamar
Crente que o Conde ia se enjoar dela
Mas o maldito deu de ombros e falou
"Ela é dada a ganhar dinheiro com o corpo sim, ela falou disso. O que importa? Eu também não sou lá muito casto. O que importa é que ela é me diverte."
A história daí fica longa e para mim desagradável,
Mas basta dizer que eles se amaziaram.
Ele ficou ali por uns três anos até
Que teve de voltar a capital.
Os anos passaram, ele vinha as vezes ver ela,
Deu a mansão pra ela e tudo mais.
Porém o destino sorriu, mas sorriu pouco,
Ela foi acometida de um mal raro.
Hemofilia é uma doença que geralmente
Só acomete os homens,
É muito raro que uma mulher
Tenha os sintomas, mas ela coitada
Foi uma destas raras.
Após uma década com o Conde
Ela engravidou.
Isso era esperado uma hora ou outra
Mas a gravidez não vingou,
Ainda antes da barriga crescer muito
O bebe morreu
E isso fez a hemofilia atacar.
Foram meses torturantes,
Os medicos fizeram de tudo mas...
Não tem cura.
Quando chegou na hora crítica
O conde veio e mandou chamar o padre
Para dar a extrema unção
E todas aquelas moças do Cabaré
Para darem o adeus.
E é aqui que começa
As cenas mais marcantes da minha vida.
Quando o padre entrou no quarto
Estavam lá algumas moças
Entra elas aquela negra exuberante Mulambo
Que chorava mas toda hora mamava
No gargalo de uma garrafa de conhaque,
Rosa Vermelha que estava serena como sempre,
Maria Padilha andando de lá pra cá
Como se pudesse achar em sua cabeça
A cura para a doença,
Dama da Noite que fazia anos que eu não via
E parecia uma Dama da Corte
Dando tapinhas no ombro de Figueira
Como se pudesse consolar.
Sentado em uma poltrona
No canto estava o Conde e
Ao lado dele, eu.
O padre olhou espantando para as mulheres
E falou em tom um tanto rude
"Excelentíssimo Senhor Conde... fui informado que alguém de sua família estava nas ultimas horas e vim dar a bênção. Por favor me leve até essa pessoa."
O Conde apontou para Figueira
Que estava Pálida afundada no travesseiro
"Ali minha esposa, Dona Lorena Figueira de Boaventura."
O padre arregalou os olhos
"Bo-Boaventura? O senhor que dizer que se casou... com ela?"
Todos nós olhamos para o Conde,
Era mentira, a esposa dele estava
Em Portugal, a condessa era viva,
E pela cara do Conde aquilo era uma tramóia.
Sorriu com ar tristonho e acenou para o padre
Se aproximar da cama, e neste momento
Figueira olhou para mim, com a voz fraca falou
"Simão se lembra do dia que passei mal em frente a casa e você me ajudou? Pois então, não passei mal de calor, não, estava em uma crise de nervos. Uma moça muito nova faleceu no Cabaré, se lembra dela?"
Respondi imediatamente "A Menina?"
Ela assentiu e prosseguiu
"Ela foi enterrada na mata, lá existe um cemitério não oficial onde se enterraram mulheres como eu. Mas eu não queria que Menina tivesse a mesma desgraça, então fui até a igreja pedir ao padre que permitisse o enterro dela no cemitério da cidade. Em toda a minha vida nunca fui tão humilhada como naquele dia, este padre me disse tantas coisas horrendas e me tocou de lá como um cachorro sarnento. As ultimas palavras dele foram que eu e as minhas jamais teriamos direito a descansar com dignidade, ele se recusa até hoje a nos dar covas dignas."
O padre elevou a voz
"E a minha posição não mudou, nenhuma de vocês será enterrada no cemitério das almas!"
Então o conde se levantou da poltrona
"Tem razão Padre, ela não será enterrada no cemitério."
O padre sorriu crente que aquilo era apoio
Mas o Conde prosseguiu
"Ela não pode ter uma cova lá, isso é para gente comum. Ela sendo esposa de um Conde e portando uma condessa... onde ela seria enterrada?"
Todos na sala prenderam o ar
Todos sabíamos a resposta,
Os membros ilustres da sociedade não eram
Enterrados no cemitério,
Eles possuiam a regalia de ser enterrados dentro da igreja,
Se removia o assoalho e a pessoa nobre
Ela sepultada ali diante do altar.
Os olhos do padre flamejaram de ira
"O senhor não está sugerindo que eu a ponha no lugar dos santissimos, está?"
O conde deu um sorriso torto
"Não estou sugerindo, estou ordenando."
O padre se indignou
"O senhor não pode me dar ordens!".
"Posso e vou!"
Com o berro do Conde o Padre se encolheu.
"Mas... Mas..."
"Mas nada! Portugal é um estado católico e lá eu estou sob o julgo da igreja, mas aqui não é Portugal, aqui é uma colônia e o Papa está muito, muito, muito longe para lhe socorrer. Seu Bispo esta no meu bolso, vive das migalhas que caem da minha mesa, seu arcebispo em Portugal nem sabe que Brasil existe e logo nem sabe sequer seu nome, então se quiser arcar com a minha ira arcará sozinho. Basta dizer a palavra não e conhecerá o inferno ainda em vida. Então eu agora pergunto, minha esposa sera enterrada no lugar dos santissimos, que é a cova que fica disponível para os nobres e que se encontra dentro da igreja sob o assoalho?"
O padre tremia feito bambu verde
"S-sim senhor Conde."
Figueira estava fraca mas
Não fraca demais para não soltar um
"Ora eu agradeço a sua generosidade."
E todos no quarto riram, todos menos o padre.
Foi a morte menos melancolica que ja vi,
Figueira parecia Nao ter medo de morrer
Por isso apenas aguardou.
Infelizmente não teve de esperar muito,
Suas amigas irmãs ficaram lá por toda
A semana até o momento chegar.
Figueira não amava o Conde, sei que não,
Mas foi muito amável com ele por aqueles anos,
Mas ainda assim me surpreendi muito
Ao ouvir o choro descontrolado dele
E depois o ver caído aos pés da cama
Quando ela finalmente se foi.
A carruagem da Funerária chegou,
Trouxeram um caixão de madeira talhada
Com seis alças banhadas a Ouro e
Na tampa uma coroa de louros dourada
Encrustada na madeira avermelhada.
Tudo foi arrumado,
Na manhã seguinte assim que o sol nasceu
Estavam todos lá,
As portas da mansão havia umas cem moças
Todas de negro e cobrindo a cabeça com véus,
Eram as moças do Cabaré da cidade
E também vindas de outros próximos.
O Conde apareceu montado em seu alazão,
Veio em farda azul marinha
Com a faixa verde vermelha e branca cruzando
O peito onde exibia inúmeras medalhas.
Atrás dele uma comitiva
De oficiais de baixa patente também a cavalo,
Todos fardados, a maioria carregando
Coroas de flores
E dois deles portando estandartes de Portugal.
A carruagem enfeitada com flores de todas
As cores deu partida,
As mulheres do cabaré iam cantando
Cânticos a Nossa Senhora
Como um Grande coral harmonioso.
Assim que chegamos a igreja
Mais uma surpresa,
Todas as famílias nobres
Da cidade estavam lá,
Nenhuma ousou declinar do convite do Conde.
O coral de coroinhas entoou agudos
Cânticos gregorianos que ecoavam
Nas paredes de pedra da igreja,
Os oficiais entraram carregando o caixão.
Quando entrei não pude deixar
De notar as expressões de profundo horror
Estampadas nas caras dos porcos nobres
Que lotavam a igreja.
As mulheres dos cabarés preferiram não entrar
Mas eu fui acompanhar tudo.
O Padre estava vermelho e falava
Com a voz trêmula,
Fez as leituras tradicionais tremendo as mãos
Ao mudar as páginas da bíblia.
No fim fez sinal para dois diáconos
Abrirem o alçapão diante do altar,
As longas portas de madeira se ergueram
E o caixão foi abaixado para o buraco
Sob uma chuva de aplausos que vinham
Das moças dos Cabarés do lado de fora.
Estava feito, Figueira teve sua Vitória.
Ela não acreditava nos credos do Cristianismo,
Tampouco dava valor a opinião dos beatos
Mas aquele gesto os forçou a dar a ela
Pelo menos uma vez
Um tratamento digno.
Eu estou velho agora,
O conde ja se foi,
A maioria das moças do cabaré também.
E relembro isto tudo por um unico motivo,
Meu neto mais jovem é coroinha da igreja
E o novo Padre pediu que ele me trouxesse,
Pois então aqui sentando no banco da igreja
Ele veio me perguntar se eu sabia quem
Era a pessoa dona do caixão da coroa de louros
Guarda do no lugar dos santissimos
Pois eu sendo um dos membros mais
Velhos da comunidade devia saber
Pois aquele era o caixão mais nobre
E não constava nos autos
Não havia informação além da escritura
Gravada na tampa "Ad Vitam Aeternam"
E devido a reforma do templo
Ele não sabia o que fazer.
Eu apenas respondi
"Nao mexa no caixão. Padre eu não me lembro o nome dela, mas sei que era da nobreza, quase que uma Rainha, se eu fosse o senhor não moveria nada, talvez um dia alguém nobre reclame e se encontrarem o túmulo vilipendiado..."
O padre acatou meu Conselho
E agora eu me vou pra casa
Deitar no meu colchão de palha
E sonhar com dona Figueira,
Sonhar com seu sorriso
E principalmente sua audácia.
Eu ainda a amo
Esteja a onde estiver ainda a amo.
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"Contos das muitas Marias", Felipe Caprini.
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Muito obrigado