Eu sou menino.
Sou menino mas não gente.
Bom, sou sim gente,
Mas não gente de carne e osso.
Sou espírito.
Eu sou menino.
Sou menino mas não gente.Bom, sou sim gente,
Mas não gente de carne e osso.
Sou espírito.
Era de noite, e tudo que eu lhes
disser aconteceu de noite,
Pois de dia eu fico na preguiça,
É só de noite que fico esperto.
Ai que preguiiiiça...
Eu Ficava na porta terreiro
Curiando a rua.
É eu sou espírito de macumba,
E eu gosto muito de macumbaria.
Uns acham rebaixado alguem
Feito eu gostar de ser de macumba,
Mas eu gosto mesmo.
Tava la curiando,
Então vi a sonsa vindo
La no fim da rua.
E ela tinha mesmo
uma cara de sonsa.
Era um espírito também,
Menina morta, desencarnada.
Era bonita a sonsa,
Tinha cara de menina de
Treze, quatorze anos,
Toda enfeitada de laço de fita,
A saia cor de rosa e um
Espartilho bem espremido
Pra juntar as gorduras pra cima
E fingir que tinha peito.
Eu fui galante, olhei aguçado
Pro peito dela, pra ela acreditar
Que eu acreditava que ali
Tinha peito,
Mas na verdade não tinha
Quase nada...
Ai que pobrezinha...
Ela veio e parou bem
Na frente do terreiro.
— Boas Noites.
— Que é Rapariga? O que tem de bom?
Ela ja ficou toda ouriçada.
— Credo que grosseiria, tome vergonha filho de quenga! Só disse boa noite.
— E eu quem nem sabia que tu era a minha mãe.
— Vagabundo! Pitoco, nem tamanho tem.
Ri, achei graça dela.
Se soubesse quem eu era
Ela nunca que ia me
Chamar assim,
E por isso ri muito.
— Se avexe não que sou feito burro velho, dou coice de graça mesmo. Mas gosto de menina bonita. Diga lá, o que tu quer?
— Esse é o terreiro de Tia Cocota de Aluvaiá?
— Se é.
— Eu quero falar com ela.
— Qué é?
— Tu que guarda a porta?
— Si é. Mas Tia não ta aqui não fia, ela ta na beira do rio da Serra.
— E onde é isso?
— Oxi, em Maraú todo mundo sabe.
— Não sou daqui.
— Bem vi. Qué que eu lhe leve?
E ela quis.
Fui com ela, fomos juntos
Pela barra do mato seco.
— Diga lá sinhá, quem foi que lhe disse de Tia Cocota?
— Bicho-de-pé.
— O Mirim? É, é danado ele. Ainda existe ou ja virou bicho?
— Existe, mas acho que já é bicho.
Ela riu, e eu ri junto.
Cheguemos lá, era numa
Prainha deserta na beira
Do rio, os macumbeiros
Tudo numa roda,
A praia iluminada por uma
Fogueira.
Os tabaqueiros doidos
No tabaque, tamborzada
Bem forte, num sabe?
Samba de Angola que
Eles chamam o toque.
Bom dizer que a Macumba
De Tia Cocota não era feito
Essas macumbas bestas que
O povo faz só pra agrado
De Macumbeiro, não,
A Macumba de Tia era séria
E muito, muito pesada.
Lá nao tinha lero-lero de
Baixar santo toda hora
Em todo mundo,
Ficar vestindo santo
Com fantasia, não senhor,
Lá Baixa um de vez em quando,
Quase sempre Bamburucema
Ou o proprio Aluvaiá.
Na frente da fogueira
sentada num apotí tava
A véia, e Tia Cocota era
Mesmo véia,
As costas já redonda
De tão curvada,
Tava lá toda de branco.
Tia Cocota tinha sido escrava,
Fora liberta após a famíla
toda do patrão ter morrido
De acidente.
O patrão tinha era medo
de Tia, então deu-lhe alforria,
Então ela se fez mãe de santo
Lá em Maraú.
A Menina olhou ressabiada.
— Eu posso chegar lá nela? Ela vai me ver?
— A véia Macumbeira vê tudo fia.
Então a Menina foi,
E eu fui atrás,
Gosto de fofoca
Então fui curiar.
— Tia Cocota?
A véia olhou pra ela.
— Queeee? Quem é?
— Ô véia, é uma rapariga, num ta vendo.
— Aié... e é morta a bichinha...que é?
— Tia, Bicho-de-pé me disse que a senhora é que tem posse da caixa de Tata Mulambo.
— Aié? Eu tenho?
— Ô lazarenta, tem sim! É aquele troço que a bruxa do cabelo branco deu de pagamento pra aquele trabalho lá.
— Aié... tenho sim. Ocê qué a caixa?
— Quero sim dona moça.
— Ieu guardo a caixa, mas num é minha não, ela é do Aluvaiá. Tem de pedi pra ele.
— E onde eu posso falar com ele?
— Ó ele ai ó.
E a veia apontou pra mim.
E eu ri da cara da Menina,
Ri porque ela arregalou os zói
Na hora que eu ali na frente
Dela deixei de ser menino
E cresci e cresci e cresci,
Virei um homem grande
de peito largo, muque forte
E canela grossa,
Preto como um carvão,
Porque gosto muito de ser preto
E agitado feito um siri na lata.
Eu sou o que se chama Nkisi,
Que é nome que vocês ai
Nunca que conseguiram falar
Direito, mas eu sou isso mesmo,
E sendo isso eu posso ser tudo
Pois ser isso é ser um Deus.
A molecota me olhou dos
Pés a cabeça, assustadissima,
E também meio assanhada
porque o que tinha de miúda
Tinha de safada sem vergonha.
— Ah... o senhor que é Aluvaiá então. O senhor me desculpe viu se fui meio rude, não sabia. E eu não sei lhe saudar na lingua de seu povo, mas garanto que lhe tenho muito respeito.
— Não sabia é?
— Não senhor.
— Sonsa... hihihi...
— O senhor é o Diabo?
— Não sou assim de natureza, não nasci Diabo e pra bem dizer só ouvi esse nome faz pouco tempo. É os brancos que acham que sou, eles tem uma fé muito fraca, então tudo pra eles é Diabo.
— Verdade. Tata Mulambo disse que o senhor é que deu o nome pra ela, o nome "Tata", e que era nome de feitiço, deixou ela forte. Pra derrubar ela foi muito duro sabe, e ela disse que foi por conta do nome.
— Um nome forte pra um espírito é como espada de dois gumes na mão de guerreiro. Mas eu não dei o nome pra ela, eu vendi. Não faço caridade, faço negócio.
— E neste negócio, em troca do nome ela lhe deu a caixa? Foi este o pagamento?
— Não só isso, mas tinha isso também. Tu queres a minha caixa?
— O senhor tem serventia pra ela?
— Nenhuma. Tá la no terreiro, uso de apotí.
— Mas se não teve serventia, porque motivo a aceitou como pagamento?
— Na hora pareceu valiosa. E é valiosa, só que não pra mim.
— Então... pode me dar?
A sonsa pôs as mãos
na cinturinha e sorriu
Assim com a boca bem
Achatada
E olhou pra cima,
Pois pra me olhar nos
Olhos ela tinha de levantar
Bem a cabeça, era muito miúda
A pobrezinha.
Mas o que tinha de miuda
Tinha de sonsa, achou
Que eu ia lhe dar o treco
Só pela boniteza dela.
— Posso dar.
— Ai que graça!
— Mas não vou dar! Hihihi...
— Ai não faz assim que eu choro...
E ela fez beicinho.
Ai eu tive de dar uma
Gargalhada da palhaçada
daquela uma.
— Quem não chora não mama, mas comigo tudo é negócio, tudo é na base de escambo
— E o quer em troca?
— Hum...
Olhei em volta,
O povo tava na expectativa,
O tambor batia alto na
Chamada de algo do além,
Fazia era meio ano
Que não vinha Santo na
Mão de Tia Cocota
E eu não queria deixar
A véia desmoralizada.
— Hoje é dia de festa, então quero uma bagunça. Tem medo de apostar comigo moça?
— Não tenho medo de nada não.
Mas ela era mentirosa,
Eu sabia que ela tava
Era se borrando de medo.
— Faz assim, se tu ganhar a aposta eu lhe dou a Caixa e tu vai em paz.
— Se eu perder?
— Eu lhe engulo.
A menina se tremeu toda.
Ela sabia que não era força
de expressão, eu engolia sim,
Engolia, devorava e dissolvia
Qualquer espírito.
É essa a vantagem de ser um Deus.
O vento carregou pra perto de nós
a voz de duas outras mulheres,
Espíritos mortos como ela
Que deviam estar por ali perto
Curiando.
Uma, que hoje sei que era Padilha,
Disse:
— Recue Menina, recuperamos a caixa por outros meios.
E uma outra voz, que hoje sei
Que era de Quitéria, disse:
— A pior coisa é a covardia... vai correr pra barra da saia de Padilha é?
— Hum... Uma quer lhe salvar, a outra lhe ver na berlinda. São suas amigas decidem por ti?
A menina me olhou feio.
— Só eu que me mando. Vou topar, mas se é assim eu acho a caixa um premio muito pouco. Não vou arriscar deixar de existir só por ela.
— Vejo... quer um nome também não é?
— É.
— Se é por isso, não se apoquente, lhe dou.
— Mas não qualquer nome, eu quero o SEU nome.
— Arretaaada!
Gargalhei, era muito ousada
Aquela uma.
— Aceita?
— Se tiver meu nome tu vai é ser eterna.
— Aceita ou não aceita?
— Simbora.
Então fiz a aposta com ela,
E o negócio da aposta é
O que no meio dos espíritos
chamamos de "peito de aço".
Cada um nós iria montar
Em um cavalo e este cavalo
teria de passar por testes
sem sentir nada.
De imediato entrei pra dentro
de Tia Cocota, me fiz nela,
Incorporei nela.
A Menina buscou na multidão
E achou ali um rapazinho
Que era dotado de mediunidade,
Então entrou dentro dele.
Eu na véia, ela no rapaz,
Fomos então pra frente da
Fogueira.
O Ogan mais velho veio
E com um atiçador tirou
De dentro do fogo duas brasas,
Deu uma na mão da véia,
Outra na mão no rapaz.
Segurei, e Menina segurou também.
O Tambor comeu solto,
E o povo em volta cantando
A pleno pulmão:
"Singangue bandaiô, bandaiô lepê Bombogirê, Singangue bandaiô, bandaiô lepê Bombogirá!"
Eu gingava ali no corpo
Da véia, a véia dançava
feito uma boneca de pano,
E o moleque que Menina
Montava requebrava os quartos
feito moça, tudo a mando dela.
Abri mão e deixei a brasa cair,
A palma da mão da véia tava
Lisa, nada de queimado.
A Menina fez o mesmo
E a mão do rapaz tava lá
Um pouco vermelha mas
Queimada não tava.
Ri pra ela:
— Certo moça, essa tu passou.
Ela nada disse.
O Ogan veio e jogou na areia da
Praia o conteudo de caixote,
Era uns dez quilo de caco
De vidro, garrafa quebrada.
O povo cantando:
"Ê Mavile Mavambo, kuria ke kopenso ê! Ha! Ha! Ha! Kuria ke kopenso ê!"
Saltei pra cima do vidro
e fiz a Tia Cocota sambar
Em cima dos cacos.
Menina fez o rapaz saltar
No vidro tambem,
E ficamos os dois ali
Sambando, os pés
Quebrando mais ainda
Os cacos pontudos.
Demorei-me lá, só saí
Quando o vidro ja tava fofo
Na areia, então fiz a véia
Tombar de costas na areia,
Levantando as pernas
Chamei o Ogan pra examinar.
Nenhum corte, nenhuma marca
Na sola dos pés.
Menina fez igual,
O pé do rapaz tinha lá umas
Marquinhas de afundado,
Mas não tinha corte nem sangue.
— Ê desgraçada! Passou de novo!
— Me subestima? Vai tomar na cara.
Ri da ousadia dela.
O Ogan trouxe um facão,
Um bem amolado de
Cortar cana.
Peguei na lamina,
Ela pegou também.
O povo se animou muito,
Os tabaqueiros batiam
No frenesi, o povo
Nunca que tinha visto
Uma disputa daquelas!
Cantavam pra ferver mais:
"Tabalá si mê no tabalá dê! Tabalá si mê no tabalá dê! Aê Hoxí! É no tabalá dê aê Hoxi!"
Era um cabo de guerra,
Eu puxava, ela puxava,
As mãos dos dois cavalo
Grudadas na lâmina,
Se rolasse um fio de sangue
Era derrota.
Mas não rolou sangue nem
De cá nem de lá.
Soltamos o facão, examinaram
As mãos dos cavalos,
Nem sombra de corte
Nem na véia, nem no rapaz.
— Braba!
E ela riu.
Então veio o último teste,
O Ogan trouxe um canudo
Cheio de pólvora de por
em garrucha, matade foi
Na boca da véia, metade
Na boca do rapaz.
O povo se aproximou,
Deram as mãos pra receber
Aquele Axé, e nisso
Fecharam roda,
Os dois cavalos no meio
E o povo cantando agora
Quase que gritando:
"Kanindé Tata Kimbanda é Já Minajô! Ai ai Já Minajô! Kayango Kapânzo, Já Minajô! Ai ai Já Minajô!"
Olhei pro rapaz que era a Menina,
O rapaz olhou pra Véia que era eu.
Vi no fundo do olho do rapaz
O olho dela, e ela tinha medo.
Penso eu que não tinha a certeza
Se ia segurar a marimba.
Mas sabia que dar pra trás
Era já saber que ia ser engolida,
Então com as boca lotadas de
Polvora nos batemos os dentes.
A pólvora explodiu, e o fogaréu
Que saiu das duas bocas foi tanto
Que até o povo se espantou
E correu pra longe.
A véia e o rapaz pareciam
Dragão!
Assim que o fogo apagou
O Ogan veio com a moringa,
Lavou a boca da véia,
Examinou, tava inteira,
Lavou a boca do rapaz
E a dele... também inteira.
Saí da véia, sai dando
Gargalhada, tava era
Muito admirado do talento
Daquela moça.
Ela também saiu do rapaz,
Mas não tava boa,
Saiu dele toda se tremendo
e com uma cara branca
Feito dentro de mandioca.
— Tu venceste Menina!
— É claro... aff... nunca tive dúvida... aff... que conseguia...
Fui pra perto dela e
A pegando pelos ombros
A aprumei em pé.
— A Caixa tu vai achar no Terreiro da Véia, dentro do quarto de Matamba, eu vou lhe dar permissão de entrar lá uma única vez, entre e pegue.
— Obrigada, mas e o nome?
— Mas é braba mesmo heim!
— Se prometeu dar, tem de dar.
— Pois bem, tenho eu seis nomes, qual tu quer?
— Vá dizendo.
— Aluvaiá.
— Não gosto.
— Maviletango.
— Não, parece dança espanhola.
— Mavambo.
— Não não.
— Nzila.
— Não.
— Vanjira.
— Bonito. Qual o último?
— Pombojira.
Os olhos da Menina brilharam.
— Que quer dizer esse nome?
— Vem de Pambu Njila, que é "Senhor das Encruzilhadas" na língua de minha gente.
— Eu quero esse, é bonito por demais.
— Eu tenho palavra, se prometi lhe dar um nome, então esse é seu. Gostou, Pombogira Menina? A partir de hoje tu é dona deste meu nome, lhe dou emprestado sem data pra devolver, é seu pra sempre.
Quando lhe disse o nome
As forças delas se renovaram,
E não precisou de mim
Para mante-la em pé.
— Gostei.
— Pois se vá Pombogira Menina, vá buscar sua caixa e depois vá fazer suas zuadas por ai.
Ela ficou na ponta dos pés,
E eu ainda tive de me curvar
Pra miuda ter como me beijar,
Ela me deu um beijo na bochecha
E fez menção de ir embora,
Mas antes parou e virou para
Me olhar no rosto.
— Seu Aluvaiá, se eu lhe fizer uma pergunta a meu respeito, o senhor cobra pra responder?
— Hum... cobro mais um beijinho na outra bochecha.
Ela riu, a sonsa era risonha.
— As minhas amigas, as que são iguais a mim, elas eram bruxas quando vivas, por isso morreram e continuaram presas a esse mundo. Mas eu não era. Eu morri com quatorze anos, nunca sequer acendi uma vela que nao fosse pra Nossa Senhora, mas eu também estou presa como elas, e eu...
— Você tem dons que elas não tem, não é?
— Sim, as vezes eu vejo o futuro, vejo coisas que nem sei o que são, tenho conhecimentos que não sei onde aprendi.
Suspirei.
Outra vantagem de ser um Deus
É saber de coisas que estão
Ocultas.
Então disse o que me veio
Na hora:
— Quitéria faz mal a você Menina. É culpa dela você estar presa. Seus dons... bom, toda essa questão é envolvida com Quitéria.
— Parece que tudo de mal vem dessa mulher.
— Ninguém é totalmente mal, na trevas sempre existe luz. Respondi sua pergunta?
Ela acenou com a cabeça,
Veio e me deu outro beijinho,
Depois saiu correndo na direção
do Terreiro de Tia Cocota
Onde pegou a tal caixa
E se foi.
Aquela noite foi por muito
tempo um de meus maiores
Motivos de remorso.
Devia ter engolido ela,
A aniquilado.
Digo isso pois um século
Depois ela foi a causadora
De algo... horrendo
Nas terras da Imperatriz
Teresa Cristina.
Naquela noite da aposta
Tudo o que vi nela foi
A sombra de Quitéria,
E disse a ela que o mal
Era esse,
Mas me enganei.
Nem eu que sou Deus
Sou imune a erro, num sabe?
A verdade é que
O mal não era Quitéria.
Eu podia ter evitado
Toda a desgraça
Se tivesse prestado atenção,
Mas na minha besteira
De desmerecer e subestimar
Os espíritos humanos
Deixei passar,
E inclusive a fortaleci
Dando-lhe meu nome.
Quem via aquela Menina
Bonita e delicada
Jamais desconfiaria
O que ela realmente era
E do que seria capaz.
Felipe Caprini, Contos das Muitas Marias
Segunda Temporada — Conto 4
Espero que tenham gostado!
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