Na ilha de Vitória todos
Sabiam que eu era rezadeira,
Benzedeira e feiticeira.
É bem verdade que a inquisição
Estava em vigor ainda
neste fim de mundo
Na ilha de Vitória todos
Sabiam que eu era rezadeira,Benzedeira e feiticeira.
É bem verdade que a inquisição
Estava em vigor ainda
neste fim de mundo,
Mas eu tinha atendido
a senhora esposa do
Marquês do Lavradio,
Fiz-lhe lá uns trabalhos,
E a coisa deu certo,
E ela que era devota de
Qualquer arte diabólica
Pediu ao marido para me
Deixar em paz,
Então a lei fazia vista grossa
Para minha fama de
Bruxa.
De fato se vocês perguntassem
Em qualquer Estância
Da Capital sobre uma
Mulher de nome
Jocasta Terramoto Alviz ,
Eles diriam imediatamente
"É bruxa"
Prazer, Jocasta sou eu.
Era quatro e meia da manhã
Quando acordei sentindo
os arrepios danados na espinha,
Levantei-me da cama
E desci para o porão,
Pois ja sabia que tinha visita.
Sim, ela estava lá, sentada
Em cima caldeira acesa.
Ela nao se queimava pois
Era uma aparição dos infernos,
Uma morta, viva só em alma.
Gostava dela, a conhecia desde
De jovenzinha,
Pois era um espírito morto
A muito tempo em uma mansão
lá pros lados ricos da capital
E que eu via desde que vim
De Vitória para cá.
Cheguei perto, acendi
Uma vela no fogo da caldeira
Para amanar um pouco
A escuridão e
Então a cumprimentei.
— Boas noites, ou melhor, bons dias Rosa Caveira.
Ela era meio a meio.
Sabe o que quero dizer,
Era meio bela meio feia,
Estava lá toda de púrpura,
Parecia uma flor de hortênsia.
Balançou aqueles cabelos
Vermelhos cor de vinho,
A cabeleireira se agitou
Tirando a longa franja da
Posição, assim mostrando
A metade da fuça que
Era de osso branco,
Crânio de esqueleto.
— Não gosto de dar bom dia, então ficamos no boa noite mesmo.
Ri disso,
Mas mesmo tendo
Ouvido mil vezes a voz
Afinada e sensual dela,
Ainda assim me admirei
Ao ouvir novamente.
— Pra senhora vir assim sem avisar...
— Tudo que vai volta.
— Que quer dizer?
— Lhe ajudei muitas vezes nos últimos trinta anos, e agora é tu que vai me ajudar.
— Precisa passar na cara não, é só falar o que quer, eu faço.
Ela apontou para a mesa
No canto do comodo,
Ali sobre ela havia uma
Caixa de madeira mais
Ou menos do tamanho
De um estojo de violino.
— Guarde isso pra mim. Tem um outro espírito querendo pegar isso, não quero que pegue. Mantenha escondido.
— Que espírito?
— Não sei dizer.
— Ah sabe sim, mas aposto que não quer dizer... Pois bem. Mas o que tem nessa caixa?
— Nada que seja do seu bico.
— Não posso abrir a caixa?
— Pode tentar, ela foi enfeitiçada pra não abrir, mas se quiser tentar... tente.
— Mas quem...
— Guarde ela, venho buscar em breve.
E Rosa sumiu,
Se foi sem nem falar
Um adeus.
Era mais seca que
Pedra pome
Me deixou confusa,
Eu não tinha informação
nenhuma mas fiz
O que ela pediu,
Peguei a caixa e enfiei
Em baixo da mesa.
O tempo passou, uns três
Ou quatro meses,
E uma manhã recebi
A encomenda de fazer
Uma poção de "Maria-Dormideira",
Quem é do ramo sabe
Bem o que é.
Desci lá no porão
e sentei a mesa,
Comecei a bater em
Meu pilãozinho de bronze
Folhas de assa-peixe
Com suco de limão-cravo
Que é mistura muito poderosa
Macerava e cantava,
Cantava sim, cantos de
Minha gente.
Acrescentei um tico de
Sangue de porco do mato
E misturei.
Então de repente olhei para
Dentro do pilãozinho
Vi que a poção brilhava
em uma cor verde fosforescente.
Enfiei o dedo no luquido
E dei uma lambida de leve,
E foi de imediato, parei de sentir
A boca toda, tudo ficou
Dormente.
Não era pra ser assim,
A poção era fraca,
Um frasco todo fazia
A pessoa dormir, então
Como um só lambida
Na ponta do dedo
incapacitou minha boca?
Não era normal,
Eu não era poderosa assim.
Fechei os olhos pra me
Concentrar e encontrar
De onde tinha vindo
Tamanha força
aquilo veio de baixo,
Então Tateei o pé direito
E vi que estava com ele
Apoiado sobre a tal caixa.
Achei curioso.
Larguei a poção e peguei
Meu baralho de tarô,
Tirei o pé de cima da caixa
E abri a cartas na mesa,
Vi um jogo complexo,
Como o habitual onde
Havia a necessidade de
Se ler as cartas com muita
Atenção.
Recolhi o jogo, coloquei
o pé sobre a caixa e abrir
as cartas novamente,
E voilà!
Li as cartas com uma
Clareza que nunca tinha
Tido antes.
Era a caixa, aquela caixa
Emanava um poder enorme.
Peguei ela e tentei abrir
Mas não dava jeito,
Estava com a fechadura selada.
Levei a caixa para o andar
De cima e a coloquei
em baixo da mesa da sala
Onde atendia os clientes.
Foi certeiro, tudo que eu fazia,
Não importava a complexidade,
Feitiços dos mais dificeis e
Antigos, dos quais nunca tive
Talento para realizar,
Agora tocando a caixa
ao faze-los eu tinha resultados
extraordinários.
Nisso o dinheiro começou a
Entrar, os clientes vinham
aos montes.
Trazer a pessoa amada em
Três dias? Eu trazia.
Conseguir tirar filho da cadeia?
Eu tirava.
Desfazer casamento?
Eu desfazia.
Tudo que me propunha a fazer
Dava cem por cento certo,
Tudo com resultado rapido.
O povo que era freguês
De minhas demandas se
Admirou muito pois
Agora tudo que me pagavam
A fazer eu garantia que
Ia acontecer.
Eu estava feliz, realizada,
Finalmente a vida estava
Se encaminhando a ser como
Eu queria que fosse,
Eu havia me tornado
Fantástica.
Seis meses se passaram.
Era madrugada de uma
Quarta feira. Acordei as
Quatro e meia da manhã,
Despertei sentindo arrepios
Na espinha.
Gelei.
Sim, eu ja sabia, era ela.
Levantei-me da cama
E desci para o porão,
E ela estava lá em baixo,
Sentada em cima caldeira.
— Boa noite dona Rosa.
— Me dê a caixa.
— Nossa nem vai cuprimentar?
— Olá. A caixa.
Eu não queria entregar.
Se eu desse assim de bandeja
Iria retornar a mediocridade
de sempre, e após se provar
De vinho bom ninguém
quer beber vinagre novamente.
— Que é? Acha que não sei que tem usado a caixa? Usado a força que vem dela? Eu sei Jocasta.
— Então... então me deixe ficar com ela.
— Não.
— Mas eu preciso dela.
— E eu me importo? Me dê a caixa.
— Sim... mas... Rosa, será que eu poderia passar mais um dia com ela? Só mais um dia. Em nome de nossa velha amizade eu lhe peço. Acho que consigo captar um pouco da força dela pra mim, faço isso em algumas horas. Por favor... amanhã nesta mesma hora a caixa estará sobre aquela mesma mesa.
Ela me olhou desconfiada.
— Tudo bem, faça o que quiser. Amanhã voltarei.
E ela desapareceu ali diante
de meus olhos.
Rápido comecei a pensar,
Tinha de ter um plano,
Eu não tinha a menor intenção
de entregar a caixa.
Então a ideia veio na mente,
Uma ideia das mais estapafúrdias
Mas era a melhor que eu tinha.
Matei um galo vermelho
E aparei o sangue em
Uma tigela,
Peguei uma vara longa
E desci ao porão,
Coloquei a caixa no chão
No meio do comodo e
Subi descalça sobre ela,
Molhei a ponta da vara
No sangue e tracei um círculo
a minha volta, desenhei
Simbolos antigos e amaldiçoados
Dentro dele,
Então cobri aquilo com
Um tapete velho.
Coloquei a caixa sobre
A mesa e esperei.
O dia raiou, veio o sol,
Veio a manhã, a tarde
A noite e a madrugada.
Eu estava sentada em uma
Cadeira torta, ja os olhos
pesados de sono.
Mas quatro e meia da
Matina ouvi aquela voz.
— Muito bem, agora me entregue ela.
Me virei devagarinho e sorri,
Ela estava lá, sentada sobre
A caldeira.
— Ola querida, sim.
— Fez o que precisava?
— Eu tentei muitas coisas mas não consegui pegar nada da energia da caixa. Nem dormi, estou virada. Venha, pode pegar.
Saltou de cima da caldeira
E deu dois passos para frente,
E no terceiro passo ela foi puxada
Com tanta força que seus
Cabelos revoaram.
Caiu deitada no assoalho.
— O quê? O quê é isso?!
Levantei e puxei o tapete
Com toda a força.
Rosa olhou para o chão
Abismada para o círculo
traçado no piso.
— Você me prendeu? Me prendeu?
— Um círculo desses não seria forte o suficiente para te prender, mas com o auxílio da caixa... do poder que vem dela... ah Rosa... você não vai sair dai nunca.
Peguei a caixa, dei uma
Última olhada para ela,
Estava caida ali, impotente.
Ri e subi.
Tranquei o porão
e continuei a vida
como se nada houvesse
Acontecido.
As vezes descia là para pegar
Algum ingrediente para
meus trabalhos,
Rosa permanecia no chão
Sentada no meio do circulo.
Não falava nada, mas me
Encarava com uma expressão
Vazia.
Passaram-se tres semanas.
Em uma noite acordei com
barulhos na casa.
Rapidamente me enrolei no
Roupão e desci ao porão,
Imaginava que Rosa estava
Tentando escapar.
Abri a porta e desci a escada,
E o que vi lá foi assustador.
Haviam quatro criaturas là,
Eram todos espíritos com Rosa,
Todos com o corpo de esqueleto.
Os três mais altos estavam
Agachados em volta do círculo,
Um usava paletó preto e
Cartola na cabeça,
Outro usava um fraque purpura,
O outro uma capa preta com capuz.
Os tres batiam os dedos de osso
Em pontos da linha do circulo,
A ponta dos dedos deles
Queimavam o assoalho,
O cheiro de madeira queimando
Estava em todo o comodo,
E se queimassem a borda do
Círculo iam libertar ela.
O quarto espírito esqueleto
Era pequeno, do tamanho
de uma criança de sete anos,
Usava lá um terninho Branco,
E assim que me viu disse:
— Ai ai dona moça... que erro...
— Quem são vocês?
— Eu sou Caveirinha. Não é meu nome de verdade, mas João mandou eu não dizer meu nome de batismo a ninguém.
Então o tal Caveirinha
bateu os ossos do maxilar
Repetidas vezes em um
"Tec-tec-tec-tec-tec-tec"
Assustador, e eu entendi que
Aquilo era o modo dele rir.
— Aqueles ali são os manos, Caveira é só Caveira que chama, mas os outros são Tata e João. A senhora, dona moça, achou mesmo que ninguém ia dar falta de nossa mana Rosa? Ela morta, isso é, mas tem família.
Então minha atenção
Foi levada para cena
Logo atras, pois ouvi
Um som de estalo e
Percebi que o círculo havia sido
rompido.
Engoli em seco,
Rosa se ergueu e deu um passo
Para fora dele.
Um dos esqueletos adultos
Falou com ela.
— Rosa, quer ajuda?
Ela fez que não com a cabeça.
— Então vamos embora, e que deus tenha piedade de ti dona moça. Rosa é boa gente, todos sabem que é, mas... as vezes ela fica ruinzinha sabe... e nem nós que somos manos dela gostamos de ver ela assim.
Esse pequeno olhou para Rosa:
— Seja boazinha, sim?
E então os quatro desapareceram
Em um piscar de olhos,
mas Rosa ficou lá me encarando.
Tive medo, mais medo
Agora do que quando os
Esqueletos estavam lá.
— Olhe Rosa, vamos conversar, eu sei que o que fiz...
Ela abriu a boca,
Escancarando o maxilar
e emitiu um som tão agudo
Que tive de tampar os ouvidos
Com as mãos,
Cai ali na escada me
Encolhendo de pavor,
Os vidros da janela e
Os frascos das prateleiras
Se explodiam, cacos voavam
Por todos os lados.
Eu não sabia que ela era
Capaz de fazer essas coisas,
Então juntei forças,
Fiquei em pé e corri
Para fora do porão,
La em cima na sala
eu corri até a mesa de
Atendimento e tentei
pegar a caixa que estava
Em baixo dela,
Me abaixei para pegar
Mas assim que meus dedos
Tocaram a caixa
Senti um puxão na nuca,
Rosa puxou meus cabelos
com tanta força que
Voei para trás,
Batendo as costas na parede.
Todo ar saiu dos meus pulmões,
Me senti tonta.
Olhei para cima, Rosa estava
a menos de um metro de mim,
E então a vi mudar,
Seu vestido púrpura perdeu a cor,
Tudo ficou meio prata,
Os cabelos dele revoavam mesmo
Sem haver vento na sala,
E então a metade humana de
Seu Rosto foi se tornando
Caveira também, toda a sua
Face era um crânio.
— Por Deus Rosa, eu posso me redimir contigo, juro que posso!
Mas ela não me ouviu.
Puxou meus cabelos de novo
E como se eu fosse uma
Boneca de pano ela foi me
Arrastando pelos cabelos,
Abriu a porta e me jogou para
Fora.
Bati em uma lápide de mármore.
Olhei em volta e fiquei pasma,
Estava agora em um cemitério.
Não haviam cemitérios no meu
Bairro, então... como eu podia
Estar ali?
Meu corpo se elevou no ar,
Flutuando a um palmo do chão
Eu fui levada até uma casinha,
Um mausoléu no meio
Do cemitério.
Rosa estava lá, sentada
De pernas cruzadas em cima
De um túmulo de pedra.
— Tu iria me manter presa por causa disso?
Ela mostrou a caixa que
Tinha no braço direito.
Eu ainda ali flutuando
Gritei:
— Me perdoe! Me perdoe! Fiquei deslumbrada! Foi só isso, me perdoe!
— Ninguém vai me prender, nunca mais.
Ela ergueu a mão esquerda
e com o dedo indicador
fez um movimento circular.
Meu corpo começou a girar
Pelo mausoléu,
Girava batendo nas paredes,
Nas estátuas, no chão.
Não falava nada, eu berrava
A plenos pulmões,
Clamava pela misericórdia.
Meu corpo girava
Com tanta velocidade
E batia com tanta violência
Que comecei a ver flashs
De coisas vermelhas sendo
Arremessadas.
Então entendi que aquilo era
A minha carne.
Quando parei de gritar
Cai no chão com um som
De estalo.
As paredes do mausoléu estavam
Tingidas com o vermelho
da minha carne e meu sangue.
Olhei para minhas mãos
Eram apenas ossos,
tateei meu rosto e o som
De estalos dos dedos de osso
Tocando em meu crânio
Me desesperou tanto
Que só o que podia fazer
Era gritar.
Até a voz eu não tinha mais,
O que tinha era um esgar rouco
Saindo por entre os ossos
Das costelas.
Rosa caminhou até a porta
Do mausoléu cantando.
Quando estava no batente
Olhou para trás:
— Você gosta de aprisonar, não é? Bom, aproveite então.
— Não! Não Rosa! Não me prenda aqui!
— Se minha família não tivesse vindo me soltar, por quando tempo eu teria ficado presa naquele porão? Por uma decada? Ou provavelmente você me deixaria lá para sempre? Tudo que vai volta Jocasta.
— Eu ia te soltar! Eu juro!
— Quem jura, mente. Eu vejo através de você, e não vejo nada de bom.
Ela fechou as portas e
Partiu.
A música que ela cantou
Ficou na minha mente.
Com o tempo eu comecei
a conseguir a me mover
com mais destreza.
Pelas tres semanas seguintes
Fiquei ali cantando,
Tentando abrir a porta.
Um dia eu consegui abrir uma
Frestinha, vi la fora a lua.
Então uma mulher falou comigo
Através dela,
Uma mulher negra que
Vestia branco, ela
fez perguntas sobre a caixa.
Respondi tudo que sabia,
E ela em troca das informações
afrouxou o feitiço que selava
A porta.
Cabia a mim quebrar o feitiço
E abri-las de vez.
Continuei tentando e tentando,
E por um ano inteiro tentei,
Até que enfim conseguir sair de lá.
Quando eu sai, fui atras de Rosa,
Mas independente de qualquer
vingança que tentei fazer,
Nada me fez ser
Jocasta novamente.
Me tornei um espírito de magia.
Mais de duzentos anos
Se passaram,
Agora eu sou uma Pombagira, não sou?
Mas quem disse que eu queria ser?
Eu só queria ser Jocasta,
Mas agora sou outra coisa.
Foram as pessoas que me deram
Um nome novo, elas e vem a mim
Pedindo conselhos.
Hoje quando vejo Rosa
Ela passa por mim e não toca
No assunto.
Para ela aquilo tudo não foi nada.
Sei que é hipocrisia da minha
Parte, sei que teria feito
O mesmo com ela ou com
Qualquer outra para ter a
Maldita caixa só para mim.
Mas ainda assim,
Sendo hipocrisia ou não,
Eu sinto ódio por Rosa Caveira.
O pior é que até hoje eu não consigo
Deixar de cantar aquele maldita
Música toda vez que a vejo.
"Do pó para o pó,
Ninguém explica,
Como uma Rosa amarela...
Nasceu da princesinha.
Do pó para o pó,
Com um livro encarnado
Ela fala de poderes
Que ganhou do diabo.
Do pó para o pó,
Um crânio na história
Nas mãos do perverso
É a taça da vitória.
Do pó para o pó,
A Rosa disse claro
Três vezes tres é castigo,
Ela cobra um preço caro."
Felipe Caprini, Contos das Muitas Marias
Segunda Temporada — Conto 5
Espero que tenham gostado!
Não copie sem dar os créditos! Seja Honesto!
Quem quiser encomendar desenhos, brasões e artes em geral pode me chamar no whatsapp
11944833724
Muito obrigado!