Eu o amava por demais,
Era um misto de admiração e devoção
Que nem eu mesmo compreendia.
Infelizmente ele que era homem preto
Só amava verdadeiramente
Outro homem preto.
Eu o amava por demais,
Era um misto de admiração e devoçãoQue nem eu mesmo compreendia.
Infelizmente ele que era homem preto
Só amava verdadeiramente
Outro homem preto.
Os conheci ainda menina,
Dois irmãos, ambos na casa
Dos vinte anos.
Nunca soube seus nomes de verdade
Pois o povo escravo dava a eles
Apelidos vindos de palavras
Usadas em cantigas
De um de seus Deuses,
Um tal Exu, que era Deus arteiro
E que mesmo sendo sagrado
Ainda assim não abria mão
De fazer molecagens.
Então os irmãos tinham nomes de Exu,
O mais velho era corpulento, um gigante
E o mais novo era mais baixo
Mas também forte.
O grandalhão era Marabô
E o ligeiro era Tiriri,
E os nomes lhe caiam bem
Pois eram dados as zuelas.
Os dois viviam grudados,
Se avistasse um era porque
O outro não estava mais longe
Que um quarteirão.
Quando os conheci foi na época
Da minha juventude,
Época que era moça de cabelos
Louros e sem rugas na face,
Quando cai na vida e fui
Ser messalina no cabaré de
Dona Maria Quitéria,
Os dois estavam lá de leão de chácara,
Que é o nome que se dá
Para quem protege uma casa
De mulheres da noite.
Eu era jovem e vaidosa,
Então quando passava por Tiriri
E ele para mim lançava um assobio,
Bom, basta dizer que me sentia
A mais bela das damas.
Todos os homens na verdade
Se derretiam por mim,
Mas eu sabia que poucos entre eles
Me viam como gente,
E Tiriri era um desses
Que me olhava como pessoa.
Fiquei muito amiga dos dois irmãos,
Quando um se afastava
O outro ja ficava inquieto,
E então eu pensava
"Mais que bonita a fraternidade, dois que sentem saudade um do outro",
Mas um dia Tiriri bebeu demais
E subiu comigo para o quarto,
Em meio as nossas libertinagens
Ele acabou por contar o motivo
De nunca querer ficar longe de Marabô.
Haviam os dois nascidos escravos
Filhos de uma negra que trabalhava
Na casa de um barão de cafezal
Lá para o norte da província,
Quando eram ainda muito novos
Viram que a esposa do barão
começou a fazer muitas
Perversidades com a mãe dos dois,
Tinha ciúmes da beleza dela.
Fez-lhe tantas crueldades que
A mulher não aguentou e morreu.
Tiriri e Marabô passaram a baronesa
Na faca, a Mataram e fugiram,
Porém, não se sabe como,
O barão descobriu que eles
Eram os assassinos
E jurou que iria encontrar
Os dois e os matar.
Daí percebi que o olhar cumprido
Que Tiriri lançava a sua volta
Quando o irmão não estava
Não era saudade, era medo,
Medo que o outro fosse
Pego sozinho.
Eu continuei a ter meus romances
Com ele, era risonho, bonito,
Sabia contar anedotas das mais hilárias
E sabia beijar de uma forma
A deixar qualquer moça
Com as pernas bambas.
Pensava eu que ele me amava,
Mas não amava nada,
Tiriri me queria como
Amante e como amiga, só.
Foi então que aquela mulher
Chegou na casa, uma vadiazinha
Que tinha trejeitos ciganos e
Dançava alá espanhola em cima do palco
Como se fosse artista,
Pintava os olhos com kajal
E usava o espartilho tão apertado
Que os peitos pareciam bombas d'água
Prestes a romper.
Sete Saias era seu nome
E por muitos anos eu a odiei,
A odiei pois ela tirou Tiriri de mim.
Sim, ele caiu de amores por ela,
E a lambisgoia se fazia de besta
Tirando dele toda a atenção
Que deveria ser minha.
Eu havia chegado Primero,
Mas ela só por ser mais bonita
E por se fingir de misteriosa
O enlaçou como um bezerro.
Sabe, ciúme é coisa que parece
Que não é nada demais,
Mas faz a gente cometer loucuras.
Uma manhã estava eu na faxina
Do salão após uma noite de trabalho
Quando dei por falta dela.
Sim, dona Quitéria já havia falecido
Mas Dona Maria Padilha, que era
A nova dona da casa
Mantinha os costumes rígidos,
Todas as moças tinham de ajudar
Na faxina após a casa fechar as portas.
E porque eu Serafina tinha de
Fazer a faxina com minhas iguais
Enquanto aquela megera estava
Lá em cima descansando?
Subi as turras batendo
Os saltos no assoalho com raiva
E quando bati a porta do quarto
Pronta para descascar a bandoleira
Não foi Sete Saias que atendeu,
Foi Marabô, e ele estava desnudo.
Vi ali a oportunidade,
Sai correndo para fora do cabaré
E o encontrei na porta de um botiquim
Que ficava perto.
— Escute Tiriri, tu não sabe o que acabei de ver.
— Homessa! Mal amanheceu e tu já vem de besouragem serafina? Sabe que não me dou a fofoca.
— Mas Tiriri, a fofoca é sobre Sete Saias, não quer saber?
Ele se aprumou, o assunto
Era de seu interesse, então falei
— Hoje ela deixou de fazer faxina, estava demasiado ocupada com um homem no quarto.
— E o que eu tenho com isso? Ela lá é minha esposa? Sete Saias é da vida, eu não posso cobrar dela nada.
— Acho que não me fiz entender, Ela não estava atendendo cliente, ela estava de namoro, ouvi até ela dizer a ele que estava apaixonada... ah e como gemia com ele na cama, fico até arrepiada de lembrar. Disse ela que vai largar o cabaré e casar com ele.
Ao acrescentar esta dose de
Invencionice a verdade
Vi a expressão de Tiriri mudar,
Ficar cheia de raiva.
— Quem é o homem?
— É seu irmão. E não me olhe assim, se não acredita... vá ver, ele ainda está lá.
Tiriri saiu marchando,
Corri atrás dele satisfeita
Crente que ele iria quebrar
A vadia no cacete,
Mas não foi o que aconteceu,
Não, ao entrar no quarto
Ele avançou foi em Marabô.
Sete Saias só teve tempo
De se enrolar em um lençol
E sair para o corredor,
Os dois dentro do quarto
Pareciam leões
Rugindo e se quebrando,
Os móveis do cômodo ficaram
Em frangalhos,
Cacos de espelho pelo chão
E a serragem do colchão
Por todo o lado.
Logo Maria Padilha subiu
E apontando a eles uma garrucha
Mandou que parassem por bem
ou que ela os Faria sair dali direto
Para sepultura,
Então os dois pararam.
A amizade dos irmãos acabou ali,
Tiriri fez a trouxa e foi embora
Para a capital,
Foi fazer a vez de jagunço
Para quem pudesse pagar.
Marabô eu não vi por anos
Mas soube que trabalhava
Junto àquele Zé Pelintra no
Cais do porto
Com o contrabando.
Entendi que Tiriri realmente
Amava Sete Saias,
E ele mesmo me confessou
Antes de partir que havia
Dito ao irmão que queria
Casar com ela.
Ela nunca foi mulher para casar
Mas ele ainda assim sonhava.
Se eu tivesse ficado calada
Os dois irmãos teriam
Permanecido Juntos.
Alguns anos se passaram
E em uma Noite no Cabaré
Sete Saias me puxou pelo braço
E me levou para trás
Da cortina do palco,
Nunca foi minha amiga
Então estranhei, Porém
Ela apontou para uma mesa
Onde estavam alguns homens
E me disse
— Escute Serafina, está vendo aqueles ali? São capangas do Barão de Antonina, ouvi quando disseram que estão aqui para caçar um dupla de irmãos negros fugidos, Miguel e Tadeu, ou como nós o chamamos...
— Marabô e Tiriri?
— Pois sim. Preciso avisar os dois, vou mandar uma carta a Tiriri com urgência, mas Marabô não sabe ler então preciso que vá ao Porto e o avise para se esconder.
De imediato aceitei,
Larguei tudo e mesmo
De madrugada montei
Em um cavalo e desci a serra,
Encontrei Marabô em um casabre
Perto do cais, estava adoentado,
Mal do fígado por beber demais.
O avisei para ficar ali quieto
Mas ele não quis, se pôs de pé
E saiu pela cidade dizendo
Que tinha de encontrar o irmão.
O homem estava tão doente
Que quando nos aproximamos
Do Cabaré ele simplesmente
Caiu do cavalo desacordado,
Com a ajuda das moças
O levamos para dentro pelos fundos.
Na manhã seguinte Tiriri chegou
E se juntou a Marabô.
Não sei dizer como mas
Poucas horas ficaram juntos,
Logo ouvimos batidas fortes
Na porta da casa e eles estavam
Todos lá, mais de quarenta homens
Armados até os dentes.
Marabô não tinha condição
Nem de ficar em pé,
Mas estava bravo, queria
A todo custo que o levassem
A janela para poder balear
Alguns antes de ser morto.
Tiriri saiu do quarto
E votou rápido com aquela
Maria Mulambo,
Ela com um cálice na mão.
Juraram a Marabô que era
Um tônico que o iria revigorar,
E todos sabíamos que aquela
Mulher era bruxa, então ele bebeu.
Mas não foi revigorado,
Pelo contrário, Marabô caiu
Em um sono produndo, ficou imóvel.
Vi Tiriri beijar a face do irmão
E depois pedir que Padilha
Deixasse os homens entrar.
Assim foi feito,
O capitão dentre os capangas
Entrou no quarto e quando viu
Marabô na cama ficou espantado.
Tiriri disse que o irmão havia falecido
Pela doença dos pulmões fracos.
O capitão ao ver o homem debilitado
E completamente imóvel na cama
Acreditou.
— Ele ja se foi, e Você? O que faço com você?
Tiriri pediu que fossse o que fosse
Eles respeitassem a casa e as mulheres,
Então os homens o agarraram
E o levaram para fora,
Mas antes de ir
Tiriri apanhou um rouge
Em cima da penteadeira
E em um lenço Branco
Escreveu com letras tortas
Uma palavra,
Me entregou e pediu para dar
Ao irmão quando pudesse.
Foi só Tiriri ser levado
Que Marabô abriu os olhos
E caiu da cama,
O homem era tão grande
Que nem a bruxaria
De Maria Mulambo
O fez apagar,
Porém estava troncho,
Não conseguia se mover direito
Tal como um bêbado.
Ele se arrastou pelo corredor
E caiu ajoelhado lá diante
De uma janela do segundo piso.
Da janela vimos tiriri em pé no
Meio da rua com as mãos erguidas
E um círculo de homens a sua volta.
Um deles esticou o braço
E apontou a arma para Tiriri,
Então Marabô fez menção de gritar,
Eu o agarrei por trás
Tampando-lhe a boca com as duas mãos.
Meu coração aperta ao lembrar,
Fechei os olhos para não ver
E ali ouvi o som dos tiros.
Sabe, para matar um homem
Um tiro basta,
Mas vinte e três é só maldade.
Vinte e três tiros em um homem sozinho.
Marabô caiu desacordado novamente,
Mas ele viu o irmão ser assassinado.
Padilha mandou que o corpo
De Tiriri fosse levado
Para dentro da casa
Para ser limpo,
Ele era um dos nossos,
sempre foi um dos nossos.
Mais a tarde
O efeito da poção de Mulambo
Passou e Marabô acordou totalmente,
Desceu as escadas aos tropeços
Por ainda estar fraco
E quando viu o corpo irmão
Sobre a maior das mesas
Do salão
Ele o agarrou e chorou.
Marabô não chorava como criança
Ou como mulher,
Ele berrava com a voz grave,
Berrava em uma altura tão grande
Que nós todas ficamos sem ação,
Apenas observando
Aquele homenzarrão agarrando
O corpo morto do outro e
O pressionando contra o peito.
Após muito tempo de pranto
Eu me aproximei de Marabô
E entreguei o lenço,
Ele abriu e encarou a palavra
Sem entender,
Então li para ele
— Família. Esta escrito família.
Tiriri foi enterrado
Na Mata no lugar onde
Jaziam as prostitutas, os ladrões
E os Pretos.
Quando fiquei velha
Fiquei sabendo de uma história,
O povo dizendo que os catimbozeiros
Estavam a trabalhar com espiritos
De gente morta, ouvi dizer que
Tiriri era de se manifestar
Nos feiticeiros daquela gente.
Confesso que não acreditei,
Me parecia absurdo demais
Meu Tiriri ter virado espírito.
Um dia na feira encontrei Dona Aparecida,
Uma catimbozeira das brabas
E perguntei a ela se conhecia
Um espírito chamado Tiriri,
E ela disse que sim,
Mas ainda assim não botei fé.
Perguntei então se ela conhecia
Um de nome Marabô,
E ela animada respondeu
— Sim, esses dois nomes são conhecidos já, quem conhece um conhece o outro.
Então vi que era verdade,
Pois eles se foram juntos
Para o além, e dê lá
Caminharam juntos
Como é o certo de se fazer
Quando se é
Família.
Fui então em uma sessão,
E lá uma mulher gorducha
Vestida de capa e cartola
Estava andando e falando
De um jeito muito familiar.
Quando chegou perto de mim
Ela sorriu e disse
— Veio ver se era eu mesmo? Até velha tu ainda é dada a besouragem Serafina?
E eu ri, apenas ri e bebi
Tendo a oportunidade de estar
Com Tiriri uma ultima vez.
Felipe Caprini, Contos dos Maridos da Lua
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