Ela nunca me procurava...
Nunca.
Mas eu sempre ia atras dela.
Ainda era minha filha,
Apesar de tudo ela era.
Eu me sentia muito culpado,
Entende?
Dividido.
Ela nunca me procurava...Mas eu sempre ia atras dela.
Ainda era minha filha,
Apesar de tudo ela era.
Eu me sentia muito culpado,
Entende?
Dividido.
Eu sou um homem morto,
Um cigano Kalon.
A alma cigana pertence
A um lugar chamado Lemúria,
É para lá que nossas almas
Tem de ir.
Mas após a minha morte
Eu não fui para lá,
Eu não quis.
Se eu fosse... nunca mais
Veria minha Soraya.
Insisti muito para ve-la,
Ela chegou na hora marcada,
E nos encontramos na mesma
Clareira da floresta,
Lugar onde havia,
muito tempo antes,
Nosso acampamento.
Sentei em uma pedra,
A observei vir caminhando
por entre as árvores até
Ela sentar ao meu lado.
A olhei nos olhos,
Me lembrei de quando era
Viva e tinha belos olhos verdes,
Olhos como os meus,
Mas agora apenas o olho
direito era verde, a iris do
Olho esquerdo era vermelha.
Ao analisar bem aquele rosto,
Em uma fração de segundo
O vi se deformar,
Era como se fosse feito de
Massa, as formas ficaram confusas,
Metade do rosto teve as feições
intensificadas como se ela
Esivesse com ódio, mas
A outra metade exibiu uma
Expressão muito serena.
Ela levou as mãos ao rosto
Segurando a face como
se tivesse medo que desmoronasse.
Ela sorriu, mas sorriu triste.
Descansou a cabeça em
Meu ombro, eu fechei os olhos
por um instante.
Ela se foi, voltou para junto
Daquelas as quais ela agora
Chamava de irmãs.
Eu passava os dias e as noites
Em uma busca incessante
Atrás de uma resposta a respeito
do que prendia a alma de minha
Filha a este mundo,
E mesmo com todo o clã
revoltoso eu me negava
A deixar Soraya para trás.
Ou íamos todos para Lemúria
Ou não iria ninguém.
Foi então que passado algumas
semanas chegou a meus ouvidos
O bochicho de que uma feiticeira
Havia sido assassinada por uma
Alma maldita, a tal Rosa Caveira,
E que o motivo do ato foi que
A feiticeira havia usado um item
Portador de grande magia
E que pertencia a Rosa.
Pensei "se esse objeto é poderoso, pode ajudar a minha filha",
Então fui atras de uma dessas
Moças, escolhi falar com aquela
que eu sabia ter apreço verdadeiro
Por minha Soraya.
Fui até aquela mansão abandonada
Perto da Quinta dos Santos,
E lá encontrei Maria Padilha.
No salão abandonado, repleto
De teias de aranha e morcegos
Encarapitados nas vigas podres.
Ela nem se dignou a ficar em pé
Quando entrei, do jeito que estava
deitada em um divã, fumando
Uma cigarrilha, ela ficou.
Ela zombou.
Era muito mal educada.
Eu forcei uma risada,
Afinal precisava daquela uma.
Sentei em uma
Cadeira velha e empoeirada.
Ela se aprumou, sentando
Com as costas eretas.
Padilha ficou em silêncio
por um longo tempo.
E ela me disse o que iria
Acontecer, marcou para a
Noite seguinte, as três da madrugada
Ali naquela mansão velha,
Ela traria uma das tais caixas,
Nós iríamos ajudar minha filha.
Na hora marcada eu estava lá,
Levei comigo Esmeralda e Yago,
Uma precaução para acaso Padilha
Resolvesse prontar alguma traição.
O grande salão de bailes da mansão
Estava completamente vazio,
Apenas quatro mulheres lá,
Minha Soraya, Padilha, Mulambo e...
Quitéria.
Yago cochichou no meu ouvido:
Soraya sorriu para nós
Enquanto se aproximava.
Soraya fez feição de confusa,
Olhou para Padilha que moveu
Os labios dizendo "Confie em mim".
Ela então Soraya sorriu para nós
e se colocou no centro da sala,
Vi que ali haviam duas caixas
De madeira, Soraya subiu sobre elas.
Meu coração apertou,
Havia alguma coisa errada ali.
Ela gargalhou, desgraçada!
Corri até minha filha e a puxei pelo braço.
Padilha correu e a segurou
Pelo outro braço.
Então aquela Maria Quitéria
Também segurou no pulso de
Soraya, ela e Padilha estenderam
As mãos livres para trás para que
Mulambo as puxasse,
Mulambo assim fez enquanto
Cantava:
“Cabra Preta que no monte subiu,
Traz a tona a Sete Saias que
Da encruza sumiu.
Sete Saias, assim como o galo canta,
Burro rincha, o sino toca e a
Cabra berra, assim tu hás de ser livre
Do laço de cetim!
Assim como Caifás, Satanás, Ferrabrás
E o Maioral do Inferno,
Que fazem todos dominar,
Fazei Sete Saias se dominar,
Para fazer de Kali um cordeiro,
Presa debaixo do teu pé esquerdo.
Nada ha de rachar, a luta vencerá
Pela da Cabra Preta do mal eterno,
Que é senhora do alto do Ararath
E da cova profunda do inferno.
Sete Saias, com dois eu te vejo,
Com três eu te Solto,
Com Caifás, Satanás, Ferrabrás
Lhe faço ser irmã de Yeborath!
Mulambo repetiu a ladainha,
Padilha e Quitéria repetiram
Entoando aquilo em coro.
Os meus ciganos vieram,
Esmeralda segurou no pulso
de Soraya junto comigo,
Yago segurou os nossos pulsos livres
e assim ficamos na mesma posição
que as bruxas.
Começamos a cantar
O hino de nosso Clã,
Isso era a oração mais poderosa
Afim de avivar a alma cigana
De minha filha.
" Ô Cirandeiro, ô Cirandeiro ó!
Ô Cirandeiro, ô Cirandeiro ó!
A Luz do anel brilha mais
Do que o sol!
Ô Santa Sarah, ô Santa Sara ó!
Ô Santa Sarah, Santa Sara ó!
A luz do teu olhar
Tinha fogo e me queimou!
Os teus olhos me enfeitiçam,
É tao grande a tua beleza!
Os sete mares tu abrange,
Pois Kalon é o teu sangue!
Nós ciganos podemos até
Muitas vezes o caminho errar!
Santa Sara lhe entrego com fé
Esse meu caminhar!
Nossa vida é liberdade,
E agora eu vou lhe dizer,
Nunca temo o caminho
mesmo com medo de se perder!
Nunca temo o caminho
mesmo com medo de se perder!"
Era uma confusão de vozes,
Nosso lado e o lado delas
Cântando a plenos pulmões.
Então senti meus pés se
Erguerem do chão, era como
Se estivesse a um centímetro
Do solo.
Soraya deu um tranco,
O corpo dela começou a girar,
E nós segurando firme nela
Giramos junto.
Segurava com toda a força no
Pulso dela, Esmeralda e Yago
Também não se renderam,
Mas infelizmente o lado de lá
Também estava firme.
Chamas de fogo azulado brotaram
Das caixas, era como se
Minha filha estivesse girando
sobre uma fogueira diabólica.
Os olhos dela emanavam luz,
O olho direito era como um prisma,
O esquerdo um farol rubro,
Ela escancarou a boca e gargalhou,
Mas a voz era duplicada,
Eu pude ouvir nitidamente um
Riso suave e uma gargalhada
Cheia de deboche.
A velocidade do giro
Aumentou tanto que a saia dela
estava aberta, girando no ar,
Os cabelos revoltos espalhados
Pelo vento que agora assolava a sala,
E de repente um clarão amarelo,
Um som de trovão,
E todos nós fomos arremessados
Para longe.
Me ergui rapido olhando em volta,
Vi do outro lado do salão
As três Marías também se levantando.
Esmeralda perguntou:
Olhei para o meio do salão,
O corpo de minha filha reluzia
Como uma brasa,
Estalava como um carvão aceso.
Aos poucos foi se dividindo,
A massa do corpo se entortou
E então se tornou duas
E essas massas se tornaram
Duas mulheres abraçadas.
Aos poucos desfizeram o abraço
e deram um passo para trás
admirando uma a outra.
As duas eram idênticas,
O mesmo rosto, mesma pele
E cabelos, mas os olhos e as roupas
eram distintas,
Os olhos de uma eram vermelhos
e os da outra, verdes.
A de olhar vermelho usava um vestido
Flamenco, rubro e negro,
A de olhos verdes usava o mesmo
vestido mas nas cores do arco-íris.
Elas se olharam confusas.
Olhei para Padilha.
A mulher de roupa arco-íris
sorriu para mim.
Me aproximei dela incrédulo.
A outra mulher, a de roupa rubro-negra
Me olhou torcendo os lábios
Sem disfarçar o asco.
Padilha foi até ela e a abraçou.
Ela correu e abraçou Esmeralda
Que assustado não retribui o abraço.
A tal Sete Saias das Sete Encruzilhadas
Gargalhou nos vendo juntos.
Olhei para a Cigana das Sete Saias.
Tentei muitas vezes ir para Lemúria
Com meu povo, mas não pude,
Todos os ciganos de meu clã,
todos os que estavam sob a minha
liderança ficaram presos neste
Mundo comigo.
Eu recuperei metade de minha filha,
A metade cigana, e a amo muito,
Minha querida Cigana das Sete Saias.
Mas a outra metade eu também amo,
Ela agora se auto intitula
"Pombagira das Sete Saias".
Ainda não entendi o que é
Ser Pombagira, mas é o que
Ela afirma ser.
Ela não gosta de mim,
Não se aproxima de qualquer
Coisa que seja cigana,
Mas ela é uma de nós,
La no fundo eu sei que
O destino das duas metades
é se unir novamente.
Fico pensando se um dia
Poderei sair daqui e ir para
Lemúria.
E devo confessar que... se eu
puder ir... quero levar as duas
Sete Saias comigo.
Hoje eu fiquei pensando muito
Nisto.
Eu estava indo junto com
Meu povo todo para uma festa
Cigana, em uma casa de mediuns
Que prezam pela espiritualidade.
Chamam agora isso de Umbanda,
Pois a gente de hoje é criativa
Em dar nomes aos credos.
No meio desta festa haviam
Lá duas mediuns, uma se
Deixou incorporar pela cigana,
A outra pela Pombagira.
Enquanto dançavam
era como se fossem figuras
Espelhadas,
Dançavam de modo igual
uma de frente para a outra.
Fiquei olhando aquilo e me
Lembrando de quando éramos
Vivos e minha Soraya era uma
Menina animada e faceira
Dançando em torno das fogueiras
nas noites de festa do nosso povo.
Eu não entendo porque tudo
No caminho dos espíritos é
Tão confuso.
Mas eu juro que vou juntar
As duas metades de minha
Soraya novamente.
Tanta gente vai até estas
Partes dela pedindo por felicidade...
Eu queria ter alguém a quem pedir,
E eu pediria apenas que
Ela finalmente fosse uma.
Que ela finalmente fosse... feliz.
Felipe Caprini, Contos das Muitas Marias
Segunda Temporada — Conto 7
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