A última noite foi a coisa
Mais tenebrosa que já vi.
Estávamos todos nós no beco
Da Pedra Furada, as mesas
Na rua, Nega Zefa no barril
De cerveja, a viola e o pandeiro
Dando aquele samba pra
Dar paz na madrugada.
A última noite foi a coisa
Mais tenebrosa que já vi.Estávamos todos nós no beco
Da Pedra Furada, as mesas
Na rua, Nega Zefa no barril
De cerveja, a viola e o pandeiro
Dando aquele samba pra
Dar paz na madrugada.
Foi ai que aquele menino
Chiquinho do Churra
Entrou no beco gritando
— Eles tão subindo o morro! Sete Facadas e os negos, tão subindo!
O samba parou, silêncio.
Então ela deu uma gargalhada.
— Simbora meu povo! Quem tem pistola, carregue! Quem tem faca, afie! Se eles tão subindo... eu to descendo.
Ela sempre foi certa nas coisas,
Mas o tempo foi cruel.
Estava sessentona
E mais maluca que nunca.
Depois que Zé foi nas águas de Oxalá,
O morro ficou sendo dela.
A policia estava um "nem-te-ligo"
Pro morro, afinal so quem morava
Lá era gente pobre.
Era Navalha que protegia
Toda aquela gente.
Foi ai que ela me chamou de canto
E disse nos cochichos:
— Você sabe o que Sete Facadas quer, mas eu não vou dar. Você pegue aquele troço e suma pra dentro do mato, se acontecer o pior tu leve aquilo pra Rosa.
Assenti, não ousava
Contrariar Navalha,
Mesmo que tivesse naquele
momento a certeza
Que ela estava completamente
louca.
A Rosa que ela falava
Era Dona Rosa Vermelha,
Morta a mais de trinta anos.
Bom, sem questionar
Corri com meus cambitos
Finos de moleque até
O barraco dela, levantei as
Tabuas do assoalho do quarto
E peguei a caixa de madeira.
Devia ter ido embora do morro,
Me escondido no mato,
Mas quando sai pela porta
Do barraco ouvi lá na baixada
O som da bala comendo solta
E me distrai,
Feito um idiota fiquei parado
Olhando lá pra baixo,
Para as vielas escuras da qual
Via os coriscos vermelhos
das balas correndo pra todo lado.
— Passa essa caixa pra cá.
Senti o gelado do cano da pistola
Encostar no meu pescoço.
Olhei pelo canto dos olhos
E o vi, era Sete Facadas.
Não tinha alternativa,
ou dava por bem ou ele
Atirava em mim e pagava
A caixa de qualquer jeito.
Ergui o braço pra ele apanhar
Mas então ouvi o disparo
E ele caiu ajoelhado.
Olhei para frente e lá vinha
Maria Navalha com a pistola
Erguida na mão.
— Ta bem Moreno? Ele te furou?
— To Bem. Ele morreu? — olhei para o homem no chão.
— Quem dera. Ande, vamos! Temos de ir até Rosa.
Não consegui me mexer,
O que vi me deixou
Muito assustado.
A camisa de Navalha estava
cheia de buracos minando sangue.
Contei por cima pelo menos
Onze furos.
— A-a se-se-senhora...
— Isso não é nada, vamos rapido!
Me puxando pelo braço
Nos subimos a viela e entramos
No matagal,
Corriamos a toda velocidade
E eu a toda hora olhando
Para os ferimentos no corpo dela,
E a cada segundo eu via
Menos sangue saindo dos furos,
Até que não vi mais furos na pele,
Os buracos do tecido revelavam
Por baixo da camisa uma pele
Limpa e imaculada.
Continuamos correndo como
Loucos, agora já por entre
As árvores, até que
Me revoltei e parei.
— Dona Navalha o que está acontecendo? Como seus ferimentos se curaram? E do que estamos fugindo?
Navalha olhou tras e apontou
Para as árvores distantes.
— Ela, estamos fugindo dela.
Olhei para trás e vi
Algo branco, era como
um lençol branco flutando
Por entre as árvores
E vindo na nossa direção.
— Que diabo é aquilo?
— Não importa. Vá Moreno, vá que eu vou ficar pra segurar ela. Ande! Vá!
Olhei para o rosto de Navalha
E me espantei, estava nova,
Era como uma moça
na casa dos vinte anos.
Corri dali segurando a caixa,
Corri por mais de meia hora
Até chegar na estrada.
Corria sem pensar nas coisas
Que tinham acontecido
Pra não embaralhar a cuca.
Ja não podia correr mais,
Mas andava rápido.
Cheguei até aquela encruzilhada
Perto da ponte,
Ali Navalha havia dito
Que trinta anos antes não era
Rua e sim um terreno
Com um enorme casarão,
Que bem em cima da encruzilhada
Ficava o antigo cabaré da cidade.
Fui no meio da encruzilhada,
Lugar muito escuro
Iluminado por uma lua fraca.
Sabia que era maluquice,
Sabia sim, mas Navalha
Deu ordem de fazer aquilo,
Então fiz o que ela queria.
Respirei fundo e mesmo
Me achando bem um diota
Fechei os olhos e falei:
— Rosa Vermelha, eu trouxe a caixa, Navalha mandou lhe dar.
Senti um vento gelado
E um arrepio do lado esquerdo
Do corpo.
Abri os olhos e no ato
Meus joelhos começaram
a bater um no outro
Do tanto que eu tremi.
Ela estava a cerca de
Vinte metros, vinha na
Minha direção,
Mas ela não andava,
A barra de sua saia
Estava a um palmo do
Chão e ela vinha deslizando
No ar.
— A-ave Maria cheia de graça, o senhor é convosco, bendi... ai meu Jesus o que é isso...
— Está rezando porque? Não foi você que me chamou?
— Fo-fo-foi sim... A ca-ca-ca...
— Caixa? Veio me dar a caixa?
— Si-si-sim...
— Então me dê.
Ela se aproximou mais,
A pele era branca translucida,
O vestido vermelho vivo
E o cabelo negro revoavam
Mesmo sem vento forte.
Que medo meu Deus,
Aquilo era coisa do outro
Mundo.
Quando ela esticou o
Braço para apanhar
a caixa eu larguei
A caixa no chão
Virei as costas
E corri, corri muito,
Sentia o corpo tremendo
E a umidade nas pernas,
Te digo que me mijei todo
Na frente daquele diabo.
Eu corria rezando o
Pai nosso e a Ave Maria,
O Credo, a Salve Rainha,
Até da oração do São Bento
Eu me lembrei.
Aquilo não era normal,
Mas eu vi sim Rosa Vermelha.
Corri de volta pelo mato
O suor frio escorrendo pela testa,
Fui pela trilha
Até chegar no ponto onde
Havia deixado Navalha,
Mas lá não havia ninguém.
Corri de volta pro morro
E fui pra casa dela,
Mas também não tinha ninguém.
Desci o morro até a baixada
E ali foi que meu coração gelou.
Na curva do Assussena tinha
Uma monte de gente parada,
Muitos chorando.
A policia tava lá, guarda montada,
E o povo dizia a eles pra não
Levarem o corpo dela,
Que era da nossa família.
Mas dela quem?
Perguntei a Dona Zena,
Que era a dona da quitanda
E que tinha visto tudo
Da janela de casa,
Perguntei a ela
Quem era a pessoa morta lá
Em baixo e ela disse
"Mataram Navalha".
Corri até o corpo dela,
E estava lá, o peito cheio
De buracos de bala.
Zé do Coco tava junto
A policia explicando qualquer
Coisa que não entendi,
Assim que os guardas se foram
Eu perguntei:
— Quem matou ela?
— Foi o Sete Facadas. Ela atirou nele, matou o desgraçado bem ali na praça, mas ele antes de morrer descarregou tres pistolas nela.
— Mas como na praça? Ela atirou nele lá em cima, na porta do barraco dela! Eu vi!
Zé do Coco me olhou como se
Eu fosse doido.
— Moreno, Navalha não subiu o morro. Do que é que tu ta falando?
— Ela me mandou ir na casa dela, e eu fui. Então o Sete Facadas apareceu lá, ela também, e atirou nele.
— Se anda bebendo demais Moreno. Eu vi a hora que lhe mandou ir na casa dela, e em seguida ela desceu o morro com o bando. Assim que desceu foi baleada. Voce ta vendo fantasma é Moreno? Ande, vamos levar o corpo dela lá pra cima, era nossa amiga, vamo enterrar ela lá no pico.
Fui ajudar a carregar
o corpo, Mas todo momento
Meu pensamento tava longe.
Se ela morreu lá em baixo,
Quem foi que correu comigo
pelo mato?
Será que eu tava mesmo doido?
Enterramos ela no pico
Do morro do lado de uma
Pedra que ela gostava de ficar
Sentada olhando o mar.
Houve muita tristeza aqueles dias.
Evitei contar minha história
A qualquer pessoa,
Tinha medo de me mandarem
Pro sanatório da carioca,
Então eu mesmo me convenci
Que tudo fora um sonho,
Que nao tinha visto Navalha
Após a morte,
Que não tinha corrido com ela
Pro meio do mato,
Que não tinha levado a caixa
Pro fantasma na encruzilhada.
Os anos passaram,
Os anos não perdoam.
E eu nunca esqueci dela,
Toda vida o pensamento
Ficou nela.
Quando tinha por volta de
Quarenta anos houve um
Surto de doença da caixa do peito
E eu fui contaminado.
Eu fiquei doente do pulmão.
Era coisa muito difícil de curar.
Pra não contagiar o resto
Do morro eu me isolei lá
Na casa mais alta,
No barraco de Navalha.
A tosse era muito forte
E me arrancava sangue pela boca.
Estava fraco e não conseguia
Mais andar.
Porém uma noite alguém
Bateu na porta do barraco
E eu de supetão levantei,
Nem percebi que não estava
Mais fraco e nem tossindo.
Abri a porta e vi um homem
De pele preta bem escura
Com bigodinho aparado na regua
E vestindo paletó branco e
Chapéu Panamá.
— Pois não?
— É tu que é o Moreno?
— Sou eu sim senhor. E o senhor quem é?
— Eu sou Zé.
— Zé da onde meu senhor?
— Sou Zé Pelintra. Venha Moreno tem alguém lá querendo falar contigo.
Olhei por cima do ombro
daquele senhor e vi ela
Ao longe sentada na pedra,
Maria Navalha com os cabelos
esvoaçando ao vento.
Fiz menção de me virar,
Queria voltar ao quarto
E pegar meu chapeu antes
De ir, afinal ela era uma
senhora muito distinta
E não era boa educação
Aparecer sem chapeu,
Mas Zé Pelintra me segurou
Pelo braço.
— Não filho, não olhe la dentro. Deixe o que esta lá para o povo enterrar. Venha, agora você é um dos nossos, você vem com a gente.
Sai com ele pela porta
E quando dei por mim
Estava bem vestido,
Tinha minha camisa listrada
E um bom chapéu na cabeça.
Me acheguei a dona Navalha
E ela sorriu enquanto
Apertava minha mão.
— Eu entreguei a caixa dona Navalha, eu fiz o que a senhora mandou.
— Eu sei Moreno, e lhe agradeço muito. Agora vamos embora.
— Vamos pra onde?
— Malandro se arranja em qualquer lugar. Vamos caçar um canto pra fazer um pagode até o sol raiar...
Então nós tres descemos
o morro.
Durante a descida encontramos
Um bocado dos nossos,
Maria do Cais, Zé Pretinho,
Zé da Brilhantina, Zé de Légua,
Zé Pereira e outros.
No fim éramos muitos.
Fizemos nosso pagode aquela
Noite, e em todas as outras noites.
Ate os dia de hoje estamos por ai
Ao som do pandeiro, no samba
De roda, as vezes em praça,
As vezes em fundo de quintal,
As vezes no jongo e muitas
Vezes dentro de uns terreiros.
Felipe Caprini, Contos das Muitas Marias
Segunda Temporada — Conto 1
Espero que tenham gostado!
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