Talvez eu seja mesmo louca,
Já não sei.
Fazia cinco meses que estava
Internada naquele hospício.
Papai quando vinha
Me visitar dizia
"isto não é um hospício Eliza, é um convento"
"Creck!"me distraio.
"Creck..."
Talvez eu seja mesmo louca,
Já não sei.
Fazia cinco meses que estava
Internada naquele hospício.
Papai quando vinha
Me visitar dizia
"isto não é um hospício Eliza, é um convento"
E de fato o nome na placa
Na entrada era Convento de
São Bento Milagroso,
Mas só gente desiquilibrada era
Trancafiada lá.
Moças entregues ao pseudo
Amor das malditas freiras.
Mulheres velhas, secas,
E eu lhes digo que se essas
São as ditas "esposas de Cristo"
Não me admira nada ele
Não ter voltado.
Mas dentre essas malditas
Havia apenas uma que era
Gentil comigo, essa era a
Irmã Dulcenéia, uma freira
Jovem como eu e que também
era desprezada,
Era diferente, irreverente.
Só Dulcenéia acreditava em mim.
Toda vez que as freiras mais
Velhas viam irmã Dulcenéia
Falando comigo elas me
Olhavam feio e me mandavam
Voltar para o quarto.
Eu fui internada porque
Papai tinha medo de eu
Ir parar na fogueira,
Então me internou como louca.
Mas eu não era louca
Eu apenas tinha o dom de
Ver os espíritos dos mortos.
Sim eu os via, passavam
A esmo por todo canto,
Gente mal cheirosa,
De ar malacabado,
Espíritos desnorteados
Como mortos de fome
Ou vitimas de guerra.
Mas uma noite eu vi
Um espírito diferente.
Estava em meu quarto,
Que não era bem um quarto
e sim um cela com barras
De ferro na janela.
Era de noite e eu estava
Ali na janela observando
A movimentação dos escravos
De ganho indo embora
E o oficial da guarda
acendendo os lumieiros,
Então vi aquela mulher.
Eu sabia que era um espírito,
A gente que é médium
Sempre sabe o que vivo
E o que é morto.
Mas ela era diferente de todos
Os outros que ja tinha visto,
Andava pela rua com
movimentos suaves, como
Se deslizasse, usava um vestido
dourado que brilhava e tinha
Os cabelos negros caindo pelos
Costas. Era Belíssima.
Me grudei na janela para ver,
Cheguei a espremer a cabeça
Entre as barras de ferro.
E então a mulher parou no meio
Do caminho e graciosamente
olhou para mim.
O rosto era deslumbrante,
Era como uma estatua de Afrodite.
Quando aqueles olhos penetrantes
Encontraram os meus
Eu senti medo e sai da janela.
Sentada na minha cama pensava
"Que tipo de espírito era aquele?"
Pois ao contrário dos demais
Fantasmas obscuros,
Ela emanava luz.
Tomei um susto,
Movi a cabeça para o lado
lentamente e vi ali
Sentada na minha cama.
Era ainda mais bonita de perto,
Os lábios vermelhos
E os olhos verdes, escuros
De maquiagem negra.
Engoli em seco,
O maximo de palavras que
Um espírito ja havia trocado
Comigo foram rosnados ou
Coisas balbuciadas e
Lamentos sem nexo,
Então me assustei com a voz
Limpa e clara dela.
Ela me encarava fixamente
Me perscrutando.
De repente me vi conversando
com aquele espírito como se
Ela se fosse uma mulher viva.
Me sentei novamente e ela
Contou, disse que minha avó
Materna se chamava Maria Quitéria
E que tinha gerado minha mãe
Por um descuido com
Um cliente.
Este cliente era meu avô,
Que criou minha mãe
Como se fosse filha legítima.
A tal Dama da Noite
Desapareceu diante dos meus
olhos deixando a beirada
Da cama vazia,
então ouvi tres batidas
Na porta.
Respirei aliviada,
Era irmã Dulcenéia.
Ela destrancou a pesada porta
E entrou, como era madrugada
Ela trazia nas mãos uma vela
E vestia uma simples camisola
Branca de dormir.
Me senti mal, só podia
Ser um aviso do divino.
Ela saiu do quarto e eu
A segui, mas assim
Que cruzei a porta
Olhei em volta assustada
Pois de repente me vi em
Um saguão de um casarão
Abandonado, havia a
Nossa frente uma escadaria
forrada de carpete vermelho
E no topo dela a pintura
Retratando uma mulher moura
Muito bonita de vestes brancas.
Irmã Dulcenéia apanhou a
Medalha que trazia no colar
E começou a rezar:
Olhei para a porta da sala
E diante dela estava
Dama da Noite,
Radiante em beleza.
Corremos escada a cima,
Entramos por um extenso corredor
Até chegar em uma biblioteca,
Tudo estava empoeirado
E cheio de teias de aranha.
Estava assustada, confusa,
Então passei a procurar
Em cima de mesas e nas
Estantes tentando ler as
Lombadas dos livros sob
A fraca luz da lua que entrava
Pelas janelas de vitral.
Apanhei na estante o livro
Cujo a lombada tinha
Escrito em letras douradas
"Biblia Sacra"
Era pesado, muito mais pesado
Que um livro comum.
Tentei abrir o livro mas a capa
não se moveu.
Dama da noite se precipitou
Na minha direção,
Parecia se mover com
dificuldade e lentidão
Como se houvesse peso
em suas costas.
Desejei do fundo do
Meu coração que aquele
Livro se abrisse,
E então ele abriu.
O som de dobradiça enferrujada
Se movendo tomou conta
Dos meus ouvidos,
Olhei para aquilo que estava
Nas minhas mãos e o que
Vi não foi um livro,
Aquilo era uma caixa
De madeira.
Larguei no chão assustada
E de dentro da caixa
Saltou uma chave de prata
que tilintou pelo piso até
Chegar aos pés
Da irmã Dulcenéia.
Ela abaixou e apanhou
A chave com uma expressão
De extrema satisfação.
Ela começou a gargalhar,
E então sua aparência mudou,
A pele se tornou escura,
Era a pele de uma moura,
A camisola se transformou
Em um suntuoso vestido branco
Como o de uma noiva,
Havia uma coroa de flores
em sua cabeça e muitas jóias
Por todos os lados.
A mulher de branco
olhou para Dama da Noite
com as sobrancelhas
Seguidas.
Olhei para Dama da Noite.
Vi Dama da Noite cair
de joelhos ofegante.
A mulher de branco
Caminhou na minha direção
Com os olhos arregalados.
Olhei para cima e
Vi reluzir símbolos
Em vermelho, eram
Hieróglifos e estrelas,
Desenhos de cabeças de
Cabras e serpentes
engolindo a propria cauda.
Corri para fora da biblioteca,
Sentia o real sentido das
Intenções daquela
mulher de branco,
Então corri pelo corredor,
Ele pareceu muito mais longo
que antes, e ao olhar para tras
eu a vi, vinha girando,
Dançando pelo corredor,
Gargalhando.
Cheguei o topo da escada
Mas não pude descer,
Ela havia me alcançado
E me segurou firme
Pelo braço.
Então ela me empurrou,
O tranco foi tão forte que
Vi tudo girar.
Senti o primeiro impacto,
Minhas costas bantendo
Contra os degraus,
O segundo impacto,
Meu quadril batendo
Contra a quina de um deles,
E por fim... "Creck".
Fiquei em pé rapidamente
e olhei para cima,
mas a mulher ja não estava
mais lá.
Então olhei para baixo
e berrei de horror.
Encarei atonita meu corpo
na base da escada,
De bruços com
A cabeça virada para trás.
O som de "creck" que ouvi
Foi meu pescoço quebrando.
Eu estava ali em pé
Vendo meu cadaver no chão.
Eu que toda vida vi as almas,
Agora era uma delas.
Olhei para o lado e lá
Estava Dama da Noite
Com o rosto em uma
expressão de pura pena.
E ela me ajudou.
Me guiou pelos caminhos
Desconhecidos
E me manteve lúcida.
Por muitas vezes estive
A beira de me tornar
um fantasma desgarrado,
O medo das sombras do abismo
Tentaram se apoderar de mim,
Mas ela segurou minha mão.
Dama da Noite me ensinou tudo.
Me contou os segredos das cartas,
Das estrelas e das fases da lua.
Me transformou em alguem
Como ela,
Uma Bruxa,
Ou como dizem agora
"Uma Pombagira".
Dama da Noite
Me deu armas para lutar
e prosseguir.
Helena é a Dama da Noite original,
Ela é aquela que é dona
Deste sagrado nome.
Mas ela me tornou também
uma Dama da Noite.
Me tornou família.
Alguns chamam isso
De falange, e dizem
que sou falangeira.
O termo se adequa sim,
Eu no âmbito dos espíritos
ainda sou Eliza,
Mas nos terreiros eu sou
Dama da Noite.
Porém nenhuma nós falangeiras
É como a primeira,
Ninguém é como
a verdadeira Dama da Noite.
Naquela noite ela não pôde
me salvar,
Mas em muitas outras
ela me salvou.
Eu a amo e a respeito,
Eu sou dela.
A última vez que a vi foi
Ontem mesmo, já amanhecendo,
Após ter passado a noite
Incorporada em meu cavalo,
A festa acabou e eu ja ia indo
Embora, estava distraída
Ouvindo dentro de minha
Mente o costumeiro som
"Creck", coisa que me
Faz lembrar daquela noite.
Mas fiquei surpresa
quando na entrada
do terreiro a vi parada fumando
Um cigarro.
Era linda, os cabelos negros
Como petróleo caindo sobre
As costas nuas do vestido
Frente única.
Ela me olhou sorrindo
Com os olhos.
Nós duas demos risada
Do absurdo da coisa?
De mãos dadas
Fomos embora para
O lugar dos espíritos,
A morada das moças
como nós.
Mas a qualquer hora
Voltamos para cá,
Basta chamar.
Felipe Caprini, Contos das Muitas Marias
Segunda Temporada — Conto 2
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