domingo, 15 de maio de 2022

O som do fogo crepitando, Da Madeira em brasa estalando, Tudo aquilo era tão terrível Que eu garanto que não sei como sobrevivi. Seis meses antes os homens do Rei vieram Falar com Dona Rosa Vermelha.

 O som do fogo crepitando,
Da Madeira em brasa estalando,
Tudo aquilo era tão terrível
Que eu garanto que não sei como sobrevivi.
Seis meses antes os homens do Rei vieram
Falar com Dona Rosa Vermelha.


Nenhuma descrição de foto disponível.O som do fogo crepitando,
Da Madeira em brasa estalando,
Tudo aquilo era tão terrível
Que eu garanto que não sei como sobrevivi.
Seis meses antes os homens do Rei vieram
Falar com Dona Rosa Vermelha.
Sei bem pois eu, que era a mais jovem das moças
Da casa e uma das poucas letradas
A acompanhei durante o encontro com eles no salão.
Os homens eram da parte do
Administrador de São Paulo
Que queria o terreno do casarão
Para fazer a estrada que ligaria
A cidade deles com as minas de ouro no norte
E o porto no sul.
Rosa pensou muito, eles voltaram mais duas vezes
E no fim ela aceitou vender.
Confesso que não fiquei surpresa,
Rosa já tinha pra lá de oitenta anos,
Isso se já não tivesse seus noventa,
Até para descer as escadas ela precisava de ajuda.
Logo o contrato de venda foi lavrado
E o prazo para a desocupação do imóvel
Era de sessenta dias.
Uma a uma as moças foram indo,
A maioria implorando a Rosa
Que não fechasse a casa,
Que mesmo vendendo aquele imóvel
Comprasse outro e continuasse,
Mas ela foi irredutível em dizer não.
Então todas se foram
Mas não foram de mãos abanando,
Rosa deu a cada uma parte do dinheiro
Da venda da casa e sendo assim
Todas partiram satisfeitas.
Mas eu fiquei até o último dia
A pedido dela.
Foi então que aquela noite pavorosa aconteceu,
A última noite do Cabaré.
A lua chegou cheia, era sábado
De grande calor no mês de Janeiro.
Ela me pediu um favor,
Que eu fosse com ela até o quintal dos fundos
E que levasse uma pá.
Lá no meio do terreiro
Ela me pediu para cavar.
Sinceramente achei uma maluquice,
Mas Rosa estava pagando pela minha ajuda
Então fiz o que pediu.
Após alguns golpes na terra
Ouvi o som ouco de madeira,
Era sem dúvida um baú.
Rosa me observou sentada em
Uma cadeira velha ali perto
Enquanto eu desenterrava a caixa.
Quando ergui a arca ela falou
"Isso esta enterrado ai a quase sessenta anos."
Perguntei o que era aquilo e ela torceu os lábios
"Ah... O livro de uma bruxa, o livro de Maria Quitéria."
Olhei espantada para o baú
Então Rosa mandou levar para dentro,
Para o grande salão.
Coloquei o bau sobre o uma das mesas
E tentei abrir
Mas estava selado de um modo que não pude,
Então rosa veio caminhando lentamente
Com seus passinhos de anciã
E só de se aproximar o baú simplesmente abriu.
Ela foi até ele e retirou de dentro
Um livro desmantelado de capa de couro
Folheou e então ergueu o queixo e me encarou dizendo
"Luana, eu preciso que fique comigo até o máximo que puder. Coisas terríveis vão acontecer está noite, mas eu te peço, e peço por ter confiança, só me deixe quando for a hora certa."
Não entendi mas garanti que ficaria.
Meu erro, eu devia ter saído dali correndo
Mas como eu poderia imaginar?
Rosa apanhou um candelabro sobre uma das mesas
E posicionou o livro sobre a chama
Pronta para queimar,
Fechou os olhos e murmurou
Alguma reza que não compreendi
Mas assim que o primeiro fio de fumaça
Saiu da capa uma voz de mulher
Estrondou no salão
"Não se atreva!"
Rosa abriu os olhos imediatamente
E respondeu com a voz forte
"Eu me atrevo! Quitéria este ciclo acaba aqui, eu sou a última viva, todas ja se foram, só eu restei, e eu vou encerrar com isso aqui e agora."
A voz de Quitéria pareceu tão alta
Que fez a casa estremecer
"A Casa vai prosseguir, é a minha casa e vai durar para sempre!"
Rosa dessa vez gritou
"Não, não vai! Você fez de todas nós amaldicoadas! Vocês fez de todas nós Bruxas! Nós mantemos em segredo isso por toda a vida, mas agora que minhas irmãs estão mortas eu as vejo, eu as ouço! Maria Padilha não está em paz! Maria Mulambo não está em paz! Nem Figueira, nem Dama da Noite, nem Rosa Caveira, nem Sete Saias! Até sobre Farrapo e Menina tu lançou suas garras! Todas bruxas nascidas na barra da tua saia! Mas eu serei a última! Nenhuma mulher há de entrar nesta casa nunca mais, não, nunca mais alguma pobre alma vai ouvir os seus sussurros! Acaba aqui!"
Então rosa abaixou o livro até a chama da vela
Mas antes que pegasse fogo
Uma mulher saiu das sombras, era alta e magra
Usava um vestido roxo, linda como uma rainha,
E correu como se flutuasse ate Rosa Vermelha,
Agarrou os pulsos dela a impedindo de atear fogo ao livro.
Me encostei em uma das paredes e me encolhi de horror,
Era ela, a bruxa Morta Maria Quitéria!
Aquilo era impossível! Quer dizer,
Eu ja tinha ouvido lendas sobre fantasmas
Mas não tinha acreditado até ver com meus próprios olhos.
Quitéria forçava os braços idosos de Rosa Vermelha
Até que a fez derrubar a vela e o livro,
Mas logo a situação piorou
Pois outra voz ecoou no salão
"Solte ela! Não toque nela!"
E quando me virei, logo atrás de mim
estava ela, a mulher que tantas vezes
Admirei na pintura pendurada no salão,
era Maria Padilha, a segunda dona do Cabaré,
Morta a mais de vinte anos.
Ela era deslumbrante
E se encaminhou até Quitéria
Que logo soltou os pulsos da Rosa
E foi peitar a recém chegada.
"Ousa me enfrentar? Maldita! Depois de tudo ainda crê que é galo de briga? Então vamos lá, uma contra a outra."
Antes que Padilha pudesse responder
Outra voz falou, uma voz fina
"Ela não está sozinha."
Era uma linda adolescente usando um vestido rosado
Que estava em pé no alto da escada.
Quitéria argueu a cabeça e preguejou
"Menina dos infernos, volte para o buraco sujo que te enterraram, isso não é da sua conta."
Outra voz ecoou vinda de cima do pequeno palco
"É da conta dela sim, é assunto de todas nós."
Era aquela mulher de vestido Flamenco, Sete Saias.
Nisso o salão teve aparições de todos os espíritos,
Todas as nove estavam presente.
Uma mulher negra de feitio majestoso
Se aproximou de Quitéria, era a tal Mulambo
"Quitéria pare com isso, já não valhe a pena ficar aqui."
Ela olhou para Mulambo com tristeza
"Mas se eu não puder habitar minha casa... Para onde vou? Sabe que o espírito das feiticeiras não se eleva nem se afunda, permanecemos nesta terra."
Mulambo sorriu gentilmente
"É você não vê? Há muito o que se fazer ainda nesta terra, pessoas que precisam de nos do outro lado dessas paredes, que precisarão de nós através dos séculos."
Quitéria olhou para Mulambo, depois
Para a idosa Rosa Vermelha e suspirou pesadamente
"Eu não... Ah pelos Deuses... Acha que consegue fazer isso?"
Rosa Vermelha apanhou o livro no chão
E respondeu com firmeza
"Eu posso não ser a mais velha, a melhor feiticeira ou a mais rica, mas eu sempre fui a mais forte desta casa."
Todas as nove murmuraram em concordância,
Então Rosa apanhou outra vela em um candelabro perto
E ergueu novamenteo livro sobre a chama
E então os espíritos das moças se aproximaram
Ficando em círculo em torno dela
Que começou a atear fogo a capa do livro.
Rosa olhou para o espírito da que estava diante dela,
Uma mulher cujo metade do rosto era crânio exposto
"Rosa Caveira, minha amiga, já é hora de por o pé na estrada, já é hora de partir, que a encruzilhada seja sua casa!
O espírito de Rosa Caveira tremeluziou
E assim que a capa do livro pegou fogo
Chamas apareceram no topo da escada
E lamberam corrimão abaixo, era um incêndio.
Rosa Vermelja continuou, olhou agora para aquela
Adolescente com ar de miss
"Menina, cara de anjo e coração de serpente, já é hora de abandonar laços e fitas, a encruzilhada é o teu lugar!"
O espírito de menina reluziu e então
As portas do corredor do andar de cima
Se abriram todas de uma só só vez
E os quartos se encheram de fogo.
Rosa Vermelha olhou para Farrapo
"Maria Farrapo, é hora de fazer suas zoadas em outro canto, a encruzilhada te guiará!"
O espírito de farrapo tremeluziu
A várias páginas do livro pegaram fogo
Seguido de chamas se espalhando pelo teto do salão.
Rosa falou alto olhando para a próxima
"Sete Saias, é hora de girar sua saia em outras freguesias! A encruzilhada te dará o rumo!
O espírito de Sete Saias tremeluziu
E as cortinas por de trás do palco arderam em chamas.
Eu sabia que tinha de sair dali, mas minhas pernas
Não obedeceram, fiquei paralizada onde estava
Vendo o desenrolar da cena.
Rosa Vermelha continuou
"Dama da Noite, existe muito ouro e prata a sua espera nas casas que já vem. A encruzilhada é tua morada, vá!"
Parte do salão se banhou em chamar imediatamente
E o livro teve mais páginas queimadas.
"Maria Mulambo eu te digo, serás grande entre as mulheres! A encruzilhada é sua espada, lute!"
O livro foi quase todo tomado por chamas
E uma bola de fogo foi cuspida
Da porta da cozinha em direção ao salão
Revelando que lá já ardia.
Rosa prosseguiu Valente mas eu vi
Sangue vazando de suas narinas.
" Figueira, a vencedora! Em verdade vos digo que ainda hoje estaremos soltas no mundo. A encruzilhada é a sua casa agora!"
O espírito de Figueira também tremeluziu
E todas as mesas a minha volta se tornaram
Como que fornalhas.
O calor do fogo mesmo a alguns metros
Queimava minha pele.
"Maria Padilha, senhora das Almas! Rainha do coração de muitas! A encruzilhada agora é seu reino!"
O espírito de Maria Padilha reluziu
E a casa inteira estalou como se agora o fogo
Corresse por dentro das paredes.
O livro agora era quase uma bola de fogo
Na mão de Rosa Vermelha
Mas ela prosseguiu
"Maria Quitéria, Feiticeira das agulhas! A encruzilhada é teu enredo, abandone esta casa e vá costurar almas!"
O assoalho do salão foi empurrado para cima
E várias labaredas sairam por entre as frestas das taboas,
Aquilo era fogo no porão com certeza.
O libro era agora uma bola de fogo.
Foi então que Rosa Vermelha caiu ajoelhada
E cuspiu um punhado de sangue pela boca.
Todas as moças juntas deram um passo a frente
Naquele círculo e apontaram o dedo indicador
Para rosa Vermelha,
E em um coral de muitas vozes disseram
"Rosa Vermelha, braço de ferro, nós vamos, e se nós vamos, tu que é uma de nós vem também. A encruzilhada te espera."
O corpo idoso de Rosa Vermelha tombou
Flácido no chão
E sobre ela pairou a figura de uma mulher
Lindíssima, era o espírito de Rosa Vermelha
Que se mostrava no esplendor da juventude.
Ela rapidamente se virou e olhou para mim.
"Luana arraste meu corpo para fora, por favor me sepulte. Saia rapido."
Eu tremia dos pés a cabeça
Mas caminhei entre as chamas
Que por incrível que pareça
Não me fustigaram.
Elas era todas assombrosas,
Meio transparentes, quase que labaredas.
Engoli seco e puxei o cadáver de Rosa Vermelha
Pelas axilas, fui arrastando,
A porta se abriu sozinha e assim eu a puxei para fora,
Na varanda peguei o corpo no colo e fui até o meio da rua
Então me virei e elas estavam lá
Vi as silhuetas delas através do fogo.
Eram as dez primeiras de muitas outras que ainda iriam vir.
A porta do Cabare fechou
E o casarão em chamas veio abaixo,
Desmoronou em uma explosão de fogo vermelho.
Fiquei ali na rua chamuscada de fuligem
Sem reação.
Coloquei o corpo dela no chão
E observei a coluna de fumaça que se erguia
Até as nuvens soltar pequenas brasas vermelhas.
Tive medo que me queimassem, aquelas brasas
Iam chover sobre mim e sobre tudo em volta,
Mas quando caíram fiquei chocada,
Estendi uma mão para frente e apanhei
Uma delas bem na palma.
Não eram brasas, eram pétalas de rosa, de Rosa Vermelha.
Como podia ser aquilo?
Eu não sei.
Só sei que eu contei para as outras moças
O que tinha presenciado,
Logo no enterro de dona Rosa eu
Já comecei a narrar tudo,
E para a minha eterna surpresa
Nenhuma das minhas companheiras duvidou.
O povo do Rei veio e limpou o terreno do Cabaré,
Do Antigo casarão não sobrou nada.
Todos dias eu passava ali para ver a estrada sendo
Pavimentada com paralelepípedos,
E no fim quando ficou pronta eu entendi.
Ali no exato lugar onde um dia havia existido o cabaré
Não havia uma estrada, haviam duas,
Era o encontro de duas, era uma encruzilhada.
Os anos passaram e eu envelheci,
O tempo não perdoa.
Um dia passava a noite ali por aquela rua
Quando vi uma vela Vermelha acesa
Bem na calçada diante da encruzilhada,
Ao lado meia dúzia de meninas depositavam flores,
Uma garrafa de vinhos e uma carteira de cigarros.
Achei muito curioso mas nada perguntei,
Segui meu rumo mas então eu senti o cheiro,
Aquela aroma inconfundível de perfume.
Olhei para trás e lá estava ela, as meninas não a viam
Mas eu vi, Rosa Vermelha no meio da encruzilhada.
Ela caminhou até se aproximar
E então disse
"Não somos só uma boa história Luana, nós ainda existimos. Você ainda ouvirá falar de nós."
Sorri para ela e me virei para partir
Mas entao ouvi a gargalhada,
E não era gargalhada de fantasma,
Aquilo era voz de gente.
Olhei para atrás e vi cinco daquelas meninas
Ajoelhada diante de uma,
E esta uma com as mãos na cintura gargalhava
E sacodia levemente os ombros.
então ouvi as meninas a saudarem dizendo em coro
"Salve! Salve Rosa Vermelha!"
E Rosa Vermelha através daquele moça
Responder "boa noite..."
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"Contos das muitas Marias", Felipe Caprini.
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Espero que tenham gostado
Este foi o ultimo capitulo desta serie.
Quem quiser encomendar desenhos pode me chamar no whatsapp 11944833724
Muito obrigado