Eu vi ela morrer.
Ali a alguns passos de mim
Mas não fiz nada.
Por décadas fui contrariada
Por sentimentos que hora me
Acusavam de covardia e hora
Me dizem que assim foi certo.
Eu vi ela morrer.
Ali a alguns passos de mimMas não fiz nada.
Por décadas fui contrariada
Por sentimentos que hora me
Acusavam de covardia e hora
Me dizem que assim foi certo.
Maria Quiteria foi a numero um,
Ela que comprou aquele casarão
E fez ali o cabaré.
Era portanto a dona e chefe
De todas as moças.
Eramos todas muito novas
Porém uma ou outra
Ja se destacavam.
Maria Padilha era a que mais brilhava,
Tinha dezoito anos apenas,
Deslumbrante e sedutora.
Me Lembro daquela noite
Como se fosse hoje,
Quitéria em pé perto do bar
Com a vista atenta sobre as moças
Que entretiam os homens
Sentados nas mesas do salão.
Eu fui até ela informar que
Ana ia subir para o quarto
Com um cliente
Mas ela não me ouviu,
Repeti e ainda assim ela ficou imóvel.
Olhei para seu rosto e ela estava
Com os olhos arregalados e as sobrancelhas
Erguidas, o maxilar trincado
Em uma expressão de fúria.
Segui seu olhar, caia direto sobre
Um homem alto e louro
Que aparentava aproximadamente
Quarenta e poucos anos e que tinha
Padilha sentada no colo
Rindo de algo que ela dizia.
Quitéria me ignorou completamente
E com muita pressa subiu as escadas,
Ouvi o baque da porta
Quando ela se trancou no quarto.
Isso se repetiu todas as vezes
Que aquele homem veio até o cabare.
Uma manhã eu estava passando
Pelo corredor e ouvi vozes exaltadas
Vindo do quarto de Quitéria.
Me aproximei da porta e ouvi
Ela falanda gritando
"Aquele porco alemão! Ele foi a causa da minha desgraça! Você vai fazer o que eu mandei!"
Padilha estava lá, a ouvi responder
Com a voz cheia de medo
"Eu sei, eu sei que foi ele que te fez cair na vida, mas eu não sou uma assassina, eu não posso matar um homem."
Quitéria gargalhou ácida
"Não é uma Assasina? Vai se apegar a moral agora?"
"Tudo tem Limite Quitéria!"
Ouvi um estalo forte,
Me aproximei mais e pela fresta
Da porta entreaberta vi Padilha
Protegendo o rosto.
Era o que eu pensava,
Quitéria a havia esbofeteado.
"Quem define os limites sou eu! Sua vadiazinha ingrata... depois de tudo que fiz por você... te tirei da rua, te dei um teto, ja se olhou no espelho? Enfiada nesses vestidos de seda feito uma princesinha... Eu fiz de você quem você é, eu te criei e posso te destruir se quiser. Preste bem atenção, só existe duas opções, ou você é minha aliada ou minha inimiga. O que vai querer? Quer me desafiar?"
"Não é questão de desafiar, você está exigindo o impossível".
Quitéria se virou nervosa
Fazendo a saia rodar.
"Ou é pela suas mãos que ele morre, ou é você que morre pelas minhas, fui clara?"
Vi Padilha mover a cabeça lentamente
Anuindo com os olhos assustados
Então Quitéria foi até a penteadeira
E pegou um pequeno vidro cheio
De pó branco e estendeu ele para Padilha
Que o apanhou e escondeu
No decote do vestido.
Quitéria riu
"Você sabe o que fazer."
Na ponta dos pés corri para trás
Da cortina de uma das janelas
A tempo de me esconder
Quando Padilha saiu do quarto
Visivelmente abalada.
Poucos dias depois q cidade estava
Em polvorosa pois um rico homem
Chamado Alexsandro Goutha
Havia sido encontrado morto
Em sua casa.
Não haviam sinais de violência,
O delegado constatou que havia sido
Mal subito
Mas eu sabia a causa da morte, veneno.
Os Anos passaram
O cabaré prosperou muito
Mas Dona Quitéria já começando
A envelhecer não estava bem.
Não existiam mais clientes para ela,
Nenhum homem queria ir para o quarto
Com uma mulher que tinha idade
Para ser sua mão até mesmo sua avó.
Diversas vezes eu a vi se mirando
No espelho com ar de tristeza, de derrota
Ao examinar as marcas de expressão
Que surgiam por todo lado.
Ela sempre foi boa conosco,
Tirando os dias de mal humor
Onde era uma verdadeira megera
Ela geralmente cuidava de nós
E era honesta com os ganhos.
Certa vez na cozinha quando
Eu sovava a massa de pão
Para o café da manhã do dia seguinte
Ela veio me ajudar.
Enquanto eu abria a massa sobre a mesa
Ela salpicava sal para penetrar aos poucos.
Foi a primeira e única vez que conversamos
De verdade, como se fossemos amigas.
Ela me contou que veio da França
Fugida por conta da tal inquisição.
Então ficou parada olhando para fogão a lenha
Para a chama que crepitava esquentando o forno
Com ar de terror como se o fogo
Tivesse feito a ela alguma desfeita.
"Dona Quitéria? A senhora esta bem?"
"Sabe Serafina, minha mãe foi queimada na fogueira."
"Na França?" Eu perguntei.
"Sim. Aqui eu ouço as vezes o povo comentando sobre isso, fazem até piadas sobre a estaca de fogo. Mas eu vi, era só uma menina mas vi eles amarrem minha mãe e minha tia na pilastra de pedra no meio da vila em que morávamos, forrar Madeira e palha nos pés delas e acender o fogo. Não tenho palavras pra descrever o horror que foi, os gritos... e principalmente o cheiro... o cheiro igual ao que sai do forno quando o assado passa do ponto, mas era a carne da minha mãe que queimava, a gordura do corpo derreteu e escorreu como manteiga... "
Quando ela percebeu que havia
Falado mais do que devia
Se calou e continuou a me ajudar
Sem dizer mais nada.
Eu sabia porque daquele olhar de medo,
Outro dia quando todas as moças haviam saído
Para ir encomendar vestidos na modista
eu voltei para o cabaré pois havia
Esquecido minha bolsa de dinheiro,
E foi então que eu ao passar pela cozinha
Ouvi aquela voz trêmula que vinha do porão.
O porão estava sempre trancado,
Mas a Porta estava aberta naquela hora.
Abri devagar e desci a escada,
Ah meu mal era ser bisbilhoteira, sei disso.
Vi ela lá, nua diante de uma estátua de madeira
Lendo em voz alta coisas
Daquele livro amarelado
Cheio de simbolos estranhos,
Falava em uma lingua que
Eu nunca tinha ouvido antes.
Quitéria era uma bruxa.
Eu nunca disse nada para ninguém,
Se ela fosse pra fogueira
Com certeza todas as moças da casa
Iriam junto.
Então veio a bomba,
Uma Mulher foi queimada na fogueira
Na Praça da cidade a menos de um quilômetro
Do Cabaré.
A pobre foi acusada pelo marido
De ter enfeitiçada suas partes íntimas...
Ah coisa de homem, por a culpa na mulher
Por ter se tornado brocha.
Mas Quitéria ficou muito assustada,
Ela achou que no Brasil isso jamais aconteceria,
Mas logo as notícias de mulheres
Queimadas em São Paulo
Se tornaram populares.
Quitéria parou de se expor,
Mal saia a rua e toda vez
Que alguém batia a Porta
Ela se tremia inteira.
Lembro que uma tarde
Ela pegou uma pá e foi para o terreiro
Nos fundos do casarão,
Observamos espiando pelas janelas
Ela com muita dificuldade cavar a terra
E enterrar as estátuas e o livro
Como se quisesse se livrar das provas.
Uma noite ela nos reuniu no salão
E informou que havia decidido
Fechar o cabaré, iria vender o casarão.
Disse que estava velha demais
Para ficar naquela vida,
Que queria se mudar para
Algum lugar calmo e ter paz.
Eu sabia que na verdade ela tinha medo.
Nós ficamos estarrecidas,
Não tínhamos para onde ir,
Ela ia nos atirar na sarjeta e ir fugir.
Todas protestamos
Gritamos e esperneamos
Mas Padilha fez o oposto,
Com um ar de quem compreendia
Deu dois passos para frente
E apertou as mãos de Quitéria sorrindo,
Deu a ideia de fazer uma festa de despedida
Para selar o fim do Cabaré
Em grande estilo.
Todas olhamos para Padilha incredulas
Mas ela não deu importância.
Quitéria achou uma ótima idéia.
Organizamos a festa então,
Todas em clima de tristeza.
A festa foi desanimada,
Não abrimos o cabaré,
Foi um momento só nosso.
No meio do festejo
Padilha trouxe uma bandeja cheia
De taças de vinho
A maioria de cristal
Mas uma era de reluzente prata,
A taça de Quitéria.
Quitéria sorriu e bebeu
Tudo em um gole só como costumava fazer
Para não arder a língua.
O pernil foi servido,
Nós sentamos todas juntas
Na mesa da cozinha
Que era grande para todas sentarem
E Quitéria na cabeceira
Sorria para nós.
Não demoro muito ela
Engasgou, começou a tossir,
O rosto avermelhando.
Pediu água para Dama da Noite
Mas ela despejou o conteúdo da jarra
De água dentro da boca do fogão.
Quitéria olhou para ela
Com ar de aterradora compreensão.
"Ve... Veneno? Colocaram veneno no meu vinho?"
Ela se levantou cambaleando
E foi para o salão
Derrubando cadeiras e esbarrando nas mesas
Enquanto passava, quando chegou
Na beira da escada
Rosa Caveira entrou na frente
A impedindo de subir.
"Saia da minha frente! O antídoto está no meu quarto!"
"Eu sei." Rosa Caveira disse sem sair do lugar.
Quitéria tentou passar por ela
Mas rosa vermelha e pegou pela cintura
E a arrastou para o meio do salão.
Todas nós formamos um círculo
Em torno dela, caiu de joelhos,
Tossia muito, a garganta estava fechando.
Padilha foi a que se aproximou,
Quitéria puxou um punhal de dentro
Do espartilho mas Sete Saias
Correu e com um tapa a desarmou.
Padilha começou a falar
"Nenhuma de nós vai a lugar nenhum, essa é nossa casa."
"A casa é minha!"
Quitéria respondeu socando o próprio peito
Com profundo ódio.
"Não é mais." Padilha disse séria.
"Eu construí isso, eu... eu sou a dona!"
Quiteria falou chorosa.
"Você Madame ganhou rios de dinheiro conosco e agora só porque tem medo de ir parar no fogo, e sim eu sei o que tu faz no porão, vai nós atirar no meio da rua como se não fossemos nada. Com a mesma frieza que você quis nos mandar pra rua da amargura eu estou te mandando pra sepultura."
Padilha atirou no chão na frente de Quitéria
O vidrinho cheio de pó branco
Sorrindo e disse mais
"Lembra? Só existe duas opções, ou você é minha aliada ou minha inimiga."
Quitéria ergueu a cabeça
E olhou para ela
Estava furiosa, os olhos fogueando
De tão vermelhos.
"Ninguém? Ninguém vai me ajudar?"
Quitéria perguntou entre violentas tosses
Olhando pausadamente para cada uma de nós.
Rosa Vermelha se adiantou e falou
"Vaca velha se esquece que um dia foi Bezerra não é? Nós somos jovens e temos de nos proteger Quitéria."
Quitéria berrou furiosa entre tosses e perdigotos
Vermelhos de sangue
"Se proteger? Se proteger pra vocês é morder a mão de quem as alimentou?! Andem! Subam no meu quarto e peguem o antídoto!"
Uma a uma nos viramos o rosto
Em uma clara negativa.
Quitéria torceu os lábios
Em uma careta monstruosa
Tornado suas feições delicadas
Em uma carranca assustadora.
E então um vento frio soprou no salão,
As janela de toda a casa abriram
Batendo com estrondo.
Quitéria ergueu a mão com o dedo
Apontado para Maria Padilha
E falou com a voz absolutamente clara
Berrou tão alto que os lustres tremeram
Com o impacto da voz
"Eu a Amaldiçoo! Eu as Amaldiçoo! Cada uma! Morte! Desgraça! Amaldiçoo, a natureza as vai rejeitar! As vai repudiar! Se existe Diabo no Inferno que ele seja minha testemunha nesta hora! Que o Diabo seja minha testemunha nesta hora! Ouçam bem! Ouçam! Ouçam! Que me escutem os deuses da discórdia! Que me endossem os Deuses da Vingança! Que gravem em pedra a minha maldição! O destino dos malditos é a eterna encruzilhada! Nem céu nem inferno, é aqui no meio do caminho que hão de ficar!
E após dizer isso engatou a rir
Desordenadamente como se estivesse
Completamente louca,
Jogou a cabeça para trás e gargalhou
Por um bom tempo,
Eu e as moças trocávamos olhares
Amedrontada com a cena.
No fim ela abriu a boca o maximo que
É possível escancarar um maxilar
E soltou um grito agudo
Enquanto seus olhos reviraram,
Eu cobri meus ouvidos com as mãos
E me encolhi diante do som aterrador.
Então ela caiu com um baque surdo no assoalho,
Morta.
Mulambo abraçou a si mesma
E falou com a voz trêmula
"O que nós fizemos..."
E Padilha bateu o pé no chão
E respondeu "Fizemos o necessário."
Figueira e Rosa Vermelha
Enrolaram o corpo em uma manta,
A cova ja estava cavada
No meio da mata, em uma clareira.
Quando o ultimo punhado de terra
Foi atirado sobre ela
Nós acreditamos que o assunto
Estava encerrado.
Mas não estava.
Ela nos perseguiu,a todas nós
De um modo que não me atrevo
A descrever.
Nenhuma reza ou amuleto
Pode nos proteger da fúria daquela Mulher
E eu atesto isto como verdade
E um dia saberão que sim.
Padilha se tornou a dona da casa
E todas as outras escolheram
Seus próprios caminhos.
Mas todas nós vivemos assoladas
Pela sombra daquela bruxa
Até o fim dos nossos dias.
Quando o casa ficava escura
O vulto andava estalando o assoalho.
No reflexo dos espelhos
Das taças e das garrafas.
Nos cômodos vazios
E principalmente no porão.
Eu não me envergonho de dizer
Que por mais de uma vez
Rezei agarrada a meu terço
Quando sentia a presença
Dentro do meu quarto.
E no fim, quando a vida nos abandonou
E atravessamos para o outro lado
Tivemos de lidar com ela face a face.
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"Contos das muitas Marias", Felipe Caprini.
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Espero que tenham gostado, quem quiser encomendar desenhos pode me chamar no whatsapp 11944833724
Muito obrigado