Eu passava a piteira dourada
Entre meus dedos,
Senti uma enorme vontade de rir
Quando bati no canutilho com a ponta da unha
E o som revelou ser alumínio.
Aquela velha mentirosa disse toda a vida
Que era de ouro...
Eu passava a piteira dourada
Entre meus dedos,Senti uma enorme vontade de rir
Quando bati no canutilho com a ponta da unha
E o som revelou ser alumínio.
Aquela velha mentirosa disse toda a vida
Que era de ouro...
Ela não morreu de uma vez só
Morreu aos poucos.
Quando a conheci eu ainda era menina,
Fui contratada para a lida na cozinha.
Dona Rosa essa época ja era velha,
Podre de rica
Odiada por toda a cidade.
Lhe pintavam como uma bruxa,
Uma megera imunda.
Odiada porque era mulher
E não aceitava ser mandada por homem.
Odiada por nunca abaixar cabeça.
Odiada por ter dinheiro o suficiente
Para borrar seu passado de mulher dama
E forçar a igreja a fazer vista grossa.
Era bela, altiva, classuda.
Quando pegamos mais intimidade
Ela me contou historias de seu passado,
De muitos amores mas também
De muitos dissabores,
De um tempo de cabarés e sortilégios.
Me lembro de estar ao tanque esfregando as roupas
E ela ali do meu lado já um pouco encurvada
Balançando suavemente na rede no Jardim
Tecendo os contos da mocidade.
Se esperava que estivesse de xale
E fazendo tricô, mas não,
Ela mesmo velha ficava enfiada
Em nobres vestidos de seda púrpura
Cheia de joias
Sempre com o cigarro em uma mão
E o whisky ou qualquer coisa inflamável na outra.
Conheci uma de suas amigas,
Uma de mesmo nome mas que sempre usava
Uma Rosa Vermelha nos cabelos,
Haviam distintos senhores que vinham visitar também
Mas um dia as visitas cessaram.
Tomei coragem a perguntei a ela
Numa noite quando eu escovava
Seus cabelos brancos
E ela muito triste revelou que
Eles ja tinham partido, mortos,
Uns pela idade, mas a maioria por outros males.
O rosto ficava cada vez mais encovado e pálido
Os cabelos finos iam rariando,
A idade avançava sem piedade.
Certa noite acordei assustada com ruídos no casarão
E ao subir as escadas a encontrei rindo
Sentada no parapeito de pedra
Com os cabelos esvoaçando
Falando com o vento como se ele pudesse responder,
E ela dizia nomes de muitas Rosas e muitas Marias
Pelintras e Joãos, e ria para eles
Ou talvez com eles,
E quando se virou e me percebeu ali
Riu e disse que falava com seus companheiros
Que a aguardavam do outro lado da porta.
"Que porta minha senhora?"
Mas ela não respondeu, apenas riu.
Foi então que as febres começaram,
Noites onde ela delirava na cama
Ardendo enquanto eu tentava de tudo
Para abaixar a temperatura,
Delirava e gemia por dias
Se alimentando apenas de mingau
E quando repentinamente melhorava
Exigia bebida e fumo
Sem se preocupar com a saúde.
Uma noite a febre atingiu seu ápice
E enquanto eu segurava as mãos pálidas e ossudas
Senti os dedos afrouxarem
E a mão cair inerte na cama.
Ela respirava devagar com os olhos vagos
Mas então fixou o olhar em um ponto
Acima da minha cabeça e sorriu.
Meu corpo se retesou em um arrepio
E ao me virar vi o homem alto
Vestindo um paletó preto com uma cartola de cetim
E ao fitar seu arrepiante rosto de osso
Gemi e cai da cadeira desesperada.
"Dona Rosa! Dona Rosa o que é isso?"
Mas quando a fitei na cama ela estava imóvel
Com os olhos opacos fitando o nada.
O homem se aproximou
E eu me encolhi contra a parede
E observei ele estender a mão enluvada
Para o corpo imóvel de dona Rosa,
Mas não foi a mão velha e pálida
Que segurou a dele
E sim uma mão firme e jovem.
A mulher que se ergueu da cama
Não tinha mais de vinte e cinco anos
Com cabelos castanho avermelhados.
Ela se virou para mim
E eu contemplei seu rosto
Meio carne meio osso
E nas feições de carne reconheci dona Rosa.
O homem a guiou para fora do quarto
E no corredor ouvi muitas vozes.
A curiosidade foi maior que o medo,
Me ergui e os segui,
O corredor estava iluminado
E haviam muitas pessoas lá,
As mulheres em vestidos de saia armada
E os homens em ternos e bengalas,
A jovem dona Rosa foi cumprimentada
Por todos e eu ouvi novamente
Os nomes que ela tanto repetia
Em suas memórias, sonhos e delírios
Maria Padilha, Maria Quitéria, Tranca Ruas,
Rosa Vermelha, Maria Navalha e tantas mais...
Ela bailou com uma debutante
Diante daquela gente
E eu vi no rosto de cada um o carinho
Que apenas velhos amigos tem.
Dona Rosa partiu pelo corredor de braços dados
Com aquele homem de puro osso
E foi seguida por toda aquela gente
Escada abaixo.
Eu os segui mas quando cheguei no topo da escada
Não vi nada além da sala vazia e escura.
Voltei para o quarto e
Fechei os olhos do corpo da morta
Que me aguardava frio sobre a cama.
Então me sentei ali ao lado dela
E sorri enquanto alcançava a piteria
Em cima do cinzeiro no criado mudo
E a passava entre meus dedos,
No dia seguinte os parentes distantes vieram e devoraram
Todos os pertences dela
E rapidamente me enxotaram
Com medo de meu nome estar no testamento.
Quando fui ao meu quartinho fazer as malas
Achei entre os lençóis no guarda-roupa
Um envelope gordo cheio de notas altas,
O pagamento equivalente a quase um século de salários
E junto uma pequena Folha onde com letra galante
Se lia "da sua amiga Rosa Caveira".
Fui ao sepultamento
E na saida do cemitério me lembrei de algo
Estaquei o passo assim que pisei na calçada
Pois minha mente buscou na memória
A lembrança de minha velha amiga cantando
Uma antiga cantiga
"Quando passar na porta do cemitério, moço
Ô não se esqueça de olhar pra trás
Quando passar na porta do cemitério, moço
Ô não se esqueça de olhar pra trás
Vocês vão ver uma moça vestida de preto, moço
Ela é Maria Mariá..."
E assim fiz, olhei por cima do ombro
E lá diante do portão de ferro
Não vi uma "Maria Mariá vestida de Preto"
Mas vi nitidamente uma Rosa Caveira vestida de roxo
Que sorriu com sua meia face desapareceu
Em um piscar de olhos.
A vida andou e hoje quem está velha sou eu
E agora aqui deitada em meu leito de morte
Já ouço a voz dela e sinto o cheiro de seu perfume
Ansiosa por esta derradeira visita.
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"Contos das muitas Marias", Felipe Caprini.
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Espero que tenham gostado, quem quiser encomendar desenhos pode me chamar no whatsapp 11944833724
Muito obrigado