Era uma senhora já de muita idade, Seu nome era Maria da Paz Mas para todos que perguntavam Ela sorria com a boca quase sem dentes E diz "Eu sou Paizinha..."
Era uma senhora já de muita idade,
Seu nome era Maria da Paz
Mas para todos que perguntavam
Ela sorria com a boca quase sem dentes
E diz "Eu sou Paizinha..."
Era uma senhora já de muita idade, Seu nome era Maria da PazMas para todos que perguntavamEla sorria com a boca quase sem dentesE diz "Eu sou Paizinha...".Paizinha...Vivia sozinha em um barraco minúsculoAqui na zona norte de São PauloEm uma favela perto de casa.Eu a conheci em uma festa de Cosme e Damião,Ela gostava de ir nos terreirosE eu sempre esbarrava com ela.Neste dia meu acompanhante teveDe sair mais cedoE eu acabei sozinho na festaE do meu lado estava sentada dona Paizinha.
— Festa bonita não é?Ela quis puxar assuntoE eu falador como sou dei cordaE nós dois papeamos por horas.No fim da festa ela se foiE a mãe de Santo da casa, dona CarmemVeio até mim e contou
— Sabe ela? Ela foi uma grande mãe de Santo nos anos 70, tinha um terreiro muito famoso, até celebridade frequentava, ficava lá pros lados de Jaçanã quando aquilo era um lugar esmo. Coitada, hoje não tem ninguém.Fiquei muito curiosoPois como era possívelQue uma Mãe de Santo tão ilustreAcabasse a vida daquele jeito?Sozinha em um barraco de chãoDe terra batida.Umas semanas depoisNo Akará de Iyansa eu a encontrei novamenteDona Paizinha sentada em uma cadeiraLa no canto do terreiroCantando e aplaudindoCom feitio de encanto.Eu fui até lá e sentei com ela.
— Dona Paizinha eu fiquei sabendo que a senhora é Mãe de Santo.
— Eu? Eu não meu filho, um dia eu fui sim, eu fui... Mas eu não sou mais nada não...
— Não é? Porque?
— Ah...Foi Marabô, é... Marabô me tirou tudo.Eu quis saber mais mas naquele diaEla não quis contar mais nada.Eu sou muito curiosoEntão fui até seu Leopoldo,Uma velho batuqueiros do terreiroQue estava lá desde a época da fundaçãoE perguntei sobre Paizinha.
— Ah... ela era Mãe Paizinha, era muito cheia a casa dela sabe.
— Sei... mas como ela acabou assim?
— Ah meu filho sabe esse povo todo que se diz Pai de Santo? A maioria não é nada, na verdade é um ou outro que tem o dom. Paizinha era Mãe de Santo de verdade, tinha o Exu mais bonito que eu ja vi nessa vida.
— Era Marabô?
— Era sim, Exu Marabô... Paizinha era casada, o marido era serralheiro sabe, ele não gostava de macumba mas conforme a fama de Paizinha ia crescendo a ganância dele crescia junto, ele gostava do dinheiro. Marabô você sabe, todo mundo que ja ouviu esse nome sabe que é entidade de lei, é muito poderoso e muito regulado as suas maneiras, então tinha dia que ia gente na casa de Paizinha pra ver Marabô mas ele não descia, deixava o povo lá esperando e não vinha de jeito nenhum, ele só rodava na cabeça de Paizinha quando era necessário e não por besteira. Mas um dia aqueles italianos donos da fábrica de tinta, os Matarazzo sabe? A esposa de um deles veio com a bolsa cheia de cruzeiros pra pagar pra ver Marabô.
— E Marabô não veio?
— Não veio. isso quem me contou foi a própria Paizinha, o marido dela cresceu o olho no dinheiro da mulher e mandou paizinha vestir a roupa de Marabô e ir fingir que era ele na sala.
— E ela fez isso?
— Fez, ela foi lá e fez. Hoje o povo chama de ekê ou de marmotagem, mas na época a gente dizia "mistificação", ela fez isso, fez mistificação fingindo ser Marabô.
— E o que aconteceu? Marabô castigou ela?
— Pior que não, ele veio uns dias depois e disse que entendia e que perdoava o erro, ele sabia que na época quando o marido mandava a mulher obedecia, então não castigou Paizinha, mas deixou claro que aquilo nunca mais poderia acontecer. Só que... ganância é uma coisa triste, e Paizinha fez de novo, e de novo e de novo.
— E ela não tinha medo?
— Ela acostumou a ser perdoada, achou que podia fazer Marabô de palhaço. Sabe, Marabô teve muita paciência, e até mandou ela encerrar as atividades do terreiro e fechar a casa ja que não tomava jeito, veja só, ele deu muita chance pra ela, mas ela quis testar até o fim. A mistificação é um tipo de palhaçada que rende muito dinhero sabe, um dia entrou tanto dinheiro que o marido dela comprou uma Brasília azul assim ó, pagou a vista, e saiu pelo bairro exibindo o carro. Mas Marabô já tinha dado todas as chances, e como todo mundo que planta colhe, Marabô veio e fez o que tinha que fazer.
— O que ele fez?
— O marido de Paizinha vinha a toda pela avenida Tucuruvi, chegou na em cima da ladeira ele desceu e de repente o carro não tinha mais freio, e a Brasília meteu-se inteira na frente de um ônibus. Sabe como uma coisa incrível? Ninguém do ônibus teve um arranhão, mas a Brasília ficou foi destruída, o estrago era muito maior do que a velocidade real teria feito, parece até que alguma coisa empurrou o carro sabe? E o marido de Paizinha morreu ali.
— E ela? Tomou jeito?
— Sim mas ja era tarde, pouco tempo depois a casa dela pegou fogo, foi um curto que deu na fiação da serralheria sabe, ela acabou vendendo o terreno e comprou um novo lá pelo itaim, um terreno grande e a bom preço, mas era golpe, o cara que vendeu era vigarista e quando o verdadeiro dono do terreno apareceu ela saiu com uma mão na frente e outra atrás, o restinho que sobrou fez o barraco que mora até hoje e vive de aposentadoria sozinha.
— Então Marabô destruiu a vida dela mesmo.
— Não meu filho, não, nem Marabô nem vento nenhum invade a vida das pessoas a destrói elas, são as pessoas que fazem isso consigo mesmas. Pense bem, se ela tivesse respeitado Marabô ele teria dado troco? Se ela não queria andar na linha ele deu até a chance dela deixar tudo pra lá e viver em paz, esquecer religião e ir trilhar outros caminhos, mas ela é que não quis. Marabô não é Cristo para dar a outra face, com ele aqui se faz aqui se paga, então porque fez? A vida de Paizinha ela mesma afundou quando achou que tinha o direito de zombar de Marabô.Pensei muito no que ele disse.Anos depois em uma festa de PadilhaNa casa de uma outra mãe de SantoDa mesma região,Eu fui e quando chego láDou de cara com Paizinha.Lá estava ela sentada no fundoBalançando as pernas por ser tão baixinhaQue ao sentar os pés não tocavam o chão.Cumprimentei e fui falar com as entidadesMas dali a pouco o inimaginável acontece,O salão todo se cala quandoUma gargalhada rouca ecoa,Quando olhei para trás lá vinhaDona Paizinha com a coluna eretaE a postura firme,Era ele sim, era Marabô.Fazia mais de vinte anos que ele não vinhaE agora estava lá.Não sei de onde tiraram um paletóUm chapéu e calçasE o vestiram,Aquele pitoco de pessoaSe ainda era pequenoMas a presença era inconfundível,Exu Marabô.Era um Exu de comportamento diferenteEra um das antigas sabe?Cumprimentava batendo as costasDas mãos nas dos outros,Andava meio tortoCom todos aqueles trejeitosQue hoje em dia as entidadesJa não usam mais.Ele não quis dar consultaNão quis ficar de papo,Apenas dançou a festejou.No meio da madrugada,Quando a festa aindaEstava longe do fimEle pediu para os tambores pararemE cantou
— Ogun mandou bola de fogo pra mandar Exu embora, é hora é hora mas ele vai embora..."A principio não entendiNão fazia sentido ele se despedirNo meio da festa,Mas as entidades começaramA engrossar o coroCantando juntoE uma a umaTodas as pombagiras e ExusForam até ele o abraçaram.Dali a pouco ele foi emboraE Paizinha foi para casa sozinhaMuito antes da festa acabar,Disseram que estava passando malOu coisa do tipo.Quando ja estava para o festejo acabarPadilha veio e me disse
— Marabô veio encerrar a questão com aquela mulher. Tudo o que é dívida tem de ser pago, mas nenhum castigo é eterno e nenhum erro é sem perdão. Nunca mais veremos Marabô daquele jeito, é para nunca mais.Não entendiDemorei a pescar a informaçãoQue ela tentou passar.Era pra lá de sete da manhãQuando eu fui pra casa,E para chegar tinha de passarEm frente a entrada da favela,E lá estava uma multidãoEm pleno sábado de manhã,A ambulância na porta do barracoDa velha dona Paizinha.A ambulância estava com as portas abertas,Ninguém dentro.Perguntei a vizinha o que estava acontecendoE ela disse que dona PaizinhaHavia passado malE quando a ambulância chegouJá não havia o que fazer.Ambulância não leva cadaver,Eles foram emboraE o carro da perícia chegouQuando já passava do meio dia.Dona Paizinha morreu em pazE hoje raros são os que se lembram dela,É como se nunca houvesse existido.Mas eu me lembro.Marabô veio uma última vezE deu a ela... paz.Não sei o que aconteceuNaquele último momentoEntre dona Paizinha e Exu Marabo,Mas qualquer um que visseSeu rosto no momento derradeiroVeria que ela estava finalmente em paz.Lá no meio da multidão encontrei LeopoldoQue apoiado em sua bengala observava tudoNo mais mudo silêncio.
— Marabô matou ela? Foi isso que aconteceu? — eu quis saber transbordando de curiosidade.
— O quê? Não meu filho, não mesmo. Paizinha ja tava era virando a curva, tinha quase noventa e ainda vivendo desse jeito precário... ela morreu porque tinha de morrer, era a hora.
— Então porque ele veio nela na festa?
— Para dar o perdão final e se despedir. Sabe menino, a gente acha que entende as coisas dos espíritos, mas só eles sabem os caminhos que trilham. Muita gente vai querer falar muita coisa, mas só quem sabe do que realmente aconteceu é Paizinha e Marabô, e agora ela já não pode falar mais nada a respeito.E assim se encerrou mais uma jornada.Porque eu contei está história?Me pediram que contasse algo de Exu Marabô, e entre tantos contos e histórias mirabolantes eu apenas quis contar essa que é a mais simples, mas é uma memória verdadeira.










Relatos e Contos do Axé, Arte e texto por Felipe Caprini










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